terça-feira, 15 de novembro de 2005

O Poema e a Canção

 

Tão despida como a beleza indevida de um corpo desamparado na vulnerável limpidez involuntária da carne, é das canções onde o alçapão de musicar um poema, Poema, nunca rangeu sob o pé fincado do cantador.
Coisa fora de moda, como o cantador, que pouco grava, persiste em portar bigode, e não tem a legião de culto que o evocador instrumento que acolhe na garganta, e gere com cabeça e coração, justificaria.
O poema reza «Conta-me contos, ama...».
A canção repousa aqui:

«A obra-prima clássica será provavelmente “A Cantar ao Sol” (isto na ausência escandalosa de uma reedição do “Olho de Fogo”). Porém, quando este outro disco vai parar à grafonola, mon couer balance (e não é, garanto, efeito da capa, a testemunhar os efeitos duradouros do furacão “Emmanuelle” no imaginário erótico português – está bem, “lavrar em teu peito”, mas não sejamos tão literais..., ainda para mais com o Janita em foto polaroid com cara de Belchior marialva na parte de trás).
Bissexto, como a maioria das criativas criaturas daqui (acrescentemos Fausto e fica a conversa arrumada), poucos discos temos para nos regozijarmos com a voz reputada mais exponencial da masculina parte da música de inspiração tradicional portuguesa. E contudo, reputação bem redutora, se não lhe acoplam os méritos de um compositor de excepção, com um universo sonoro único e largamente inexplorado, em muitas das suas facetas, por qualquer outro criador deste burgo. E de facto, menor, e por isso redutor, parece ser o acolhimento que o autor recebe no panorama da música popular portuguesa, que talvez a sua recorrente ausência prolongada não justifique plenamente. Isto porque um só destes dois discos granjeia-lhe lugar no panteão, e é da mais elementar justiça relembrar o lugar que este disco merece na nossa memória colectiva, quando (sendo já uma sorte estar reeditado) anda maltratado nas promoções das grandes superfícies no meio das maçãs golden e dos êxitos dos Roxette (antes as golden...).
Para além da herança do canto alentejano, sempre representado, mais ou menos (em geral mais) ortodoxamente, em alguma faixa, para efeito delicioso, com a voz de Janita a ornar a massa sonora dos coros, essa herança reclama as suas genealogias num mediterrâneo alargado às Áfricas da cercania, tão facilmente menosprezadas no lastro da nossa história como os mouros escorraçados. Em instrumentação e composição essas terras são resgatadas para o nosso presente sonoro de forma sem paralelo no panorama nacional. Mas o seu mérito não é o de exegeta histórico de ocultas heranças musicais. É o de (re)criador fremente, em canções de singular beleza, poesia e maturação, dos universos de que se reclama, ao ponto de incorporar o que assim deixa de carecer de decalque de aprendiz. A música de Janita É o que convoca, e mais, assim não o mimetizando. Para supremo exemplo dessas capacidades incorporadas ouça-se à incredulidade a destreza natural da assombrosa “A uma escrava que lhe abriu o sol” - num arranjo imaculado (e aquelas vozes, aqueles requebros...), que instala a melodia num requintado tapete persa com baixo à mistura.
Para supremo exemplo de um compositor e cantor que tem no corpo tudo de quanto carece, a quietamente revolta melodia que encarna o poema de Pessoa “Conta-me contos, ama...”, como se a palavra não bastasse, transporta, a capella, para o mais íntimo da desilusão humana, o conforto fugaz de ser partilhada.
Onde porventura o “A Cantar ao Sol” ganhará, será na maior consistência do material. Efectivamente, a adaptação da “Mulher da Erva” do Zeca Afonso soa tortuosa para ouvidos conhecedores do original... e em perfeição daquelas não é avisado mexer. A própria voz parece denunciar no início demasiado voluntarioso da canção o forçado que a homenagem, conquanto sincera no propósito, apresenta nos seus efeitos. Até o arranjo de José Peixoto soa meio trôpego face ao trabalho inspirado que apresenta nas outras faixas onde pôs o dedo sabido. Se há mais uma ou duas faixas que não fazem justiça ao excelso que no percurso das onze se nos pode deparar, o grosso do disco oscila entre o belíssimo e o superlativo, e ainda com a calorosa reminescência do saudoso Mário Viegas em récita na faixa “O poder”.
Ainda que não tendo comprovado a performance que apresentou nos seus mais recentes trabalhos, num concerto de há dois ou três anos, a que tivemos o privilégio de assistir, estritamente a partir de percussão e a guitarra eléctrica do Mário Delgado (muita atenção a este cavalheiro), Janita conseguiu plenamente reconstruir o seu universo sonoro, que de outras âncoras pareceria a priori dependente, dando a ver que a relevância continuada deste senhor insubstituível, e falho de reconhecimento, clama de alto para que se voltem os ouvidos para o pouco que, esperemos que apenas por razões insuspeitas (os silêncios forçados de Amélia Muge, que tem, que saibamos, pelo menos um trabalho com vozes búlgaras, feito concerto há mais anos que os que queremos contar, por ver a luz do dia, deixam-nos em sobressalto sobre os motivos de qualquer silêncio), nos vai deixando ouvir do que só ele comporta lá dentro.»

3 comentários:

Anónimo disse...

E também de posts assim se fazem os dias bons (são como o bom tempo, não mudam nada, mas animam).
Acho que o blogue tem muito a ganhar com estes links. Como ando distraida, só agora encontrei o «Sol Negro» no Phono. Uau! Há indícios (teoria por comprovar) que as palavras te saem mais aconchegantes (menos túmidas?) quando escreves sobre música (a «tua», claro), mas ali superaste a expectativa. Que o saudoso amigo brasileiro tenha oportunidade de a ler. Do meu lado, quero ouvir o ambum um destes dias...

Anónimo disse...

viva!
pois é julinho, o tipo é tão injustiçado quanto anacrónico... esta última talvez leve à primeira, mas deixa-me que te diga uma coisa: ambas levam a que gostemos muito mais de Janita. Não será?

A bem dizer não faço ideia... uma coisa é certa, a música é, muita dela, sublime. Isso é que, na verdade, deveria bastar. Não será?

Agora acho que sim.

Anónimo disse...

Ora, bons olhos o leiam!
Olha que...eu também cá me parece que sim. Parece-me que existe uma certa espécie de gosto meio culpado de a nossa dedicação a certa criatura ser coisa rara. Fá-lo injustiçado, principalmente quando sabemos (ah sim, sabemos), que ela o merece. Mas, sob certo ponto de vista, parece que estreita a comunhão que ela oferece, tão singela.
Para a estultícia das orelhas distraídas, anacrónico, sim. Para quem, por exemplo, assistiu àquele singular concerto de Almada que sabemos, não só sublime como desafiante.
Nesta condição de dedicação truncada, ficamos pois na posição da corda bamba: entre o gosto dos happy few, como se nos dera não só o prazer puro da sua música, mas o merecimento de a gostar, e o alerta à perda que possam estar a sofrer os tímpanos alheios, a não pôr os ouvidos no senhor. Depois disso, podemos estar em paz com a consciência. E com o Janita. É a melhor condição...