quarta-feira, 17 de dezembro de 2008

Identificazione di un stronzo

Com uma temeridade quase a trespassar a fronteira do reckless, não fôra a magnânimidade cristã de reaching out aos self-inflicted hobos do pedaço (quer dizer, não estou a fazer juízos sobre as outras criaturas do saco, mas tão só a cobardemente não me deixar só na minha auréola de duvidosa (vide...) auto-exclusão, dessa forma pretendendo desencarcerá-la de acusações de auto-sagração moral martirológica ao mesmo tempo que torno a sua matéria de arguição mais factível (nailed it?)), a Sara, gentil como sempre precisamente para com quem sistematicamente faz por o não merecer, agrega a minha irrepresentável pessoa (daí o bezerro, como todos os exegetas bíblicos que me entopem a caixa de correio já perceberam) ao mais recente desafio de figuratividade blogosférica, tão caloroso como frustrante. É sem dúvida acolhedor que se queira sempre ir um passo adiante na corporificação das vozes soltas que se enrodilham nos humores quotidianos da nossa carne por via destes estranhos signos que vamos endereçando em vago compromisso aos viandantes de muitos algos por vias destes estranhos algures. Eu, claro, sempre resisti a essa virtuosa tentação, cônscio na minha própria carne e consciência que o arremedo de pessoa que se pode agregar da inferência subjectivante deste discurso localizado não só está perfeitamente distante como literalmente às turras com aquele apenso às mãos que digitalizam isto neste momento (lá foi mais um tabefe - I hate my guy). Presumir um corpo por trás de uma escrita com a qual, numa medida ou noutra, já nos aninhámos, é sempre a convocação de uma violenta dissonância cognitiva que só (concebo) deve poder ser bem resolvida por um cândido wishful thinking (para o bem e para o mal: estou certo que imensa gente deve suspirar shallowmente de alívio por o Pereira Coutinho parecer um infante acabado de desmamar e já a querer (ou a querer afirmá-lo, isso sim mais problemático) com os seus deditos gorduchos enfiar Dunhills nos beiços - dissonância estética não menos fatídica que a outra) de congruência fenomenológica, ou imensa capacidade de adaptação à vil balbúrdia empirista que destrambelha os corpos, passos e palavras que quereríamos unitariamente encorpados num espadaúdo palmo de cara com palavras caras nos bastidores à espera de trotar melifluamente da abertura somática correcta, para portanto, face ao desvelar da "dimensão oculta", gostar de nós mesmo assim (céus, so many issues).

Still, sendo reconhecidamente a pessoa aqui escrita tão dada, ao ponto de se perigar expondo a pessoa que a escreve, e sendo o verter corpóreo na morfologia Simpson um dispositivo tão genial de exposição mediada (ou check-out blogosférico) a permitir mesmo a uma manifestação de repulsa vir enlaçada num but it looks cute assim combinando de uma assentada o aviso cautelar de go no further com a caridade interactiva de não precisar de fazer uma u-turn espavorida, a minha pessoa escrita ordenou à que a escreve que sim senhor, tal encomenda de corpo (a alma lá se verá) não poderia ser mal-agradecida e vilmente desconsiderada. Portanto, lá enviei a única representação fotográfica da segunda pessoa (ainda que para efeitos não blogosféricos se considere a primeva, presunçosa) que possuía (pessoa (oh sim, se me possuo) e representação) aos senhores dos Simpsons. Ironicamente, fizeram os senhores questão de demonstrar que a congruência fenomenológica sometimes finds a way, principalmente quando lhe esticamos a implausibilidade do desafio, e recusaram terminantemente reconverter-me graficamente, com a desculpa esfarrapada de que não aceitavam full-nudes. Ora, primeiro, não tenho culpa que o meu auto-horror me tenha deixado como única, involuntária, captura fotográfica do meu fugidio self a imagem que no meu primeiro e último check-up o médico impulsivamente registou exclamando insensivelmente "tenho de documentar isto!". E depois disto, obviamente não serei cúmplice do autoritarismo estético que sistematicamente se crê autorizado à normativização de que corpos podem ou não ser sujeitos de exposição descomprometida.

Não obstante, fizeram esses senhores questão politicamente correcta de não transmitirem a mensagem que "pessoas como eu" (o que faz de mim a minha própria minoria - a seguir é a presidência, bitches) não teriam lugar no mundo Simpson, e como tal ofereceram-me a seguinte representação como modelo para qualquer futura apresentação no programa.
Como é evidente, com a minha resplandecente honestidade intelectual, queria retorquir-lhes que essa representação gráfica do anonimato estava, ainda mais ironicamente, já iconicamente tomada, certamente com outros candidatos presuntivos mais autorizados a eventualmente escudarem-se para os seus propósitos sob a sua derivação de celulose, e como tal incorporando uma notoriedade secretista de que a minha presunção não se sentia confortável em se ungir, facto de que misteriosamente pareciam os ditos cavalheiros antecipatoriamente conscientes, quando, sem qualquer emanação verbal da minha parte tendo-lhes tão somente enviado a famigerada foto sem mais comentário, ao enviarem-me a sua representação simpsoniana alternativa e sua justificação, terminam a exposição com um there you go, cocky prick (aliteração semântica batida que também estava para censurar, não se desse o caso curioso de também logo me parecer algo que eu seria perfeitamente capaz de escrever).

No fim de contas, ao expôr-me à vontade de uma identidade plena, dou-me conta de que a representação do anonimato já havia sido sequestrada, e de como a não-pessoa se tornou apenas outro caso particular de identificação. Como é cada vez mais evidente, a existência é um modo de captura expositiva, e a minha figuração, felizmente ao largo de qualquer caça lepidóptera antropomórfica, poderá quedar-se uma representação genérica de espécie hominídea desconhecida quem quer saber se errónea num volume borgesiano de História Natural Irrelevante. Algo com que, apesar de tudo, posso viver. Já que, como o Nicholson under Antonioni soube vislumbrar, a melhor coisa para sermos nós próprios, a seguir a nenhuma identidade, é uma identidade errónea. Portanto eis-me, e para me poupar à trágica ironia de, daqui a dez anos, errante, ao falhar yet another abordagem a um vagão no midwest, um outro inepto espalmado de boca na poeira se virar para mim e perguntar «you don't look familiar: didn't you write that yesterday man thing?», cá equivocamente me fico.

Diggin' old geezers

Os velhos porcos serão uma categoria nosológica de nostalgia sexual significativa na epidemiologia lúbrica contemporânea, certo. Mas convém, como para outras associações epidemiológicas grosseiras, não confundir a categoria social com as práticas problemáticas a que pode estatisticamente associar-se sem produzir uma reificação causal dessa correlação. O caso dos velhos porcos é particularmente interessante para contestar o fetichismo da correlação, na medida em que é ao partilhar da categoria etária sem ser absorvido pela encenação comportamental da denegação do seu declínio que se pode produzir um olhar mais lúcido sobre os mecanismos operativos do condicionalismo libidinoso. Foi pelo menos isso que, confessadamente, mais me interessou no último Lumet, e de que constantemente me relembrei ao tapar alguns buracos da minha oliveireana pessoal na cinemateca.
Como todo o Portugal tem uma opinião resolutamente autoritária sobre o Oliveira (e que melhor consagração de incontornabilidade cultural?, os parabéns que se fodam), não há-de ser grave que eu meta uma colherada muito direccionada para a presunção de que, tendo o nosso decano cinematográfico sido sempre graficamente (mas não inconsequentemente) maroto (a sério, não sei mesmo de que é que o pessoal se queixa, com sortidos mariolas e tudo (neste tudo condensando-se, para a minha carência de appetizers audiovisuais, a obra indubitavelmente mais espirituosa do cinema português aquém do César Monteiro, ainda que em alguns planos diferentes (piada ou não, é no Oliveira onde vejo assomar tremenda veia burlesca que a gente devida já lhe apontou)) para o entretém), tenho para mim que a exposição explícita (na exacta medida do rigorosíssimo pudor de quem sabe milimetricamente aquilo que quer mostrar) do corrimento dos veios lúbricos da vida só se começa a reverter em movimento interno para o registo da perversão supurativa dos desejos (mal-)contidos, na sua terceira idade de cineasta (sendo que, por alguns dos buracos mais recentes que cobri, na minha periodização subjectiva ele já irá na quarta, onde tais fantasmas internalizados provavelmente terão já passado mais para o banco de trás).
Foi a possibilidade situada desse olhar distanciado de quem esteve implicado no jogo e hoje lhe reconhece de fora a clausura que me surpreendeu no Lumet que, precisamente com os seus oitentas, está exactamente na fresca idade de explorar as possibilidades perceptivas de que tanto o Oliveira fez mister, e que tornam estes cineastas potenciais projectores das mecanicidades comportamentalistas que o cio acolhe como quem respira, e das perversidades perceptivas que engendram. Pareceu-me verdadeiramente emanar de um sítio de observador privilegiado (enfim, a respectiva pode não concordar comigo nisto) a plácida artesania corrosiva de jogar com a frustração perceptiva, a jusante e a montante, daquilo que julgamos ter visto e do que julgamos vir a ver (nomeadamente, mostrando uma lúbrica garina qualquer a levar trancada de quatro (e isto não sou eu a ser porco, é a descrição daquilo que representa e a que corajosamente se entrega) e só depois do acto consumado perceber que era a Marisa Tomei, que assim vimos e não vimos querendo retrospectivamente ver; e, ainda que menos ardiloso, mostrando o Seymour Hoffman a despir-se lentamente por uma casa, de recantos para si familiares, de um efebo requintadamente efeminado de andrajos ergonómicos para a intimidade, para se deitar na cama e acabar aí a levar a trancada por que pagara, nomeadamente, de narcóticos, por via endovenosa, que não outra), fazendo essa frustração reflectir sobre o espectador a consciência da perversidade formatada do seu olhar, e das suas expectativas adquiridas e naturalizadas, sobre que imagens lhe deviam ser dadas a ver, em que ordem, para que tipo de satisfação.
Quando os modos de produção cinematográfica mais desesperadamente se apegam à deception como mero procedimento de materializar artificiosamente uma cenoura por cima das poltronas dos multiplécses, alguém que exponha quanto a deception já está inclusa no pacote domesticado do papel de espectador, e por essa forma o devolva conscientemente (se necessário, envergonhadamente) a essa condição, merece não os parabéns indulgentes da mera morosidade diacrónica, mas os de a fazer cumprir plenamente em todas as suas estações. Ainda que por vias travessas, não conheço melhor elogio a fazer a um centenário.

