Broken stand for a new smile
«As obras são feitas e apreciadas em contexto. Se tal facto é inescapável, ele, contudo, não as aprisiona num quadro fechado de relevância musical: o que faz é multiplicar os critérios e formas de apreensão de uma obra para construir diferentes formas de validade, sendo que, para os sentimentais que reclamem na ressonância subjectiva dos interiores (e só nessa) validades transcendentes, essas são matéria que escapa à sageza da palavra. Smiley Smile, no seu contexto histórico, foi apreendido como o subproduto da obra-prima-suprema-que-o-não-foi, ainda que tenha passado, muito tempo depois, a ser a obra-prima-que-não-foi-mas-deu-a-que-é, o Smile ressuscitado de Brian Wilson, em 2004: distinção importante, pois para quem suspira pela perda do mito escancarado por uma reconstituição que não pode fazer o tempo e o génio voltar para trás esclareçamos: o Smile-que-não-foi, é também o Smile-que-nunca-será – o mito é vosso, e sempiterno. Mas se só a ele se querem agarrar, a perda é vossa. Primeira lição: os mitos são incapacitantes. Foram-no para a obra-prima-que-o-não-foi, abandonada por um Brian Wilson em desespero de causa pelo aquém da sinfonia pop a Deus que as suas mãos não conseguiam, em toda a perfeição da sua inspiração, veicular. E foram-no para o dito subproduto, que em seu lugar apareceu, este menosprezado Smiley Smile, que para substituto de obra suprema não enchia as medidas inapreensíveis do mito (desse ponto de vista, os Smiles das nossas vidas são feitos para não existir). A vantagem do tempo é que asperge de olvido os cérebros e os objectos sobre os quais se debruçam. Vejamos: estamos em 2005, e há reedições catitas dos Beach Boys nas prateleiras. Que tal a juventude inocente destes mitos, ou os ouvidos que dele já conseguiram extirpar exigências feitas para não ser cumpridas, pegarem no “subproduto” e ver o que nos diz a grafonola do dia? Se esses cérebros não conseguirem aperceber-se da maravilha que este subproduto é, não tenho muita esperança no futuro... Ainda para mais que o subproduto é uma maravilha que nem “A” maravilha do Smile ressuscitado deve apagar. Senão vejamos... Há obviamente os fragmentos do Smile-que-não-foi que apareceram no Smiley, e ressurgiram no Smile-que-é: “Good Vibrations”, “Heroes and Villans” (esta reconstruída no Smile-que-é – Dance Margarita! Don’t you know that I love you!), “Vegetables”, “Wind Chimes” e “Wonderful”. Comparações são inaceitáveis, porque há comoções nos limites da voz presente de Brian Wilson que não podem (efeito de contexto) deixar de validar a sua expressão, por contraponto à imaculada vocalização dos Beach Boys. Quando a sua voz cansada ajuda (como os santos) no caminho descendente da melodia “and Sonny down snuff I’m alright by the heroes and villains”, só reclama o renitente aconchego infantil de um beijo na testa. De facto, estamos a falar de diferente música quando falamos das versões que beneficiaram de reconstruções ou, pura e simplesmente, foram re-integradas numa unidade-Smile que lhes confere novo sentido e fluidez. Essa aliás a suprema surpresa do Smile-que-é. É que se o material constituinte estava já largamente disseminado numa infinidade de bootlegs, é a sua conjugação num sentido de Obra que dá corpo ao opíparo e inigualável festim sonoro, e que os fragmentos por si nunca nos poderiam ter feito imaginar. Pensem nesse hiato, no que não conseguimos construir com todas as peças do puzzle nas mãos. Esse hiato foi o precipício em que tombou Wilson, e o génio que o reergueu para esta obra maior. E no entanto, se há quem, ouvindo o Smile-que-é, descarte as geniais (g-e-n-i-a-i-s) versões Smiley de “Wonderful” e de “Wind Chimes”, francamente não sabe de que cores mutantes se pode pintar uma pauta, a transmutá-la em paisagens e sentimentos outros (ouçam em particular as duas versões de “Wind Chimes”: se cada uma não resgata sentimentos arquivados em diferentes partes do vosso cérebro, bem podem empenhar os ouvidos). A também repetida “Vegetables” é convertida em exercício estilístico bem diverso nas duas versões (sendo que a primeira confirma que nem a mascar vegetais o McCartney é capaz de manter o tempo – vá, indulgência, uma pequena irritação de estimação, quem não a tem?... bom, ou várias...). “Good Vibrations”, era a canção levada aos seus limites constitutivos, numa explosão vibrante de cor sonora e inventiva, e é agora uma ode à resistência e adaptação à passagem do tempo, com a voz de Brian a sublinhar o que é do que foi, em fragilidade assumida. E diz-se cepticamente: e o resto do Smiley, não resgatado do Smile-que-não-foi, é para encher! É cansativo repetirmos, mas: não se pode ter “Ouvidos” e descartar, sem mais, o magnífico arranjo fantasmático de “Fall Breaks...”, o groove charrado em derrapagem alucinada de “She’s going bald”, ou, principalmente, a desarmante e delicada “Little Pad” na sua modéstia tremida a soletrar em pura melodia o cantar aquém todos os paraísos almejados (e a sobreviver a demasiado LSD no estúdio), e a simples melodia da solidão esperançada que corporiza o querer, em “With me tonight”, cujo único verso apenas dá o mote para que o dizer de uma melodia nos preencha de sentido além do que pode ser articulado. Sim, é verdade, sobram “Gettin’ Hungry” e “Whistle in”: uma qualquer outra faixa redime-as e deixa troco. É motivo para nos chatearmos? (schhh – aqui para as toupeiras dos mitos perdidos – nem tudo é aquém nos infindos bootlegs – procurem a antiga versão do “Wonderful” em cravo e voz, perdida nos arquivos recônditos do Smile – a essa sim, provavelmente nada faz sombra, porque da beleza em transcendência directamente se decantou).»
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