sábado, 2 de dezembro de 2006

Circuito fechado

Débil de vontade, deixo-me ser arrastado até ao Jamaica (em Lisboa), essa deliciosa relíquia taxidérmica de fauna e sociabilidades dos eighties. Entre os comoventes grupos de cromos grisalhões (don't look at me) a encontrar no reduto da resoluta constância o espaço de respirar num mundo tormentoso de mudança, certas outras faunas ainda se propagam, que não sendo originárias, nestes terrenos formam um clássico tipológico: por exemplo, o ventosa (chamemos-lhe assim: aceitam-se outras designações).
Dança-se (enfim, the ladies do, eu finjo com um ginger ale estar entornado o suficiente para legitimar com inimputabilidade eventuais tristes figuras, justificadas, na verdade, por falta de espinha dorsal - como seja menear a anca em jeito de espasmo involuntário ao som dos manos Gibbs), e vê-se o ventosa aproximar-se, com toda a corporalidade em denúncia antecipada de intenções, ensaiando as pouco subtis mas variadas formas de insinuação no "espaço pessoal" das suas presas. Estas seguem o protocolo de desencorajamento à incansável campanha bélica da figura: primeiro, estratégias de evitamento (desenhando linhas de fuga pela pista de dança). Seguidamente, olhares desencorajadores, breves, a resguardar o limiar da interacção (a evitar a todo o custo). Finalmente, a frase seca, lançada, terminal, a evitar resposta (não dar troco). A esse ponto, o óbvio leva os vigias a tentarem convencer o cavalheiro a arrumar as malas e seguir viagem (no caso do Jamaica, a figura encarregue é, quem mais?, o potentado das figuras de autoridade, seja no nightclub, seja na casa de família, uma adorável cidadã de terceira idade)
Considera-se o que o move. Qualquer propósito predador é inconsequente na clareza da ineficácia, porque tanto mais fincada quanto mais atentada. O ventosa dificilmente pretenderá uma concretização para lá da reacção directa ao acto. Não há motivação ulterior, não há planificação urdida, não há complexo jogo temporal de intenções. Esgota-se no acto da insinuação, da extracção de uma resposta, na face suficiente da negação. O acto faz-se para o actor se ver agir, e na arena circunscrever o espectro da sua consequência. O ventosa circunscreve-se largamente à coreografia limitada da sua inconsequência. O seu devém o espectro da fatalidade, a reconfirmação do estiolar corpóreo ou relacional.
Daí, a consequência seria até talvez algo inapreensível para os seus meios de ser (pushing the argument). Talvez, quando muito, a figura seja o mimetismo automatizado (no auxílio etílico a afogar o assomo da consciência de si anquilosado) de uma motivação antiga, a única que concebeu frutuosa, a que se atém como bóia de sentido (fill in the biographical redemption blank). Como um náufrago nas dinâmicas relacionais, que, em circuito fechado, simultaneamente sustenta à tona d'água despojos motrizes de ainda ser e agir no mundo, e dinamita nessa mesma acção (pelo seu excesso contraproducente) as reais possibilidades de ela ser consequente para lá do circuito em que opera (perdendo-se no humano remoínho do real continuado, dos guiões não formatados). Um ser comprimido e contido num encaixe tipológico (sedutor, macho, tesudo, whatever), mumificado na ontologia paradoxal do simulacro encarnado. Apenas a mascarada para si de se fazer ser visto, na distanciação (de si a outrém) automatizada, a proteger de abalos os fundamentos do rosto oculto, sem clarear a represa que retém um corpo quando se esvaiu a arena e a luz penetra a confissão de um olhar calado. Mas os termos das coreografias situadas na tessitura do quotidiano são insondáveis. Particularmente quando as máscaras se incrustaram na estrutura da face e identidade.
Só se pode quedar a suspeita negada (quem a confirmará?) que o ventosa é chato como a potassa, mas é capaz de, às vezes, ser, ainda mais que isso, muito triste.

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