Burning down the house

Triste que, nos dias em que por lá passei, a excepcional iniciativa da integral das obras para orgão de Messiaen, na Sé de Lisboa, tenha estado quase às moscas (e ao, não é certo, peregrino/hobo (no Fátima nestas paragens) que, uma vez, de passagem, arremessou com souplesse esquissando uma parábola oferendária dois objectos inidentificáveis, mas produzindo sugestivos ruídos aproximados daqueles embrulhos crepitantes de chocolate, para um vaso de flores no altar - e quão caloroso poderia ser que tal divindade adoptasse certos caprichos devotos mais associados aos seus confrades de panteão hindu e se tornasse sensível à satisfação piedosa de um seu sweet tooth?). Ainda assim, tal terá provavelmente contribuído para insuflar ainda mais o meu sentimento de colisão entre a transcendência alternadamente esotérica e tonitruante da música pulsada por aqueles tubos a assomarem-se a Jericó e o formalismo hierático com que se parecem ter recoberto estes espaços religiosos quase museificados, sufocados num apagamento tumular. Não admira que, porventura na excepção de um proselitismo chão a la padre Borga (também sempre o mesmo a apanhar, coitado), boa parte dos ministros da igreja católica (ou lá quem de direito) pareçam ter desbaratado o património musical e instrumental que são provavelmente a sua melhor herança (para os descomprometidos, claro está), o que torna esta associação da Sé à performance da piíssima, mas potencialmente desconfortável à mansa piedade ritualizada dos tempos, obra organística de Messiaen, talvez mais que louvável, corajosa (ainda que sem deixar de rentabilizar a ocasião para evangelizar um pouco de boleia, com comentários do cónego inclusos). É que não me parece mesmo que haja hoje, para lá deste repertório, melhor forma de ressentir, na configuração de indeterminação que seja (e mais fôra) a existência, o encantamento favorecido pelos passos em falso da inquirição cósmica, a promessa, o furor e o terror que instilariam a experiência religiosa do cristianismo primitivo (se me permitem). O Deus que toda a gente anda hoje a inferir na música de Bach seria, bem entendido, quase um Deus demonstrado como hipótese teórica matematicamente sustentada no fio rigoroso do movimento perpétuo na harmonia das esferas, um consolo metafísico racionalista. Mas o de Messiaen é mesmo o Deus sujo de moldar a lama, o dos mistérios incognoscíveis a meças paroxísticas com a carnalidade esfolada, o da revelação e da revolução, da interpelação e afronta. Deus que, sugere o meu desconforto com a convocação directa naquele espaço talhado em naftalina dos mistérios e revelações da fé pelas trompas de um orgão que é provavelmente o dispositivo de belicismo anímico (sua função primeira, pouco duvido) mais devastador que conheço, não será um que a igreja instalada na modernidade queira convocar para privar com apaniguados e curiosos. Não tenho assim tanto interesse e menos calejo no assunto para dizer que é pena ou alívio, mas o lamento revisionista momentâneo de não ter feito carreira de organista, como a forma eventualmente mais benigna de playing God à velha maneira disseminando temor e tremor nos novos tempos, insinua, com o arrepio de bem a candura poder emparelhar com a implacabilidade, o quanto há a dizer sobre fés que (ainda ou já) não têm pejo em trombetear, como esteja o Apocalipse ao virar da esquina, aquilo a que vêm.

terça-feira, 16 de dezembro de 2008

Melhor contracapa até outras pessoas começarem a valorizar contracapas com algo mais que marketing genérico?

(mesmo que o raccord interfílmico não fosse dos meus exercícios críticos ou cinéfilos favoritos (o que o não desdignifica lá por as minhas razões para o favorecer poderem continuar a estar na sequência das que me fazem eleger preferencialmente livros com bonecos), a thoughtfulness que plantou este raccord triplo compósito 2-em-1 (que é um mimo, por muito que todos os would-be cinéfilos à minha imagem mas sem a minha cúpula de impunidade auto-depreciativa (amadores...) queiram protestar que seja "óbvio" - eu cá confesso inane que não me tinha lembrado da colagem com o Christine que faz tanto sentido que é quase pornográfico) na contracapa do catálogo do ciclo da Cinemateca dedicado ao Carpenter (ironicamente, com um título e uma capa não tão louváveis, mas novamente redimidas pela excelente valorização icónica das badanas - vide os meus guardiões de templo aqui ao lado, go on, make a move) só pode afiançar ilustradamente (para quem, como eu, precisa mesmo que façam o desenho) que este volume merece toda a confiança (e em particular a retribui ao exemplificar o Carpenter como barómetro por excelência, na amostragem da coabitação do consenso crítico contemporâneo do homem como autor com a dissensão ampla relativamente ao mérito dos filmes concretos afora os dois ou três pivotais, das possibilidades e limites da política de autores, como dimensão cinéfila analítica específica - possibilidades e limites que para a minha obtusidade sempre funcionaram principalmente como nominalização pedagógica de cautionary tales para presumir que se não gosto de algo presumivelmente gostável (pela crítica que não alcanço) a culpa deve ser provavelmente minha, posição de cinefilia pusilânime atracada algures entre a incompetência hermenêutica e uma correlata e sobrepujante política de afectos (e eu sei que é herético, ou letal se o homem ainda estivesse nas redondezas, passar da cinefilia aos wet dreams com o Ford, mas pecaminizar o insconsciente, para mais com palas e whisky ao barulho, é absolutismo moral insubscritível)), razão pela qual, provavelmente, cometi a imprudência inusitada de o papar num fim-de-semana, excesso que, por ter sucedido uma vez em mais de uma década, garanto não tornará a suceder: o vosso escárnio e correlata auto-confiança literatos continuam seguros comigo (que giro, tornei-me na miúda do liceu que mostrava as prebendas para que os miúdos gostassem dela, apesar de (precisamente por) não ter nada para emoldurar - oh poetic comeback, you're a spiteful cunt))

Greatest book cover ever?

(por entre as várias ironias que esta capa do The Work of Art in the Age of Mechanical Reproduction do Benjamin evidencia numa materialidade estética cristalina, não será a menor que se sinta a compulsão para singularizar o autor e sua criação, e o objecto que a viabiliza, por plasmarem como seu conteúdo e concretude estéticos a própria indiferenciação replicante inerente ao seu meio expressivo. É pela clarividência com que explicita e materializa esteticamente como sua matéria-prima e conceito a condição que é suposto dissolvê-la como todas as demais que esta capa entre capas absolutamente única não se repetirá: ela sucede em distinguir-se e resgatar uma espécie de meta-aura, qual facho derradeiro, precisamente ao encarnar simbolicamente ao limite a materialidade do processo reprodutor pelo qual a sua encarnação estética é dada à existência e que precisamente lhe nega o tipo de sagração ritual aurática, da obra única, de que Benjamin faz as exéquias; ao mesmo tempo que ilumina, pelo próprio irónico triunfo estético da auto-elegia da tese que condensa, como novas formas de unção das obras por nova aura, como seja pela acessibilidade condicionada (condição de possibilidade do fetichismo) do exemplar raro, se consagram hoje, via que este mesmo canto do cisne abre até à sua foz fenomenológica. Assim se constitui tão manifestamente ponto de charneira este vero manifesto de uma condição expressiva (de arte comodificada), a qual sublinha paroxisticamente ao singularizar-se nela incorporando-a como sua matéria-sujeito, que necessariamente a perfeita consubtancialidade que alcança na confluência trinitária de um meio expressivo, de um discurso sobre esse meio expressivo, e da sua formalização estética num só objecto, foi tomada e finalizada, irrepetível, momento que tem uma ressonância como que absolutizante para a diacronia da expressão estética humana (momentos que podemos retrospectivamente, genealogisticamente, tentar recuperar, o que é constitutivo do raisonnement crítico canónico, mas de que não é, et pour cause, tão evidente apercebermo-nos no seu momento de surgimento, o que provavelmente leva a que mais facilmente se manifeste contemporaneamente em empresa estética servil, de recursos limitados concentrados num formato que demande um gesto estético, ironicamente, mais depurado, imediato, e que, também ironicamente, mais facilmente se perca por essa imediatez na temporalidade resguardada pelos exegetas aturados dos greater schemes of expression), como algo que tão claramente encerre um item do catálogo das coisas que o ser humano pode exprimir (o que não quer dizer que o catálogo não seja sistematicamente reformulado ou ampliado com a transformação das mundividências e vivências humanas). Claro que amanhã poderão esclarecer que já tinha sido feito, e poderão vir a fazer sem saber que já havia sido feito. Mas acho que na tristemente evidente mirradíssima diacronia estética que carrego na cabeça, que para o efeito retórico não deixa de replicar a função das institucionais, nunca tinha percebido tão translucidamente como a marca d'água da perfeição é literalmente o esgotamento. Estava pasmado e algo assustado, para ser franco, até me aperceber que a marca d'água do discurso reificante esticado aos limites é perder todo o contacto com a expressividade própria (e indissociável) da coisa material, e portanto, umas linhas após, a minha posição talvez tenha passado dos ditirambos que vos, suponhamos, passaram pelos olhos, para uma mais modesta "yá, é gira", ou um pouco mais entusiasta mas ainda arrepelando o blasé "humm, clever" (e talvez devesse ter começado por aqui). De qualquer forma, como expus nesta minha ilustríssima galeria a coisa material e o pecado fica atenuado, acrescente-se quanto não deixa de ser ainda um indicador de monta da monta do objecto o quanto embandeirei em arco à conta da bodegueira de um invólucro de matéria tipográfica prensada, coisa que, sintomaticamente, já me havia retraído de comprar uma edição de uma obra, mas nunca incentivado a fazê-lo, para mais por si só, como obra de arte pois (reproduzida mecanicamente pois), sendo já proprietário do seu conteúdo, drapejado noutra toilette. Enfim, o seu a seu dono: David Pearson, o único nome de designer que espero vir a registar)

