quarta-feira, 19 de março de 2008

Obviamente, deslinko-o

Aparentemente, o Da Literatura terá granjeado leitores com desatinos algo bizarros, como apontarem o facto de no seu blogroll (aprendam) não constarem alguns notáveis da primeira liga de blogues (as fronteiras parecem ainda não estar perfeitamente muradas, mas não entrem em pânico, estamos a trabalhar com afinco nesse sentido). Até aí, tudo bem mal. O naco de harmonia mundi que faltava é que, pela resposta, o Da Literatura parece fazer por corresponder aos desatinos desses seus leitores with a vengeance.
Nem concebia que a desautorização desse postulado de uma elite comummente identificada e correlativo imperativo de a entronizar incólume na sua estratificação de evidência imanente em todo e cada blogroll, ou pelo menos nos dos correlegionários de casta, tivesse de se justificar com mais que a saudável pluralidade de afinidades intelectuais, temáticas, e outras, que, dentre todo o espectro de saudável coabitação silente do meio (caramba, não há gangbang capaz de tornar o amor blogosférico, ou outro, democrático), seleccione ou sinalize alguns pináculos ou interlocutores com os quais a sua identidade retórica produtivamente se construa publicamente (e gostaria de crer que poucos desdenharão democraticamente com tanto desafogo tanta parte da blogosfera quanto eu). Mas não; Eduardo Pitta desfia, com o aprumo com que se recita uma lição há muito canónica nos manuais, o devido processo que conduz ao reconhecimento inter pares devidamente dependurado nos links da prache, com inatacável e desempoeirada honestidade (faça-se inteira justiça) que resgata do subentendido, tão partilhado quanto não assumido (porque somos todos adoráveis, evidente), algumas das políticas e dinâmicas sociais de estratificação blogosférica que a parecem fazer regida por lei consuetudinária da Cosa Nostra.
Partindo do pressuposto de que uma lista de links ainda cumpra um papel de associação e recomendação simbólica de interlocutores que, pelos mais diversos e livres critérios que formatam um perfil de blog, se entenda destacar de um campo razoável de possíveis, é certo que a meritocracia abstracta (essa ou outra), em qualquer sistema, é um mito de boas consciências; mas daí a ratificar-lhe os enviesamentos (entre a incorporação ou proposição subjectiva e a sedimentação "institucional") há um salto axiológico que não apenas a mera pragmática de saber ascender ao quadro de honra.
Assim, ao que, para quem não soubesse, consta, não para ter, mas para começar por merecer reconhecimento, qualquer newcomer com ambições deve começar por prestar vassalagem aos senhores da terra e ofertar-lhe o que a tradição convencionou ser um link. Por certo que quem não tenha redes estabelecidas (externas e/ou internas) de passa-palavra para se permitir o distanciamento do sujo mercantilismo dos links (situação de não retorno que já não choca esta política de reciprocidade estratificada, porque não constitui uma omissão electiva, mas como se não sinalizasse já um reconhecimento adquirido refastelado à espera do que lhe é devido) dificilmente poderá dispensar tal etapa para se publicar com propósito, isto se dispensar o distanciamento de recurso de não escrever para ser lido. Mas, tendo-se o bloguista estabelecido com seu respectivo grau de notoriedade (logo, ultrapassada a mera lógica de retorno na produção do seu leitorado e apelo reticular), na lógica que esta política reitera, o seu reconhecimento continua, quando muito, recatado na coluna dos favorites do computador pessoal, se o acto inaugural da vassalagem não tiver sido performado. Ou seja, para lá da mera necessidade de alguém se dar a ser lido para ser conhecido, aqui a manifestação da afinidade é função dependente da reciprocidade, tal como o mecanismo de reconhecimento público opera não pela dádiva mas pela dívida: a dívida original de cada noviço para com os antepassados reinantes, que a