sexta-feira, 8 de dezembro de 2006

Ordet

Revi-o há tempos num ciclo dedicado ao (e programado por) Alberto Seixas Santos, no cada vez mais deprimente Quarteto (apesar das suas óptimas intenções) , e algumas coisas me surgiram para perceber a renovada devoção ao filme, algo ao arrevesado do que simbolicamente lhe cimenta o renome, e agora deu-me para expurgar duas.
Primeiro, não será tanto questão da crença (na especificidade cristã), quanto da fé. Isto no sentido de que se trata da ausência da graça divina enquanto perda de um sentido material para a fé (que pode representar tanto o seu culminar como a sua negação), da clausura histórica em que a leitura da graça nos destinos do mundo tombou no desencanto realista, e a fé deveio conformada à crença limitada a espaços de não apreensão material da imanência (a crença em Deus realinhando-se pela sua ausência, transmutando a natureza da fé, como que descomprometendo-a). É aos desapossados da fé (ou os presumíveis crentes assim desnudados), nas suas muitas modalidades subjectivas, que o aguilhão dos possíveis da fé fere de comoção, na distância inapelável da fé na crença que os não redime no seu universo sem salvação. Nesse sentido, na radicalização absoluta da ontologia subjectiva da fé (subvertendo o conforto da crença distanciada, enquanto mera representação), pode ser como que um filme de sentido incorporado (literalmente ontologizado): seria a fé de quem o apreende que poderia ditar o sentido da fé que ali perpassa.
Agora se me insinuou: como se fosse não a antítese, mas como um agraciado fratres fílmico da prisão terrena dos corpos no Silêncio do Bergman.
Enfim...
Segundo, e mais coisa e tal, para lá daquele aparente relativismo receptor: para espectadores historicamente avisados, a permanência da devoção à matéria fílmica nunca passa exclusivamente pelo desenlace de uma narrativa (seja com Clouzot a pedir na própria película para os espectadores não desvelarem o final das Diaboliques a espectadores futuros, seja com quem é Keyser-Soze, salvas as devidas quaisquer coisas), por mais extraordinariamente ousada que se apresente. Nesse sentido, para esses visionadores, o signo final sob o qual se inscreveu historicamente o filme, diria que (perdoe-se a dupla heresia), passa a funcionar quase como macguffin, como leitmotif antecipado que abre o campo para a totalidade expressiva deste cinema. É no passo da construção do espaço de possibilidade da suprema ousadia que reside o génio. (talvez, como que radicalizando e polarizando estética e intelectualmente, entre o realismo e a metafísica, o sincretismo que habitava a não pronunciação sobre a ordem do real que colhia toda a ambivalência da crença na feitiçaria em Dia de Coléra...talvez...qualquer coisa por aí..., absolutizando assim também a fé como motor operatório da recepção ontológica, nossa crença, da narrativa)

A construção dos possíveis da fé deposita-se na irredutível materialidade dos passos que anunciam os impossíveis, e na reversão de novo para a matéria dos frutos da graça divina. O sagrado só é inaudito (motivo ou produto da fé) na mais terrena clausura. Só quem a ressente, pois, mais uma vez, é que pode capturar plenamente o drama visceral da ausência de Deus, que apenas intelectualmente podemos conceber presença (a vera fé sendo a resposta visceral a essa ausência). Ora, desenhar tudo ao mesmo tempo como matéria e anunciação (por exemplo, o plano das escadas na colina/escada ascendente, sempre trilhadas para buscar o irmão doente mental trasviado/profeta; o constante ruído ominoso dos elementos terrenos) é que é o segredo da alma na película.
A prova final? A graça reverte-se no beijo mais possuído e voraz da carne do outro (e quem me dera ter o plano exacto em que o beijo literalmente abocanha, a esconjurar desesperadamente o espectro da perda, a presença da carne matrimonial). Esse é o grande plano que o macguffin oculta. E sem o que ele implica, nada podia (continuar a) ser. Porque não há milagres antecipados.

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