sexta-feira, 14 de novembro de 2008

Bitch House

Isto não é, evidentemente, nenhuma sugestão para que vão ver (nem para que não vão ver) os Beach House ao cabaret Maxime (got it?, hã?, hã?, casa de putas, hã?) (mau gosto o tanas), quanto mais não fosse, porque no que toca à relação dos homens (e das mulheres, note-se) com pitas chanteuses (algo diverso de chanteuses pitas, mas não me peçam agora, ou vez alguma, considerações sobre a matéria, ou qualquer outra), como mais irredutível e persistente forma de embrulho mercantil de bens melódicos na história da música popular, qualquer pretensão de produzir juízo estético é perfeitamente extemporânea (o que não equivale a dizer que todas as pitas chanteuses se equivalem).
Serve pois este meu aceno vago na vossa direcção, em jeito de Rainha Isabel (convinha que fizessem o jeito de visualizar mesmo o gesto distintivo da senhora, quanto mais não fosse por deferência para com o facto de eu não conseguir parar de o replicar em frente ao ecrã, idealmente como que para me imbuir das palavras para sua tradução iconográfica (didn't work), mas efectivamente apenas tendo tido o efeito indicativo de que qualquer regramento dos jogos de associações em mim se desvaneceu, ao ver-me retirar do meu auto-sugestionamento gesticulo-vocabular após abanar as bochechas em trejeito de sacudir o torpor (também fiz agora mesmo este gesto, sou tão adorável, que pena não o poderem ver) apenas a intuição fulgurante de que as cobras capelo só não esburacam impiedosamente os seus domadores por ficarem fascinadas (um fascínio de evidente condescendência e presunção de hipcefalia feita), não pelos seus gestos hipnóticos, mas com a magnitude do convicto patético que neles investem de invulnerabilidade simbólica as criaturas demasiadamente elimináveis em face) enquanto a descendência enceta novas divisões do palácio para esconder esqueletos, apenas como manifesto de que só the dumbest (e como tal indesperdiçável) and innocently tasteless not-even-pun me poderia fazer reincidir num simulacro de vida pública, o que é bem indicativo da distopia que seria a esfera pública habermasiana com a minha agenda de interesses.
Confirma-se, portanto, o silêncio como a minha residual expressão de responsabilidade cidadã. Deus, ou o at long last nosso negro in chief em seu lugar, sabe quanto a vida política anda precisada de mais como eu: é tanto mais uma função da democracia dar voz aos cidadãos, quanto eles fechem a matraca até terem algo para dizer.

domingo, 17 de agosto de 2008

A imprensa portuguesa precisa de fact-checkers ou assim como de beldroegas para a sopa de beldroegas

A blogosphera* é uma grande espelunca, certo, onde grassa vil anonimato (hã?) acoplado siamesamente a propósitos difamatórios, e o primado da inimputabilidade do opinado pela sacrossanta subjectividade. Mas nem tudo é execrável. Por exemplo, aparenta ter algumas possibilidades de auto-correcção potencialmente bem mais eficazes que o discurso e opinião instituídos nos media tradicionais (e cujo perfil cada vez menos especializado, ainda que em termos latos, tem vindo a tornar mais confrangedora essa pecha) que, aparentemente pouco ciosos da sua solenidade institucional, pouco se vão protegendo da sua senescência natural (talvez por os seus protagonistas não se virem habituando à mesma, como eu, desde os 13 anitos).

Veja-se: quem (como eu) segue procurando acartar húmus cultural da vaga leitura de jornais (para logo o olvidar), folheando os de há duas semanas ou assim (giro a minha desactualização com quase absoluta precisão), pôde deparar-se com a revelação, nas páginas do Público, do Fred Frith como "ex-membro dos lendários King Crimson" (não trocando, certamente, o Fripp pelo Frith, para não dizer o Robert pelo Fred, para não dizer o ex-membro pelo "o" membro, passado, presente e futuro), pelo que se anseia redescoberta e revelação de gravações secretas dessa união anteriormente inexistente e doravante mítica, por um jornalista/crítico/? que esteve no concerto do aforementioned guitarrista com o John Zorn, ocupando para o triste efeito que se viu um lugar que alguém, por mero exemplo eu, não conseguiu acalentar com as suas afáveis nádegas, à conta de a fixação já em deriva desmiolada no aforementioned John (não desdenhando), da qual o dito artigo se fez bom compagnon de route, ter esgotado o auditório (ainda que pelo menos tal fortuna tenha poupado a minha "fortuna" em 20 euros para um mui aprazivelmente localizado mas nem por isso menos pétreo assento ao ar livre - what's up with the mecenato, Calouste?...).

Pela mesma altura, o mesmo leitor podia ainda mais aturdido encontrar-se com a exposição à descoberta ainda mais inaudita, por Miguel Sousa Tavares, nas páginas do Expresso, da existência de um bravo escritor russo, vítima do estalinismo, de seu nome Ossip Meldeston. No contexto de um original lamento pela indiferença da comunicação social lusa face à morte de Soljenítsin, por sinal o parágrafo de partida de quase todos os outros artigos de opinião que li sobre o facto (não uma amostra representativa nem aleatória, granted), recorrência que aparenta acabar por se envolver numa trágica quezília lógica com o argumento que propulsiona (espécie de suicídio discursivo pré-cognitivo de grupo), bem como poderá dizer mais sobre a percepção dos cronistas do ambiente cultural contra o qual se querem posicionar (ainda que, quem sabe, com alguma razoabilidade) do que providenciar um efectivo retrato desse ambiente; vem pois à baila a revelação Meldeston, com avanço bibliográfico, em português e tudo, de um livro de sua autoria, «Contra Toda a Esperança», deixado por publicar à altura da sua morte.

Observadores presunçosos, com o seu cinismo de algibeira, estarão certamente em pulos para observar que, nem com o buffet gráfico que as traduções nominais do círilico ou lá o que é tendem a oferecer aos palatos vocabulares mais variados, Meldeston aparentará ser uma das declinações assisadas de um tal outro Ossip Mandelstam; bem como que o seu dito livro deixado inédito porta como título uma quase-coincidência suspeita com o do primeiro tomo de memórias, em inglês «Hope Against Hope», não do próprio Mandelstam, mas antes da sua viúva, Nadejda (segundo a grafia do único volume de Mandelstam, Ossip, que me calhou ter lido, em português, cortesia dos quase inevitáveis Guerra, a quem ora brevemente me acoitei para a tarefa sempre ingrata de cover my ass). Já eu, cônscio dos mistériosos maravilhosos que podem a qualquer momento brotar do campo mágico da edição brasileira, fico caladinho, como poderão constatar por este ponto final parágrafo já aqui.

De qualquer forma, o que interessava relevar, considerando a hipótese retórica de MST e o outro tipo terem pisado a poça e em seguida a achado acolhedora, era que tivera sido a ocorrência num bl(og)ue (excepto neste, onde os hipotéticos leitores se devem ficar a escarnecer confortáveis das minhas imbecilidades até que eu detecte as que seja capaz de detectar quando eventualmente faça uma retrospectiva de onanismo fracassado), e regra geral alguém enviaria, alternadamente, um espalhafatoso comentário para ruir a tribuna alheia, ou um discreto mail num discurso de pinças para não ofender a calinada alheia a bem das próprias mas suscitando invariavelmente resposta lacónica equivalente a um levantar de sobrancelhas como sinal de efusivo reconhecimento ao cruzar um conhecido pela rua, assim possibilitando a errata atempada in loco, antes da sua potencial apropriação acéfala em massa, propriedade certamente também bem documentada of all things Internet.

Mas como, felizmente, pela absolutização das aforementioned razões infelizes da blogosphera, o MST (o verdadeiro - oh, ilusão moderna... - não o - diz o verdadeiro - identity-thief) não lê bl(og)ues, nem as colunas d'"o Público errou" ficam para a história dos recortes de imprensa, nem o tempo dos jornais volta para trás, Meldeston poderá ir fazendo carreira (ironicamente) pela replicação internética, com selo de qualidade jornalística, do artigo de MST, e a organização do que se borra nas rotativas portuguesas continuará a poupar uns tustos nas folhas de pessoal, pelo que ficamos por aqui, como poderão constatar pelo ponto mesmo final que se segue.

quarta-feira, 13 de agosto de 2008

Férias são para fracos (ou, vá lá, pessoas com, tipo, empregos)

Felizmente estou cá eu, do alto da minha inimputabilidade, para tomar conta e finalmente soltar as rédeas narrativas da minha vida fulgurante e criatividade febril. Vou escrever um póste este mês, portanto, facto do qual certamente ainda se não haviam compenetrado antes de vos alertar para a garganta rochosa que vos encara mal-encarada em frente. Tudo bem, darem o meu nome (qualquer um deles) à vossa genitura futura será agradecimento mais que suficiente.
Uau, já tinha esquecido como este espaço é deprimente (como é que vocês hipotéticos conseguem estar aqui?). Odiar as massas em odiosos concertos de massas deve ser mesmo óptimo até para a relutância de uma vida social. Pois é, a percepção de urgência tem destas coisas, e tenho efectivamente prosseguido na minha mais alarve temporada de concertos ever.
On a related story, a qualidade do atum em lata no Minipreço desceu descaradamente de uns nacos condignos (embora nunca tenha estado no escalão superior de integridade de um atum em posta Tenório), para uma gosma espapaçada, que imagino devem amortizar no processo de comercializar o mesmo produto igualmente sob a capa de patê. Esta estratégia de downgrading da qualidade dos produtos irrita-me sobremaneira: já não é amortização suficiente para o low cost ter de ser eu a conduzir um porta-cargas nos armazéns dos supermercados para desencaixotar um pacote de bolachas para o poder comprar a menos de 69 cêntimos?
(are you gone yet?)