não ser redimida pelo beija-mão iniciático, tornará qualquer manifestação autónoma de respeito cativa da disposição instituída do despeito. Coisa que, combinada com a ebriedade do poder, de primeira liga, de enunciação e entronização dos seguidores, passa para a paranóia de politburo (qualquer referência política é inteiramente gratuita, esclareça-se), em que a ausência de vassalagem primeira se interpreta como um acto consciente de dissidência e quase contestação da liderança bloguística no trono («rasura», é o termo). Escolhas que cada um faz, coisa com a qual, naturalmente, ninguém tem nada a ver, já que a indiferença aplicada nem é o controlo dos meios de violência do pedaço. Qual independência de espírito, qual juízo desempoeirado da apreciação desinteressada: qual lei científica da gravitação blogosférica, reitera-se, «não havendo reciprocidade, nada justifica o elo». Gravitação de um mundo onde a meritocracia (se quisermos usar a palavra...) desejavelmente concebível não fosse precisamente uma manifestação plural, descoincidente, de interesses e lógicas diversos, mas apenas a legitimação unitarista em segunda mão de um mecanismo estatutário primordial, centrado antes de mais em controlar a reprodução social de um status quo (ou se preferirem a imortal formulação dos clássicos: "és dos meus, és fixe").
Ora, compreenda-se, se isto fosse um arremesso de sociologia espontânea sobre a mecânica de notoriedade blogosférica, seria uma descrição provavelmente assaz certeira. Todavia, o que aqui se produz não é um juízo de facto, mas um juízo de valor. O que aqui se descreve não é uma inevitabilidade pragmática, mas uma proposição normativa, um avé a uma versão particularmente estratificada da realpolitik de um sistema de castas blogosférico. Tanto o é, que o momento auto-irónico do ano é o seu distanciamento da noção de blogues de primeira divisão: é fácil de ver que, não fosse todo este um raciocínio de primeira divisão, e a política do Da Literatura fosse enunciada para todo o bloguista seguir, se calcula que a "autoridade" de links que lhe será ora outorgada, certamente exponenciadíssima face ao número de links do seu blogroll, descambaria por aí abaixo - sendo ainda mais certo que o Da Literatura não tem culpa que os seus leitores-linkadores unidireccionais (como eu) sejam tansos, para mais quando até tem a ombridade de os alertar para o facto.
Portanto, mesmo com a inércia de não partir a cabeça lançando-me contra factos consumados, não é indiferente não deixar grafada a concepção de possibilidade de outros modos, para lá da circularidade anquilosante, de produzir discurso e reconhecimento reticulares neste meio (é democrático, e também ninguém tem nada com isso, a caixinha de areia dos inconsequentes); pelo que, da inestimável posição de nada ter a perder ou ganhar, deixo apenas registado que o Da Literatura e a política feudal que aqui abnegadamente simboliza e diligentemente reitera deixam, com cordata discordância, de estar na lista de comendações que pelas inefáveis diversas razões me calha assinalar, (des)reconhecimento notwithstanding, nesta promessa cada vez mais truncada de esfera pública.
Gesto, poderíeis argumentar, materialmente injusto considerando a amplitude não denodadamente assumida desta política pelo resto da blogosfera. É certo, mas a sua potência é aqui meramente simbólica, na face de uma oportunidade enunciativa cuja lógica, e não cujo autor que por tal se não vê molestado, é visada. Nada obstará mesmo a que possa reincidir na sua leitura episódica no mesmo recanto ensombrado de um cibercafé remoto, para não deixar vestígios cibernéticos, em que o Da Literatura consultará (ou não) os seus notáveis não-linkados; essoutra, quem sabe mais límpida, forma de recomendação (abrutpus dixit ad exhaustiore(?)). Felizmente, nada há que temer na Bastilha (o mundo real é tão reassuring): hoje somos apenas um, mas amanhã continuaremos a sê-lo.