Enfim, estava fisgado em conseguir a trifecta do Rushmore (monte, não filme) musical que posou para a posteridade de umas quantas memorialísticas subjectivas à beira Tejo este ano (e gostaria de aproveitar este momento para expressar todo o meu despeito bilioso para com quem foi ver o Waits abroad). Falhei miseravelmente. Quer dizer, é verdade que o Dylan me relembrou o quanto odeio concertos de massas em plano horizontal, mas ainda assim tenho pena de não ter podido ver o Young, que naturalmente toda a gente tinha de laudar como super-hiper bestial. O que haverá na minha ausência para sistematicamente trazer ao de cima o melhor deste pessoal? Ainda assim, e para ressabiado me vingar com o auxílio do destino no seu sistema de micro-compensações algo cretino mas que já não estou em condições de desdenhar, consegui à última da hora sacar um bilhete (sem violência, uma novidade) a uma cidadã senior (que parecem gostar de forma ambígua quase tanto dele como de mim) à porta da esgotada ZDB para rever o Bonnie chaval, que é confirmadamente daquela mirradíssima colheita de gente que no palco é que ascende com as suas canções aos múltiplos planos das suas últimas potências. A sério, a ter de escolher nos orçamentos domésticos, é mesmo de pôr as aparições públicas do homem acima da compra dos discos (não desdenhando). Mesmo que oposto à fenomenal presença solitária no Maxime o ano passado(?não me apetece confirmar), desta feita com banda (muito bem) recheada (aquele Emmet Kelly é um ardilosíssimo guitarrista, caramba), mesmo a dar um concerto metade baile redneck, que me fez lamentar amargamente por uma vez ter deixado as socas em casa, o esplêndido fauno (ainda que cada vez menos) depravado agigantou-se de uma forma que as suas xanatas e calças arregaçadas pelo joelho nunca permitiriam antecipar (I'm oddly prejudiced), felizmente ainda com espaço para coisas como pôr The Seedling a chispar nas guitarras até transformar a sala numa fundição incandescente (ou talvez fosse o calor de uma concentração humana insalubre; é capaz de ser também uma teoria concebível...). E pelo menos enquanto mantiver no repertório coisas como «I'll hold his arms, you fuck him / Fuck him with something / The fuck - he deserves it», garantirá continuamente um valor seguro de entretenimento familiar.

Também fui ao Callahan, é verdade, até tinha um póste escrito há decénios, mas fiquei com receio dos seus potenciais efeitos secundários e não publiquei (acontece muito; este bl(og)ue gets all its action backstage - controlem-se). Não por causa do Callahan, bem entendido, que qual Ian Curtis autista em lugar de epiléptico (aquela marcha marcial sem sair do lugar foi para mim o tira-teimas da comparação) explanou brutalmente a plasticidade arrepiante do laconismo original das canções, pulando com toda a naturalidade impávida deste mundo (garanto que o homem vai chegar aos 90 sem uma ruga - there's your secret, chicks; no emotions hanging out, now) do rock quase doentio quase liceal à disco-folk, da apalachiana salvífica a uma motorika niilista. Aliás, para além disso, só o, depois de começando com os National (National aside), me vir sentindo algo pêga de unanimidade alarve (they do say it can rightfully happen...), fez desta venue íntima de uma dúzia de frozen in time teenage spaceships, onde até se pôde encontrar (oh relíquia perdida) folhas de caderno arrancadas com pedidos de canções escritos encostadas ao suporte do microfone (e serem atendidos pelo man), um mui grato bálsamo. Os efeitos secundários tinham portanto a ver com a parte do texto que vocês não vão ler (francamente, esse expiro de alívio já está muito batido, crianças...).

A propósito, este foi dos textos com que mais me identifiquei nos últimos tempos, mesmo se na minha formulação imagética da queixa se descambaria provavelmente do lamento civilizado para um cenário envolvendo uma motosserra, espirros de sangue a cobrir as paredes da Aula Magna (ou qualquer outra sala de espectáculos ou de cinema, for that matter) e o meu riso histérico a silenciar em espontaneidade descontrolada a diligência palerma da generalidade das gargalhadinhas ao redor.

E não, não estou a evitar o subject Dylan. Para um archeopterix regressado à vida engasgado com o carbono 14, soou damn good, se querem saber. Isto de ver lendas fumadas é quase sempre complicado. Para o caso, com as canções dissolvidas no mantra, bem esgalhado, sim, duma espécie de raga blues-rock em contínuo, e as palavras expelidas com a dicção e constância rítmica de uma trituradora ruminante, acaba-se a empregar o ouvido numa espécie de terapia de substituição a tentar encaixar os versos e acordes firmados na memória no tapete harmónico rolante que o homem ia bombeando constante no teclado, exercício mental que muitas vezes tinha inevitavelmente a mesma eficácia metódica que encaixar peças de um puzzle ao murro. Não é de admirar que, para patêgo a querer admirar uma vaca sagrada quando só consegue ver à frente o bitoque, o bufar na harmónica fosse a única saliência simbólica para suscitar a manifestação de euforia automatista partilhada que parece justificar ao sentido cénico de integração e catarse do pessoal o andar a esfregar-se nos corpos marinados em excrecções de estranhos indesejáveis ao ar livre. Ah, mas o ticket final da Ballad of a Thin Man (principalmente esta) e Like a Rolling Stone... ah, mordam-se (não, a sério, mordam-se, façam-me render o bilhete pá, que a organização ordenhou o homem de tal maneira para vender os bilhetes, que o que ouvi à distância do cartaz desse dia não cobria nem o standard do Festival de Música Moderna da Chamusca)...

Não, a sério Bob, por mim, com as maravilhas da mistura, até podes continuar a prodigalizar discos, que até têm andado com um rácio de matéria memorável algo superior ao de décadas passadas ou pelo menos com um molde de chapa três bem mais aprazível (às vezes engana...), como podes continuar a rebitar a narrativa retrospectiva (that helps) profética de ti mesmo. Mas perderes esse precioso tempo com mais concertos, a menos que te faça muito bem, pá, tenho dúvidas...

Tough love, eu sei; mas em tempos em que a maturidade melómana parece andar a ser medida pelo resgate do génio escondido nas (aparentes, claro, o que as torna mais geniais) secas em série que o homem expurgou às pazadas desde 1970's, apesar de até o próprio ter transformado larga parte do seu dito primeiro opus autobiográfico numa inacreditavelmente descabelada de minuciosa analepse para ancorar e ratificar biograficamente pós-acto uma narrativa crítica já largamente sedimentada sobre os seus desmandos para melhor segmentar e preservar a parte da glória radiante, parece-me imperativo não usar de meias-medidas na identificação da polimórfica volumetria de detritos com que alegremente ludibriou por décadas a sagração mecanicista adquirida, para logo agora a ver ressurgir em delírios omnívoros. Não digo que não venha a torrar mais umas horas de vida a procurar mais qualidades redentoras em, sei lá, o Street Legal (para lá da tentada constância de profetismo e protuberante misoginia), para até nos quedarmos em terreno com um niquinho de risco e nem ir ao mais iminentemente caricaturável (digo...). Só não garanto que alguma vez o venha a fazer sem o ocasional ranger de dentes, nem que o facto de encontrar em vários dos discos mais penosos uma, só uma, mas decididamente uma, estupenda canção, não seja mais que uma coincidência, mas uma das encarnações agónicas do riso escancarado e auto-irrisório do jogral na nossa/sua cara de parvo/pau (dualismo intermutável). Imagino que, para o jogo manter algum sentido e guardar um mínimo de discernimento discriminatório, será mais conveniente não embasbacar, mas rir de volta.

Bom, e agora que já garantidamente ninguém está a ler, querido diário, enfim, é verdade, houve o Cohen.

Ah, mas tu estavas lá...

Vá, pronto, eu conto outra vez. É verdade que nem que tivesse sido há duas décadas, provavelmente não anteciparia pela história registada algo diferente de uma produção de muzak em formol com toda a corrosão depositada no fundo do frasco a ameaçar silente as fundações. Hoje, então, que mais haveria a depositar no palco de comércio de emoções que uma troca de amenidades, uns fundos de reforma para ali, uma aspersão colectiva de amabilidades para contentamento beato do livro de recortes "eu vi o gajo" para aqui? Mas caramba, o Cohen descarnado foi um breve cometa ao negro, e a patine em que se foi deixando cobrir constituiu há muito precisamente a natureza do desafio a quem se quedou em apneia no fundo do frasco (e da razia irónica a quem começou por (ou escolheu) banhar-se na superfície - única explicação para gente boa não gostar do Cohen, e gente má sim (eh pá, isto dos dualismos é mesmo porreiro)), de seguir assinalando as idades de Cohen no nosso calendário. É a velha história: é de supor que quando se dedica a parte sensível da vida a esgravatar na espessura dolorosa da consciência humana virtualmente todos os espectros e lacerações da inadequação da experiência e suas traduções metafísicas face a todas as teleologias da existência, para tentar confirmar a validade da persistência em qualquer forma de continuidade, chega um momento em que se impõe a questão de querer sobreviver, ou para quem se deseje darwinista, de se ser capaz de sobreviver. Em certa medida, aquilo que a presença do homem encarnou surpreendentemente foi uma forma de glorificação assumida da opção pelos dias de amanhã. E, francamente, se não seria necessariamente por esse Cohen que eu porfiria primordialmente em ter corpo para ainda e mais de si ressentir os ecos, não seria também eu a ousar julgá-lo pela sobrevida que decidiu conceder-se. Ainda assim, por entre os trappings de cavalheiresco entertainer que pululavam naquele palco numa apoteose de mesura que, naturalmente, só podemos (ouviram?!) interpretar como um adoravelmente malicioso they're to blame for the kitsch recorrentemente dirigido à banda e à menina Robinson (as duas manas sublimes estão perdoadas por conseguirem dar continuidade ao If It Be Your Will), o facto é que algo também persistia a escavar quem olhasse para baixo dos braços salivarmente ovacionais. É que não é impunemente que damos o braço à impossível marcha solidária com a solitária despedida espectral de cada corpo para um ponto de interrogação inapelável em Who By Fire; ou contemporizamos cumplicemente com o resgatar do Hallelujah do caixão perfumado do Buckley júnior. Ainda tremi de antecipação da avalanche que chegou a soterrar algumas audiências (pulhas) nesta ronda de despedida, mas esse escalpelo acariciou-o ele num breve rumor e deixou-o a refulgir no bolso interior do casaco enquanto palpávamos temerosos o ventre por baixo da camisa em busca do relevo da laceração. Contudo, de resto, o pequeno facto é que, da pequena euforia agonizante que a companhia de 10000 energúmenos (é uma questão de agregação, não de classificação individual, não levem a mal; a dar-se o caso, eu também fui logicamente o vosso energúmeno, para lá da redundância de já o ser também individualmente a tempo inteiro) não sucedeu em me abafar, ao passar dias a fio sem conseguir casualmente pôr um disco a tocar que não se me projectasse agressivamente como aflitivamente fútil, não posso senão reconhecer que, pelas vias misteriosas que também estão na justa medida da queda e do credo, este Cohen foi bem um avatar amável do si mesmo que um dia se deixou repousar numa colina nevada, e também por isso, para lá do homem cumprido no gelo, lhe sou hoje bem devedor.