sexta-feira, 7 de março de 2008

E vão bardamerda os senhores da Spark ao serviço da EMEL que me multam logo que passam 5 (ou 10) (ou 15) minutos do tempo do parquímetro

É já fastidioso acompanhar a blogosfera quando descamba nas suas derivas histéricas em resposta à quase sempre explosiva associação da pobreza socio-semântica do meio com a tentativa de o dignificar discursivamente, explorando nos meandros da sua formatação algo mais que a auto-transparente delicodoçura com declaração de interesses apensa e enfeitada de smilies para cintilar no manto do céu epistolar a estrela pindérica das nossas inquestionáveis boas intenções (quase tão fastidioso como a fixação, não menos rígida, de cartilhas de dissensão discursiva ao suposto politicamente correcto).
É por isso de ressalvar sempre uma iniciativa capaz de louvar a produção de discurso enquanto petardo cultural de desarranjo das várias grelhas de objectificação das "evidências" do real, em particular das suas encarnações sociais em torno de grupos ou categorias classificatórias (trata-se, portanto, de algo mais complexo que o politicamente correcto e incorrecto dos provocadores de plantão).
Não é nada menos que isso que diviso numa das recentes (enfim, trabalho em temporalidades proto-geológicas, é sabido) edições do catálogo de ecletismo sonoro, sempre a testar os limites da sua agregação nuclear, que passa pelo (eter): a lenda punk do Pinhal Novo, os Comme Restus. É que, para além da valorização de um formato inclinado, por excelência, para a ruptura com os consensos sociais de discursividade assisada (e muito mais com os consensos, que com os objectos dos consensos (o que os torna discursivamente muito mais à frente)), e mesmo desconsiderando o mérito musical da amostra em questão (o momento free-jazz, com o Ayler em guest-starring (grande e secreto furo internacional), de «Eu xamome Ãtónio», sendo a instância mais eloquente desse facto), aquilo que torna esta divulgação um acto blogosférico exemplar é o facto de, não fôra o divulgador ter a louvável capacidade de distinção entre os objectos de um discurso e os efeitos simbólicos desse discurso (ou seja, ser capaz de operar ao nível do meta-discurso punk), o mesmo teria todas as razões para repudiar a produção desta pandilha como incorporando a incitação ao ódio de uma minoria social à qual ele pertence (como saberá quem tenha acompanhado as digressões sónicas e velocipédicas do cj), na superficialmente infame «Morte aos ciquelistas» (veja-se como, logo pela escolha do objecto de ódio, se descontrói, por efeito de diversificação subjectiva, a tão deprimente e soporífera, de paupérrima, cartilha de desprezo social naturalista que vai mexendo letargicamente, também, a blogosfera (paneleiro pra cá, preto pra lá, e um cigano (não se arranjou nada mais aqui?), ou um judoca (that's not gonna work...) ao longe, if we're bored or Arroja's in town), assim demolindo o menu sensaborão que a história nos legou, a facilidade pavloviana de sinalização do ódio pela veia essencialista, a carga dramática que apenas três ou quatro válvulas de escape social inevitavelmente concentram na nossa arrevesada canalização de maus instintos, e os vícios e iniquidades retóricas de base de serem sempre e apenas os mesmos a serem objecto à vez da sobre-protecção e da contestação do politicamente correcto pelos discursos situados de quem não tem his ass on the line nesse enjeu, assim capacitando-nos para irmanadamente nos reconhecermos pluralmente odientos e odiados e daí retirar as devidas consequências).
É, portanto, por esse exemplo de auto-retracção identitária ao pouco construtivo automatismo de ler um discurso questionante das estruturas semânticas com a mesma grelha automática com que se (não) encaixa um ataque socio-pessoal, que não posso deixar de me associar a esta iniciativa exemplar. E não pensem que o faço gratuitamente, com a descontracção de quem não está implicado na parada. Precisamente, declino exemplarmente o exemplo, sabendo bem que já visado na quinta faixa me encontro eu.