On a related matter, alguém (rethorical person) está a par do raio ou direccionalidade de explosão de um micro-ondas? Aquela merda está a relampejar, e estando manutenção fora de questão dava jeito saber se basta usá-lo agachado para evitar danos corporais de maior ou se tenho de voltar a esfregar pauzinhos para aquecer o leite.

sábado, 19 de julho de 2008

terça-feira, 10 de junho de 2008

Come, armageddon, come

 

A piedade pelos personagens também é uma coisa muito bonita

E se os desmandos (ainda que proto-estruturais) fellinianos lhe possam vir machucando certo tipo de posteridade, o excesso de cuore, que aparentemente os fecundou, tornava-se a melhor justificação para o extravasar, precisamente porque destemperado e irrazoável de impenitente generosidade para com a corriqueira desmesura da frágil matéria humana, da sua féerie. Nem é certo que, nesses termos de histrionismo sensório a contornar a convenção e verosimilhança dramática (ou até melodramática), não tenha mesmo funcionado como vera forma de pudor.
Mesmo se filmar a Giulietta Masina seja sempre um truque sujo.

If only we'd kept it pure...

cão d'água português

sábado, 10 de maio de 2008

Business as usual

Bom, como não houve vaga de fundo a clamar pelo meu retorno, tomei a deixa de Santana e achei que era seguro voltar a fingir dar sinais dúbios de vida. Nada a narrar, contudo.
Bom, posso dizer que foi muito bom ver a Monk though. Principalmente a revisitação dos primeiros tempos, ainda que o minimalismo mímico mais avantajado e encenado mais recente não seja nada de desdenhar. No entanto, o trabalho conceptual vocal sobre o primalismo do fonema(?) como unidade puramente sónica de sentido ressoa extraordinariamente sobre coisas muito estruturais do nosso entendimento (nunca tinha assistido a um concerto em que a plateia à volta (porque se pude só pagar 5 euros para um lugar em pé, como felizmente houve poucos taraditos para encher o CCB nesta ocasião artsy, recambiaram toda a gente para a plateia para compôr o cenário; e a quem pagou mais cheta pelos seus lugares, pois, ninguém vos mandou ser burgueses ostensivos (suckers), e é assim meus amiguinhos que um sistema minimamente razoável de estratificação social funciona, logo, arrumem a carteira esmifrada, e agradeçam que a minha pandilha de lumpenaudiofruities vos deixe mais uns mesitos de paz social sem ataques insensatos de espasmos vocais na praça pública) se pusesse a tentar reproduzir no intervalo as modulações vocais que acabara de ouvir, como que num jogo de aprendizado mimético infantil). Lidando com a pura expressão do ressentir sonoro primário das coisas do mundo e das suas sensações sobre o entendimento nu, sem o oversight retórico da palavra herdada e formatada, e acoplando-a à sua expressão cinética no corpo (e por isso, a Monk é mesmo também para ver), é como se a mulher estivesse a elaborar um léxico fónico (se não existe, devia) de base, espécie de esperanto vocaliso, para construir um entendimento partilhado das fundações primeiras de se ser humano no mundo. Quando parece que a maioridade artística se anda hoje a medir pelo grau de boschianice na antevisão do apocalipse em preview, é bastante reconfortante saber que já tenha andado alguém a trabalhar nos andaimes para a reconstrução de uma cultura humana.

Eh, já agora também confirmo que o Cave já anda feito um bocado caricatura de si próprio (e a tocar o Into My Arms a rir-se, e a estropiar o Your Funeral,My Trial, senhores...), o que até é chato porque o último disquinho até é um pouco mais que o picar o ponto dos últimos tempos. Mas quando se vislumbrou a sombra do velho (quando era jovem) pregador ainda a memória de um repentful arrepio se avantajou, ainda que naquele contexto seria mais de um gajo se sentir culpado por comer um kit-kat inteiro do que por fornicar com todos os seus familiares no Bayou Country. Tocaram o Tupelo, o que foi bem, e o Mick é um gajo castiço, ainda que me pareça que haja ali uma débâcle surda entre a tradicional facção Bad Seeds e uma eventual facção Warren Ellis. Enfim, deus e o diabo sabem que aquilo está a precisar de um pouco de fricção para atear fogo que não seja de lareira de ecrã ou fritadeira de amplificador. E chamou a audiência de fucking idiots, o que foi o momento mais comungado da noite, supostamente por entrar cedo demais em coro, mas provavelmente mais por estar ali a pagar para estar numa desbunda de compinchas. Ah, and what's with the spitting, Nick?
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Nesse capítulo, o Bargeld ganhou a palma ao pôr-se na alheta dos Bad Seeds, porque se os Einstürzende estão mais fofinhos (já nem tocaram nada anterior a 2000, e o Blixa pôs-se a debater o seu eu antigo e novo (wanky wanky)), só porque trocaram o martelo pneumático pela marreta, a verdade é que se os seus concatenados sonoros têm novas formas mais roliças e eardrum-friendly, o método industrial continua a ser surpreendentemente o mesmo, e continua a transportar mais que uma lamela de uma labuta histórica sobre a linguagem musical popular, que devia fazer parte do b-a-bá (é assim? (e quão cúmulo da ineptitude sentenciosa é perguntar como é que escreve o bê-a-bá, e logo quando se quer verberar sobre o seu cânone vocabular?)) da educação musical das massas, embora tenha ficado a pensar que um dia aquilo ainda pode tornar-se num espectáculo de uns Stomp alternativos.
Deviam mesmo era ter atenção ao dress-code da coisa, porque com o baixista (logo um histórico) a parecer surripiado dos Scorpions, o Blixa em trejeitos emo (é assim?) com a franja, o guitarrista saído de um classic manwear fashion-show passerelle de Nova Iorque, e o teclista e (digamos) baterista expelidos de um vídeo dos Soft Cell, a audiência idólatra estava pejada de destroços de um cataclismo estilístico sem saberem para onde virar o eyeliner. Valha-nos o bom sóbrio clássico do careca bacano nas percussões, que não sei se é do que as miúdas gostam mas é sem dúvida do que as miúdas deviam gostar, se tivessem o bom senso de ouvir os meus conselhos na matéria. Já eu, não pouco descalabro moi-même, mas mais estrutural, o que não torna plasticamente recomendável reforçá-lo redundantemente nos andrajos, fiquei com pena de não poder comprar a t-shirt com a estampa do cavalo ejaculante do Haus der Lüge, mas nem era t-shirt, tinhas as mangas longas e tornava a peça um bocado chunga, mesmo se flanada para me estrear um dia no S. Carlos, mesmo se me pudesse dar jeito para a carreira futura de peão d'obra, mas olhem, não se pode ter tudo. Além de que, se essa coisa de fazer música à margem da indústria, à conta de uns apoiantes carolas, parece uma experiência de organização da produção muito interessante, quando os pôs em concerto constantemente a impingir os produtos exclusivíssimos que tinham lá fora, incluindo a gravação em tempo real do próprio concerto, fez-me por momentos pensar que estava a ouvir o meu merceeiro gabar um fiambre de porco preto (há isso?) enquanto o cortava na máquina. Mas não serei eu nem as minhas meias de rede a ajuizar como é que os outros devem ganhar a vida.
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Entretanto, confesso, sim, et ego(?) Julius, estou mesmo um bocado rendido para ver os National. Não me estou a lembrar de outro concerto para onde não vá com meia costela reaccionária mal-entalada à espera que "toquem as antigas". É bastante triste, embora por vezes insuperavelmente surpreendente (mas o Hammill e os Van der Graaf não contam para estas matemáticas), só passar a vida a gostar de coisas pelo espelho retrovisor. Acho que não me lembro assim de apanhar outra banda em perfeito estado de graça, excepto os Gaiteiros de Lisboa quando lançaram as Invasões Bárbaras (é bom que não haja ninguém aí a pensar que isto é piada), a justificar o espreitar menos cínico pela gelosia de uma euforia contagiada (coisa que provavelmente não me aconteceria se a Beggar's não fosse tão rápida a baixar os preços para padrão paperback (aprende indústria chupista)). Sim, porque se as colheitas anteriores têm também para moi coisas muitíssimo estimáveis (e curiosamente mais nas mais recônditas, sendo que não seria como folk-ou-indie-rockers que me teriam levado ao lugar, mesmo com o pastiche da cindy lauper), e já sugerem os ingredientes apresentados à espera apenas da alquimia das proporções, o salto para o Boxer não deixa de me continuar a soar quase épico (para mais, um em surdina), com aquela inefável sensação quase metafísica, desde os primeiros acordes de piano (que me submeteram um pouco da mesma maneira implacável que os do início da Pyramid Song dos Radiohead), de everything falling into place. Epicidade (isto anda bom) para o que contribui (mesmo não sendo necessariamente aquilo que mais leve para a cama), para minha surpresa dado o que (não) havia lido (conspiração da selectividade?) a esse respeito, a prodigiosa polissemia poética das polaroids barra cupholders de vida americana (sabido, excepto por cineastas estrangeiros só de visita (não os imigrés, atenção), não ser matéria só de território) na subjectivação encarnada dos espectros de um país, um modo, uma condição e um tempo da vida, em crise e em guerra (ao mesmo tempo metáfora e literalidade, porque ambas ominosas no l'air du temps - desculpem lá o frufru), onde a amálgama inextricável do pessoal com o político, na ressonância pessoal de um coming of age, não é uma blague soixante-huitard a desbastar pelo cinismo do fauteuil, mas um dado adquirido dos hangups dos gestos e palavras do quotidiano, o que, não servindo qualquer maniqueísmo ou voluntarismo temático (phiuff (as minhas onomatopeias ainda estão dois acordos ortográficos atrás)), acaba antes por imbuir de uma clenching gravitas as aparentes e efectivas (reiteradamente so) minudências do vivido, colhendo o raro paradoxo de uma contemporaneidade personalizante em dilatação no tempo, espaço e corpos. E deve ter o Springsteen a roer-se um bocado na siderúrgia (notar a minha contenção em não ter optado por escrever antes powerplant). Gostaria também de esclarecer que só escrevi isto tudo para meter a do Springsteen (o que não é menos triste), portanto tirem lá essa cara de enjôo. Ou não.