(devo ressalvar que, desta feita, numa provocação muito improfícua, apenas frustrante (como já terá percebido quem seguiu o link prévio e, inevitavelmente, precipitou atabalhoadamente o cursor para o botão "comprar"), ao contrário do anunciado, a obra dos Comme Restus não se encontra disponível no link providenciado. A editora Sandes de Choco (sic, e muito bem) não quererá a considerar uma reedição em digipack de luxo? - já se justificava, caramba. Quanto mais não seja, falos daqueles já escasseiam na montra pedagógica da nossa arte urbana: há que revivificar a sexual awareness da juventude portuguesa - com a propedêutica serôdia dos Morangos com Açúcar, a tornar a crica e o cacete manípulos para realizar TPC's, o presidente da república vai ter muito mais anos para demandar como fazer os portugueses ter mais filhos*)
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*informam-me que nos Morangos já se fode. Lamento, mas não abdico. Esta line deu-me trabalho, suei por ela, e não a descartarei como um reservatório de amor desperdiçado. Sue me. Esse é, aliás, o processo por difamação pelo qual gostaria de ser levado à barra do tribunal.

I say... too much, and not enough

É já evidente que, por baixo deste meu exterior rude, monástico, empedernido, estóico e distanciado (grunho, diríeis), bem como do saiote que o adorna, eu me melo todo quando um desses mecanismos instituídos de reconhecimento social blogosférico derrama a sua magnanimidade sobre o meu cucuruto adepto faz de conta que não de todo o baptismo que o redima do seu exílio indeciso de toda a agremiação humana; quase tanto quanto me amofino à sua vista com a carga de trabalhos com que a atenciosidade me sevicia a natural inércia desconjuntada. Porém, para lá de todo esse imbróglio existencial, esta gentil intimação a inscrever-me no mundo dos vivos, por via da enunciação das minhas 12 palavras favoritas, causa-me sarilhos incontornáveis. Palavras, são nomes de coisas e noções que gente com capacidade expressiva balizada pelo acúmulo sagaz de valências linguísticas civilizacionalmente dispostas emprega com a justeza e imaginação que o domínio criativo de um património comum pode exponenciar à reconversão de toda a paisagem e infinitude de arquitecturas de ser que nos foi dado não poder abarcar numa vida inteira: logo, uma criatividade metafisicamente fútil, mas mais que adequada à distensão de world-views de seres forçados ou acondicinados aos limites existencio-territoriais que lhes desenharam as regras de um mapa-mundi (no meu, madagáscar está neste momento soterrado sob um 1/3 de batata frita). Qual é então o meu problema? É que eu não digo palavras, eu digo dispositivos linguísticos de nomeação; como não digo trela, digo fio de cão. A minha memória está em decadência a uma velocidade cada vez mais alarmante desde que entrei na idade adulta, e o gajo que me assoma em suferfícies espelhadas, e mais ninguém, sabe que já lá vai por demais o tempo. O meu vocabulário a cada momento é o que consta dos textos (e por textos entenda-se legendas de sitcoms) que li nesse dia, e será substituído pelos textos do dia seguinte. Por conseguinte, é com esse diminuto vocabulário em constante substituição que eu tenho de tentar organizar formas expressivas que restituam o sentido comunicacional que o comum dos mortais apreende num só vocábulo, empilhando assistematicamente palavras (como vocês dizem) sobre palavras na vaga esperança de conseguir competir com o potencial descritivo de uma fotografia realizando um retrato-robô tendo tido sempre 3 à rasquinha a educação visual. Como tal, não por acaso, as únicas duas palavras de que posso hoje dizer que gosto mais (porque hoje as li e até me deitar, por enquanto, ainda as recordo), são palavras que amalgamam várias numa para construir o seu sentido, ou que combinam numa um sentido plural ou quase paroxístico: instrumentos reflexos do meu penar expressivo de cada dia. Assim ensimesmado; assim ledo. São palavras que, por diferentes metodologias, contêm praticamente frases inteiras dentro. Ensimesmado, na elegância enternecedora da sua auto-descritividade desarmada, é de uma beleza tão franca e rendida à inteligibilidade que é quase um ideograma (e o meu eufemismo de eleição para masturbação). Ledo (apesar de o Camões a ter galderizado um bocado) é um daqueles pequenos prodígios expressivos de concisão, que em quatro letrinhas apenas contraria a pretensão racionalista (diferente de racional) de decretar a determinação conceptual dos sujeitos a significações inequívocas e unidireccionais, e mais que polissémica, é uma palavra quase paroxémica, capaz de sagrar em unicidade linguística a complexidade existencial de estados contraditórios. Melhor que isso, só a paralinguagem, com a qual realizo com estonteante eficácia 90% das minhas conversas com a pura omnipotência do fonema primal (hummm), espécie de reticências modulares. Imagino que o meu sonho seja que, ao pleno oposto da prática retórica que me molesta e viabiliza, um dia toda a interacção linguística pudesse ser fixada numa minimália de vocábulos singulares, cada frase concebível destilada numa palavra, cada conversa uma troca sequencial de vocábulos isolados. Aí, finalmente, com as minhas lacunas recorrentes, os meus esforços expressivos seriam estruturalmente indeferidos, e poderia legitimamente repousar imperturbado. Mas até lá, fear not, retorquo do fundo do meu dilecto ensimesmamento com toda a possível de rapar do tacho sensação invasiva e expansiva, sem manípulo de contenção, de exultação, que um aceno me confere ("alegria", if you must).

Nous n'avons jamais (pas) étés modernes

Como é, por razões a desconhecer, imperativo, já vou tarde, mas não tarde demais. Parecerá igualmente que o André Dias está a ficar com uma quota fixa no citation index do pedaço, mas garanto que não ando a trocar favores de natureza dúbia senão com todas as outras pessoas com quem ando a trocar favores de natureza dúbia. É que o cavalheiro, após ter reiterado, com o ciclo dedicado à dita Nova Escola de Berlim, a valência dramática da excisão da ostentação dramática, de que este excerto é a evocação mais eloquente, lançou mãos a novo empreendimento de programação, com sentido de oportunidade e dedo aprumados, apontando a um dos ainda e cada vez mais (há quanto tempo não digo que o tio Michel é o maior?) temas candentes do pensamento social contemporâneo (whatever) - a biopolítica. Intitula-se o ciclo "Figuras da Autópsia" e abriu ontem, na cinemateca, com o Primate do Wiseman. Estais bem a ver, certo? Um portento absolutamente impressionante (em todos os impressionantes sentidos) de trabalho sobre a matéria documental, de radical materialidade, capaz de lhe extrair pela razão expressiva uma lucidez conceptual de abstracção fulgurante (sim, isto não quer dizer nada, mas tenta).
Ao debruçar-se sobre os modos de organização da pesquisa de cientistas sobre primatas num centro de investigação, e os modos de relação estabelecidos entre esses dois corpos de agentes no processo da sua interrelação finalista, está-se veramente a fazer uma aproximação eloquentíssima aos modos socialmente consagrados de acesso à "verdade", integrando na factualidade nua da sua via metodológica todas as imponderações que foram socialmente externalizadas para os recintos privados da produção científica, ao mesmo tempo que externaliza da sua abordagem a produção de juízos morais explícitos sobre as processualidades documentadas.
Essa capacidade de resgatar limpidamente todo o agonismo subsumido no paroxismo na acção (humana) será, aliás, porventura a sua maior força. Porque, como efectivamente se reitera nas várias leituras do filme, se ao primeiro olhar, armado pelas grelhas espontâneas em que fomos socialmente criados, há um quadro dicotómico de agentes e possíveis cristalizações axiológicas em seu torno na narrativização estrutural deste processo, aquilo que se explicitará crescentemente é, de alguma forma, a organicidade indivisível de todos esses elementos sistémicos.