Pronto, acho que é só isto.
Enfim, claro que desde que rererererevi o Hatari! na televisão no início do mês (e que, claro, ao contrário da merda dos MIB ou do Ishtar ou do Evita, não vai repetir, pelo menos este mês, para poder finalmente gravar, embora nunca veja filmes gravados, mas às vezes gosto de saber que estão lá), tenho andado a ouvir as pessoas na rua a tratarem-me casualmente por bwana. Confesso que me pareceu inusitado de início, mas a verdade é que quando lhes digo para continuarem a fazer a sua vida como se o meu extraordinário poder de atracção carismática sobre eles não existisse, eles cumprem-no escrupulosamente. Estranhamente, quando me faço à população nativa é que a coisa não corre muito bem. Talvez porque não estava no guião, talvez porque não fosse uma fantasia colonial. É o problema de ficarmos cativos, por razões que não nos interessa explorar, em filmes que nos acompanham seguros desde o tempo em que as tardes de fim-de-semana da RTP1 tinham cinema clássico: não há margem de improvisação para um destino cujo fado é o de não se cumprir.
(como é que se grafa o som de um expiro nasal?)

sábado, 5 de abril de 2008

Orçamento rectificativo

Para meu bem, e para acabar com todo o bem, parece que este é mesmo o ano de quase todos os concertos. Enfim, de quase todos possíveis. Enfim, de uma porrada deles. Gil (finalmente a solo, sem as bobagens reggae sub-par, para ver se desfrutamos finalmente "apenas" a pura impureza do afro-samba), Galás (shrieking beast), Monk (shrieking high-priestess), National (sem entrar em histerismo, que não combina com a minha pose seráfica, este é de facto o tempo para os ouvir - lembrete de que nem todo o apelo da contemporaneidade é fatela), Cave (o tempo não volta para trás, e para não ser fundamentalista reducionista e não dizer 86, nem, vá lá, 97, digamos que desde 2001 que a cada ano penamos mais pelo facto, pelo que não esperemos mais por muito mais bonança), Einstürzende (o tempo não volta para trás, já não se arrasam palcos para fazer uma sinfonia com vigas, yada yada), Cohen (viva a necrofilia?), Dylan (viva a necrofilia?), ainda mais Young; digam-me, o que é que faço à minha vida?
Enquanto não se decidem, eu vou a Gouveia para desafiar mais uma vez a besta nostálgica com a presença do santo graal dos descobrimentos sónicos de 70's, os ressuscitados (e pela onda de milagres dessa natureza, suspeito que Cristo só podia ter sido um prog-rocker (brrr)) Van der Graaf. Elido, desta feita não só por conveniência de concisão, o Generator do nome, porque, crime de lesa majestade, a equipa suprema do tio Hammill se reuniu sem a valia imprescindível dos sopros do David Jackson (era o segundo a contar da esquerda: façam-lhe uma festinha), coisa que, tivera eu moral, seria motivo para me isentar de ratificar o estupro à memória sacra. Contudo, a cóclea é fraca, e se cada revivalismo é uma despedida, o atraiçoar da memória do clássico quarteto pela ausência do Jackson servirá sempre como desculpa para diferenciar o que se assistirá de uma mímica frouxa do que já foi a essência sonora do inapreensível, não pretendendo resgatá-la do passado seu guardião onde assim poderá permanecer como farol cósmico de apequenamento de quem não mais se soube fundir com a dispersão atómica e sideral dos corpos (parem-me quando começar a falar de duendes, por obséquio). Aliás, como há dois anos assombrosamente aprendi, mais que isso, estar no centro do furacão Hammill a esfrangalhar-se-nos, seja em que encarnação for, será sempre condição fenomenologicamente absolutizante da valia de estar vivo naqueles segundos interminavelmente ressonantes, pelo que, se sigo, será sem dúvida para ter o prazer de ter os meus punhetistas tropeções retóricos arrasados pelos timbres e vibrato mais existencialmente tectónicos que instrumentos sensíveis alguma vez registaram.


Para além disso, e afora o gosto pacífico do neo-classicismo de câmara dos Aranis e seus piazzollismos de empréstimo (e que melhor credor?), há também a grandeza injustiçada dos Thinking Plague para se fazer ouvir nas encostas da serra. Das raras criaturas a arrastar a ferros aquilo a que se chame música popular, e particularmente a melodia, para tempos modernistas (aquele pitch alienado a ressaltar pelas paredes de um hectágono escuro), e permanecerem violenta e epidermicamente engaging (dos raros do ramo que poderiam com a mesma facilidade ter dado (ou deram) um fabuloso new-wave act ou em indie-rockers (brrr) de culto) conseguem sob a batuta dos harpejos aracnídeos do Mike Johnson e de despejos matemáticos de entulho e ritos sonoros exumados em noites de lua cheia, fazer qualquer coisa, das mais díspares, em que toquem soar irredimivelmente entusiasmante, seja a rockar conselhos da Gourmet Magazine sobre como limpar lulas (literalmente: hey, fuck metaphors),


seja a esgalhar alegorias apocalípticas a partir de leitmotifs como a cruzada albigense, coisa com a qual não sei se seria de deixar mais gente safar-se.


Enfim, enquanto não arranjais maneira de eu resolver os dilemas que este dilúvio purificador e fatalista de oportunidades históricas me apresenta, podeis ficar a debicar longamente estes biscoitinhos que vos deixo, que cada efeméride é também sempre uma despedida.

quarta-feira, 19 de março de 2008

Obviamente, deslinko-o

Aparentemente, o Da Literatura terá granjeado leitores com desatinos algo bizarros, como apontarem o facto de no seu blogroll (aprendam) não constarem alguns notáveis da primeira liga de blogues (as fronteiras parecem ainda não estar perfeitamente muradas, mas não entrem em pânico, estamos a trabalhar com afinco nesse sentido). Até aí, tudo bem mal. O naco de harmonia mundi que faltava é que, pela resposta, o Da Literatura parece fazer por corresponder aos desatinos desses seus leitores with a vengeance.
Nem concebia que a desautorização desse postulado de uma elite comummente identificada e correlativo imperativo de a entronizar incólume na sua estratificação de evidência imanente em todo e cada blogroll, ou pelo menos nos dos correlegionários de casta, tivesse de se justificar com mais que a saudável pluralidade de afinidades intelectuais, temáticas, e outras, que, dentre todo o espectro de saudável coabitação silente do meio (caramba, não há gangbang capaz de tornar o amor blogosférico, ou outro, democrático), seleccione ou sinalize alguns pináculos ou interlocutores com os quais a sua identidade retórica produtivamente se construa publicamente (e gostaria de crer que poucos desdenharão democraticamente com tanto desafogo tanta parte da blogosfera quanto eu). Mas não; Eduardo Pitta desfia, com o aprumo com que se recita uma lição há muito canónica nos manuais, o devido processo que conduz ao reconhecimento inter pares devidamente dependurado nos links da prache, com inatacável e desempoeirada honestidade (faça-se inteira justiça) que resgata do subentendido, tão partilhado quanto não assumido (porque somos todos adoráveis, evidente), algumas das políticas e dinâmicas sociais de estratificação blogosférica que a parecem fazer regida por lei consuetudinária da Cosa Nostra.
Partindo do pressuposto de que uma lista de links ainda cumpra um papel de associação e recomendação simbólica de interlocutores que, pelos mais diversos e livres critérios que formatam um perfil de blog, se entenda destacar de um campo razoável de possíveis, é certo que a meritocracia abstracta (essa ou outra), em qualquer sistema, é um mito de boas consciências; mas daí a ratificar-lhe os enviesamentos (entre a incorporação ou proposição subjectiva e a sedimentação "institucional") há um salto axiológico que não apenas a mera pragmática de saber ascender ao quadro de honra.
Assim, ao que, para quem não soubesse, consta, não para ter, mas para começar por merecer reconhecimento, qualquer newcomer com ambições deve começar por prestar vassalagem aos senhores da terra e ofertar-lhe o que a tradição convencionou ser um link. Por certo que quem não tenha redes estabelecidas (externas e/ou internas) de passa-palavra para se permitir o distanciamento do sujo mercantilismo dos links (situação de não retorno que já não choca esta política de reciprocidade estratificada, porque não constitui uma omissão electiva, mas como se não sinalizasse já um reconhecimento adquirido refastelado à espera do que lhe é devido) dificilmente poderá dispensar tal etapa para se publicar com propósito, isto se dispensar o distanciamento de recurso de não escrever para ser lido. Mas, tendo-se o bloguista estabelecido com seu respectivo grau de notoriedade (logo, ultrapassada a mera lógica de retorno na produção do seu leitorado e apelo reticular), na lógica que esta política reitera, o seu reconhecimento continua, quando muito, recatado na coluna dos favorites do computador pessoal, se o acto inaugural da vassalagem não tiver sido performado. Ou seja, para lá da mera necessidade de alguém se dar a ser lido para ser conhecido, aqui a manifestação da afinidade é função dependente da reciprocidade, tal como o mecanismo de reconhecimento público opera não pela dádiva mas pela dívida: a dívida original de cada noviço para com os antepassados reinantes, que a não ser redimida pelo beija-mão iniciático, tornará qualquer manifestação autónoma de respeito cativa da disposição instituída do despeito. Coisa que, combinada com a ebriedade do poder, de primeira liga, de enunciação e entronização dos seguidores, passa para a paranóia de politburo (qualquer referência política é inteiramente gratuita, esclareça-se), em que a ausência de vassalagem primeira se interpreta como um acto consciente de dissidência e quase contestação da liderança bloguística no trono («rasura», é o termo). Escolhas que cada um faz, coisa com a qual, naturalmente, ninguém tem nada a ver, já que a indiferença aplicada nem é o controlo dos meios de violência do pedaço. Qual independência de espírito, qual juízo desempoeirado da apreciação desinteressada: qual lei científica da gravitação blogosférica, reitera-se, «não havendo reciprocidade, nada justifica o elo». Gravitação de um mundo onde a meritocracia (se quisermos usar a palavra...) desejavelmente concebível não fosse precisamente uma manifestação plural, descoincidente, de interesses e lógicas diversos, mas apenas a legitimação unitarista em segunda mão de um mecanismo estatutário primordial, centrado antes de mais em controlar a reprodução social de um status quo (ou se preferirem a imortal formulação dos clássicos: "és dos meus, és fixe").
Ora, compreenda-se, se isto fosse um arremesso de sociologia espontânea sobre a mecânica de notoriedade blogosférica, seria uma descrição provavelmente assaz certeira. Todavia, o que aqui se produz não é um juízo de facto, mas um juízo de valor. O que aqui se descreve não é uma inevitabilidade pragmática, mas uma proposição normativa, um avé a uma versão particularmente estratificada da realpolitik de um sistema de castas blogosférico. Tanto o é, que o momento auto-irónico do ano é o seu distanciamento da noção de blogues de primeira divisão: é fácil de ver que, não fosse todo este um raciocínio de primeira divisão, e a política do Da Literatura fosse enunciada para todo o bloguista seguir, se calcula que a "autoridade" de links que lhe será ora outorgada, certamente exponenciadíssima face ao número de links do seu blogroll, descambaria por aí abaixo - sendo ainda mais certo que o Da Literatura não tem culpa que os seus leitores-linkadores unidireccionais (como eu) sejam tansos, para mais quando até tem a ombridade de os alertar para o facto.
Portanto, mesmo com a inércia de não partir a cabeça lançando-me contra factos consumados, não é indiferente não deixar grafada a concepção de possibilidade de outros modos, para lá da circularidade anquilosante, de produzir discurso e reconhecimento reticulares neste meio (é democrático, e também ninguém tem nada com isso, a caixinha de areia dos inconsequentes); pelo que, da inestimável posição de nada ter a perder ou ganhar, deixo apenas registado que o Da Literatura e a política feudal que aqui abnegadamente simboliza e diligentemente reitera deixam, com cordata discordância, de estar na lista de comendações que pelas inefáveis diversas razões me calha assinalar, (des)reconhecimento notwithstanding, nesta promessa cada vez mais truncada de esfera pública.
Gesto, poderíeis argumentar, materialmente injusto considerando a amplitude não denodadamente assumida desta política pelo resto da blogosfera. É certo, mas a sua potência é aqui meramente simbólica, na face de uma oportunidade enunciativa cuja lógica, e não cujo autor que por tal se não vê molestado, é visada. Nada obstará mesmo a que possa reincidir na sua leitura episódica no mesmo recanto ensombrado de um cibercafé remoto, para não deixar vestígios cibernéticos, em que o Da Literatura consultará (ou não) os seus notáveis não-linkados; essoutra, quem sabe mais límpida, forma de recomendação (abrutpus dixit ad exhaustiore(?)). Felizmente, nada há que temer na Bastilha (o mundo real é tão reassuring): hoje somos apenas um, mas amanhã continuaremos a sê-lo.

sexta-feira, 7 de março de 2008

E vão bardamerda os senhores da Spark ao serviço da EMEL que me multam logo que passam 5 (ou 10) (ou 15) minutos do tempo do parquímetro

É já fastidioso acompanhar a blogosfera quando descamba nas suas derivas histéricas em resposta à quase sempre explosiva associação da pobreza socio-semântica do meio com a tentativa de o dignificar discursivamente, explorando nos meandros da sua formatação algo mais que a auto-transparente delicodoçura com declaração de interesses apensa e enfeitada de smilies para cintilar no manto do céu epistolar a estrela pindérica das nossas inquestionáveis boas intenções (quase tão fastidioso como a fixação, não menos rígida, de cartilhas de dissensão discursiva ao suposto politicamente correcto).
É por isso de ressalvar sempre uma iniciativa capaz de louvar a produção de discurso enquanto petardo cultural de desarranjo das várias grelhas de objectificação das "evidências" do real, em particular das suas encarnações sociais em torno de grupos ou categorias classificatórias (trata-se, portanto, de algo mais complexo que o politicamente correcto e incorrecto dos provocadores de plantão).
Não é nada menos que isso que diviso numa das recentes (enfim, trabalho em temporalidades proto-geológicas, é sabido) edições do catálogo de ecletismo sonoro, sempre a testar os limites da sua agregação nuclear, que passa pelo (eter): a lenda punk do Pinhal Novo, os Comme Restus. É que, para além da valorização de um formato inclinado, por excelência, para a ruptura com os consensos sociais de discursividade assisada (e muito mais com os consensos, que com os objectos dos consensos (o que os torna discursivamente muito mais à frente)), e mesmo desconsiderando o mérito musical da amostra em questão (o momento free-jazz, com o Ayler em guest-starring (grande e secreto furo internacional), de «Eu xamome Ãtónio», sendo a instância mais eloquente desse facto), aquilo que torna esta divulgação um acto blogosférico exemplar é o facto de, não fôra o divulgador ter a louvável capacidade de distinção entre os objectos de um discurso e os efeitos simbólicos desse discurso (ou seja, ser capaz de operar ao nível do meta-discurso punk), o mesmo teria todas as razões para repudiar a produção desta pandilha como incorporando a incitação ao ódio de uma minoria social à qual ele pertence (como saberá quem tenha acompanhado as digressões sónicas e velocipédicas do cj), na superficialmente infame «Morte aos ciquelistas» (veja-se como, logo pela escolha do objecto de ódio, se descontrói, por efeito de diversificação subjectiva, a tão deprimente e soporífera, de paupérrima, cartilha de desprezo social naturalista que vai mexendo letargicamente, também, a blogosfera (paneleiro pra cá, preto pra lá, e um cigano (não se arranjou nada mais aqui?), ou um judoca (that's not gonna work...) ao longe, if we're bored or Arroja's in town), assim demolindo o menu sensaborão que a história nos legou, a facilidade pavloviana de sinalização do ódio pela veia essencialista, a carga dramática que apenas três ou quatro válvulas de escape social inevitavelmente concentram na nossa arrevesada canalização de maus instintos, e os vícios e iniquidades retóricas de base de serem sempre e apenas os mesmos a serem objecto à vez da sobre-protecção e da contestação do politicamente correcto pelos discursos situados de quem não tem his ass on the line nesse enjeu, assim capacitando-nos para irmanadamente nos reconhecermos pluralmente odientos e odiados e daí retirar as devidas consequências).
É, portanto, por esse exemplo de auto-retracção identitária ao pouco construtivo automatismo de ler um discurso questionante das estruturas semânticas com a mesma grelha automática com que se (não) encaixa um ataque socio-pessoal, que não posso deixar de me associar a esta iniciativa exemplar. E não pensem que o faço gratuitamente, com a descontracção de quem não está implicado na parada. Precisamente, declino exemplarmente o exemplo, sabendo bem que já visado na quinta faixa me encontro eu.

(devo ressalvar que, desta feita, numa provocação muito improfícua, apenas frustrante (como já terá percebido quem seguiu o link prévio e, inevitavelmente, precipitou atabalhoadamente o cursor para o botão "comprar"), ao contrário do anunciado, a obra dos Comme Restus não se encontra disponível no link providenciado. A editora Sandes de Choco (sic, e muito bem) não quererá a considerar uma reedição em digipack de luxo? - já se justificava, caramba. Quanto mais não seja, falos daqueles já escasseiam na montra pedagógica da nossa arte urbana: há que revivificar a sexual awareness da juventude portuguesa - com a propedêutica serôdia dos Morangos com Açúcar, a tornar a crica e o cacete manípulos para realizar TPC's, o presidente da república vai ter muito mais anos para demandar como fazer os portugueses ter mais filhos*)
.
*informam-me que nos Morangos já se fode. Lamento, mas não abdico. Esta line deu-me trabalho, suei por ela, e não a descartarei como um reservatório de amor desperdiçado. Sue me. Esse é, aliás, o processo por difamação pelo qual gostaria de ser levado à barra do tribunal.

I say... too much, and not enough

É já evidente que, por baixo deste meu exterior rude, monástico, empedernido, estóico e distanciado (grunho, diríeis), bem como do saiote que o adorna, eu me melo todo quando um desses mecanismos instituídos de reconhecimento social blogosférico derrama a sua magnanimidade sobre o meu cucuruto adepto faz de conta que não de todo o baptismo que o redima do seu exílio indeciso de toda a agremiação humana; quase tanto quanto me amofino à sua vista com a carga de trabalhos com que a atenciosidade me sevicia a natural inércia desconjuntada. Porém, para lá de todo esse imbróglio existencial, esta gentil intimação a inscrever-me no mundo dos vivos, por via da enunciação das minhas 12 palavras favoritas, causa-me sarilhos incontornáveis. Palavras, são nomes de coisas e noções que gente com capacidade expressiva balizada pelo acúmulo sagaz de valências linguísticas civilizacionalmente dispostas emprega com a justeza e imaginação que o domínio criativo de um património comum pode exponenciar à reconversão de toda a paisagem e infinitude de arquitecturas de ser que nos foi dado não poder abarcar numa vida inteira: logo, uma criatividade metafisicamente fútil, mas mais que adequada à distensão de world-views de seres forçados ou acondicinados aos limites existencio-territoriais que lhes desenharam as regras de um mapa-mundi (no meu, madagáscar está neste momento soterrado sob um 1/3 de batata frita). Qual é então o meu problema? É que eu não digo palavras, eu digo dispositivos linguísticos de nomeação; como não digo trela, digo fio de cão. A minha memória está em decadência a uma velocidade cada vez mais alarmante desde que entrei na idade adulta, e o gajo que me assoma em suferfícies espelhadas, e mais ninguém, sabe que já lá vai por demais o tempo. O meu vocabulário a cada momento é o que consta dos textos (e por textos entenda-se legendas de sitcoms) que li nesse dia, e será substituído pelos textos do dia seguinte. Por conseguinte, é com esse diminuto vocabulário em constante substituição que eu tenho de tentar organizar formas expressivas que restituam o sentido comunicacional que o comum dos mortais apreende num só vocábulo, empilhando assistematicamente palavras (como vocês dizem) sobre palavras na vaga esperança de conseguir competir com o potencial descritivo de uma fotografia realizando um retrato-robô tendo tido sempre 3 à rasquinha a educação visual. Como tal, não por acaso, as únicas duas palavras de que posso hoje dizer que gosto mais (porque hoje as li e até me deitar, por enquanto, ainda as recordo), são palavras que amalgamam várias numa para construir o seu sentido, ou que combinam numa um sentido plural ou quase paroxístico: instrumentos reflexos do meu penar expressivo de cada dia. Assim ensimesmado; assim ledo. São palavras que, por diferentes metodologias, contêm praticamente frases inteiras dentro. Ensimesmado, na elegância enternecedora da sua auto-descritividade desarmada, é de uma beleza tão franca e rendida à inteligibilidade que é quase um ideograma (e o meu eufemismo de eleição para masturbação). Ledo (apesar de o Camões a ter galderizado um bocado) é um daqueles pequenos prodígios expressivos de concisão, que em quatro letrinhas apenas contraria a pretensão racionalista (diferente de racional) de decretar a determinação conceptual dos sujeitos a significações inequívocas e unidireccionais, e mais que polissémica, é uma palavra quase paroxémica, capaz de sagrar em unicidade linguística a complexidade existencial de estados contraditórios. Melhor que isso, só a paralinguagem, com a qual realizo com estonteante eficácia 90% das minhas conversas com a pura omnipotência do fonema primal (hummm), espécie de reticências modulares. Imagino que o meu sonho seja que, ao pleno oposto da prática retórica que me molesta e viabiliza, um dia toda a interacção linguística pudesse ser fixada numa minimália de vocábulos singulares, cada frase concebível destilada numa palavra, cada conversa uma troca sequencial de vocábulos isolados. Aí, finalmente, com as minhas lacunas recorrentes, os meus esforços expressivos seriam estruturalmente indeferidos, e poderia legitimamente repousar imperturbado. Mas até lá, fear not, retorquo do fundo do meu dilecto ensimesmamento com toda a possível de rapar do tacho sensação invasiva e expansiva, sem manípulo de contenção, de exultação, que um aceno me confere ("alegria", if you must).

Nous n'avons jamais (pas) étés modernes

Como é, por razões a desconhecer, imperativo, já vou tarde, mas não tarde demais. Parecerá igualmente que o André Dias está a ficar com uma quota fixa no citation index do pedaço, mas garanto que não ando a trocar favores de natureza dúbia senão com todas as outras pessoas com quem ando a trocar favores de natureza dúbia. É que o cavalheiro, após ter reiterado, com o ciclo dedicado à dita Nova Escola de Berlim, a valência dramática da excisão da ostentação dramática, de que este excerto é a evocação mais eloquente, lançou mãos a novo empreendimento de programação, com sentido de oportunidade e dedo aprumados, apontando a um dos ainda e cada vez mais (há quanto tempo não digo que o tio Michel é o maior?) temas candentes do pensamento social contemporâneo (whatever) - a biopolítica. Intitula-se o ciclo "Figuras da Autópsia" e abriu ontem, na cinemateca, com o Primate do Wiseman. Estais bem a ver, certo? Um portento absolutamente impressionante (em todos os impressionantes sentidos) de trabalho sobre a matéria documental, de radical materialidade, capaz de lhe extrair pela razão expressiva uma lucidez conceptual de abstracção fulgurante (sim, isto não quer dizer nada, mas tenta).
Ao debruçar-se sobre os modos de organização da pesquisa de cientistas sobre primatas num centro de investigação, e os modos de relação estabelecidos entre esses dois corpos de agentes no processo da sua interrelação finalista, está-se veramente a fazer uma aproximação eloquentíssima aos modos socialmente consagrados de acesso à "verdade", integrando na factualidade nua da sua via metodológica todas as imponderações que foram socialmente externalizadas para os recintos privados da produção científica, ao mesmo tempo que externaliza da sua abordagem a produção de juízos morais explícitos sobre as processualidades documentadas.
Essa capacidade de resgatar limpidamente todo o agonismo subsumido no paroxismo na acção (humana) será, aliás, porventura a sua maior força. Porque, como efectivamente se reitera nas várias leituras do filme, se ao primeiro olhar, armado pelas grelhas espontâneas em que fomos socialmente criados, há um quadro dicotómico de agentes e possíveis cristalizações axiológicas em seu torno na narrativização estrutural deste processo, aquilo que se explicitará crescentemente é, de alguma forma, a organicidade indivisível de todos esses elementos sistémicos.
Numa estrutura relativamente cíclica, aquilo que vai sendo explicitado numa cadência impiedosa é um processo integrado de objectificação da vida em nome da produção de saber, da pesquisa comportamental à vivissecção, e essa é a primeira iluminação da película: o extremar de pólos sensíveis de relação com os símios entre as manifestações de afecto vivo no início e a dissolução metódica dos seus corpos no final, não demonstra de todo a sua oposição, mas faz discorrer a sua absoluta continuidade. Aquilo que isoladamente são apreensíveis como opostos morais, são neste espectro processual reconduzidos a diferentes etapas de um mesmo processo de objectificação, que pelo poder da sua institucionalização, foi incorporado pacificamente pelos seus actores humanos (muito curiosa, e sintomática para quem se familiarize com a literatura de etnografias de laboratório (de que isto é quase uma adaptação ao cinema... ('Hollywood' não pode ver nada...)), a emergência da expressão estética dos cientistas como primeira reacção ao visionamento microscópico das lamelas de secções de um cérebro após a vivisecção (ainda que aqui a continuidade fílmica reforce a associação dos dois momentos)).
A ironia do título "primata", recobre igualmente a elisão, dir-se-ia, quase latoureana, de qualquer pressuposto de diferenciação entre os primatas em presença, humanos e símios, na sua apreensão documental. Essa distanciação analítica de um dado base da consciência humana, o da sua especificidade (e superioridade) é, aliás, reiterado simbolicamente na captação dos corpos, com sequências, não óbvias mas suficientemente legíveis, de grandes planos dos rostos, quer dos cientistas (alguns, juraríamos que não inocentemente, com puros gestos semioticamente carregados, neste contexto, como a cofiar ou coçar a barba, ao que a política pilosa da época dava amplo terreno), quer dos símios, e captações de sofrimento animal (que nem são as mais "inteligivelmente" chocantes) que configuram perfeitas pietàs zoológicas em nome próprio.
Essa elisão do primado do humano nesta configuração social não é, aliás, mais que a manifestação mais provocante do paradoxo maior e mais genial deste verdadeiro método documental. É que, em larga medida, o que Wiseman faz é quase replicar sobre a documentarização de um processo de objectivação científica, um olhar objectivista (mas, etica e esteticamente, auto-consciente) sobre esse processo e os seus actores; e o poder que essa objectivização tem na transformação da legibilidade da acção de agentes humanos desprovidos de retórica justificativa no exercício de poder objectivista sobre agentes primatas desprovidos de qualquer expressidade legitimada (porque existe, apesar de tudo, um discurso inerente a toda a paralinguagem animal que é, pelos agentes humanos, inteiramente elidido pela incorporação destes objectos vivos numa finalidade absolutamente instrumental) é devastadora. E se, à superfície do olhar, tal pode transparecer como uma violência discursiva exercida sobre os cientistas ao replicar a violência (ainda que tida por neutra, ainda que tida por necessária) muda exercida sobre os símios, essa é uma consequência lógica (não "retórica", porque não propositivamente condenatória, como a inserção de vários fragmentos "auto-explicativos" da pesquisa ilustra, do mais detalhado ao mais carta branca (a "utilidade da inutilidade")) do isomorfismo ontológico que emerge do postulado de continuidade e indiferenciação na fixação da "evidência" documental. O único excerto sob a forma de explícito depoimento justificativo funciona, na verdade, como outra detonação irónica, na medida em que sugere a impotência desse discurso normalizado em poder substituir-se à legibilidade da lógica sistémica e processual que move e integra, numa espécie de igualitarismo radical, os agentes em presença: é nesse sentido, também, que se impõe a abstracção do processo de produção de saber como matéria fílmica, e não o juízo sobre os agentes em questão, ou sequer a sua actividade concreta.
Seria, de qualquer forma, insustentável (por definição) arguir da isenção de um ponto de vista na organização expressiva do material documental; é aliás nótoria, na sua própria ciclicidade e crescendo, uma descida dantesca pelos círculos vários de uma contínua objectivação daquelas formas de vida. Contudo, o facto é que esse ponto de vista, podendo parecer evidente (mas não o é para toda a gente e suas razões, e funcionará, idealmente, como ponto de partida para o restart consciente dos nossos raisonnements), não emerge de uma qualquer exploitation ou retórica moral, mas é, mais uma vez quase em lógica de experimento, o resultado experimental de uma aproximação metodológica a um campo do real, organizada expressivamente. E a sequência mais poderosa de explicitação dessa capacidade de recuperar a unicidade de contrários que estão subsumidos em todos os dados adquiridos que fizeram a "normalidade" deste processo instituído, a cuja visibilitação "indevida" somos atirados, está na sequência pós-vivissecção de um pequeno macaco, quando a sua cabeça decepada, com o cérebro exposto, é colocada num viço, e é alternadamente captada de cima, com a centralidade superior da razão científica focada inteiramente no cérebro, na secção objectivada que lhe fundamenta a acção, e depois num ângulo de baixo, onde ainda está exposto o facies como vestígio simbólico ineludível daquilo que há poucos minutos incorporava uma manifestação de vida.
Por estranho que possa parecer a quem visualize a imagem, isto não é manipulação emocional, mas é o confronto nu, e experimental, da nossa percepção, com campos ópticos/perceptivos que se convencionou manter separados. As consequências de adjudicação social do juízo produzidas pela sua unificação documental são, de alguma forma, a consequência experimental da exposição total da nossa sensibilidade e razão a essa unidade complexa de sentido. Sim, de alguma forma, quem assiste a este filme não é menos parte do seu experimento perceptivo, com o mesmo estatuto ontológico dos agentes que foram fixados no ecrã (com a violenta dissociação e recombinação complexa de reconhecimento com seres, biologica e socialmente, postulados como diferentes que isso implica), e isso faz dele uma experiência ética, política, estética e cognitiva que confere o mais potente sentido à expressão "dar a ver".
Porque são as implicações perceptivas da partição visual da especialização do saber e da prática modernas que são aqui desafiadas como pré-condições socialmente desonestas para a manutenção de modos de vida a expensas da consciência de todos subentendidos necessários à sua reprodução. Facto com o qual, politicamente, se pode querer activamente viver em paz: e serão provavelmente muito poucos os voluntaristas ou temerários capazes de teoricamente (muito provavelmente, o cadeidoscópio segmentado das práticas modernas tê-lo-á também já tornado virtualmente impossível) querer habitar essa plena apropriação consequente das implicações do seu modo de vida. Mas nesse sentido, nesta política da imagem, contra os hábitos inconscientes de selectividade (própria ou instituída) da (in)visibilidade do real, não podemos escapar à assumpção honesta e consequente de que, para aqui, só não olha quem não quer ver; e esse é apenas o primeiro passo para pensar, e não reagir - sendo a replicação behaviorista pelos espectadores de uma univocidade significante lida na película, o resultado experimental falhado deste tipo de método fílmico, que assim contém metodologicamente também a chave da sua própria invalidação.
Para os (depois disto, ainda) interessados, o curto ciclo ainda decorre na Cinemateca, incluindo o monumental (é que não parece haver outro adjectivo) Shoah, este sábado, e incorpora também um ciclo de conferências na Culturgest, de que ainda restam uma ou outra sessão.