Numa estrutura relativamente cíclica, aquilo que vai sendo explicitado numa cadência impiedosa é um processo integrado de objectificação da vida em nome da produção de saber, da pesquisa comportamental à vivissecção, e essa é a primeira iluminação da película: o extremar de pólos sensíveis de relação com os símios entre as manifestações de afecto vivo no início e a dissolução metódica dos seus corpos no final, não demonstra de todo a sua oposição, mas faz discorrer a sua absoluta continuidade. Aquilo que isoladamente são apreensíveis como opostos morais, são neste espectro processual reconduzidos a diferentes etapas de um mesmo processo de objectificação, que pelo poder da sua institucionalização, foi incorporado pacificamente pelos seus actores humanos (muito curiosa, e sintomática para quem se familiarize com a literatura de etnografias de laboratório (de que isto é quase uma adaptação ao cinema... ('Hollywood' não pode ver nada...)), a emergência da expressão estética dos cientistas como primeira reacção ao visionamento microscópico das lamelas de secções de um cérebro após a vivisecção (ainda que aqui a continuidade fílmica reforce a associação dos dois momentos)).
A ironia do título "primata", recobre igualmente a elisão, dir-se-ia, quase latoureana, de qualquer pressuposto de diferenciação entre os primatas em presença, humanos e símios, na sua apreensão documental. Essa distanciação analítica de um dado base da consciência humana, o da sua especificidade (e superioridade) é, aliás, reiterado simbolicamente na captação dos corpos, com sequências, não óbvias mas suficientemente legíveis, de grandes planos dos rostos, quer dos cientistas (alguns, juraríamos que não inocentemente, com puros gestos semioticamente carregados, neste contexto, como a cofiar ou coçar a barba, ao que a política pilosa da época dava amplo terreno), quer dos símios, e captações de sofrimento animal (que nem são as mais "inteligivelmente" chocantes) que configuram perfeitas pietàs zoológicas em nome próprio.
Essa elisão do primado do humano nesta configuração social não é, aliás, mais que a manifestação mais provocante do paradoxo maior e mais genial deste verdadeiro método documental. É que, em larga medida, o que Wiseman faz é quase replicar sobre a documentarização de um processo de objectivação científica, um olhar objectivista (mas, etica e esteticamente, auto-consciente) sobre esse processo e os seus actores; e o poder que essa objectivização tem na transformação da legibilidade da acção de agentes humanos desprovidos de retórica justificativa no exercício de poder objectivista sobre agentes primatas desprovidos de qualquer expressidade legitimada (porque existe, apesar de tudo, um discurso inerente a toda a paralinguagem animal que é, pelos agentes humanos, inteiramente elidido pela incorporação destes objectos vivos numa finalidade absolutamente instrumental) é devastadora. E se, à superfície do olhar, tal pode transparecer como uma violência discursiva exercida sobre os cientistas ao replicar a violência (ainda que tida por neutra, ainda que tida por necessária) muda exercida sobre os símios, essa é uma consequência lógica (não "retórica", porque não propositivamente condenatória, como a inserção de vários fragmentos "auto-explicativos" da pesquisa ilustra, do mais detalhado ao mais carta branca (a "utilidade da inutilidade")) do isomorfismo ontológico que emerge do postulado de continuidade e indiferenciação na fixação da "evidência" documental. O único excerto sob a forma de explícito depoimento justificativo funciona, na verdade, como outra detonação irónica, na medida em que sugere a impotência desse discurso normalizado em poder substituir-se à legibilidade da lógica sistémica e processual que move e integra, numa espécie de igualitarismo radical, os agentes em presença: é nesse sentido, também, que se impõe a abstracção do processo de produção de saber como matéria fílmica, e não o juízo sobre os agentes em questão, ou sequer a sua actividade concreta.
Seria, de qualquer forma, insustentável (por definição) arguir da isenção de um ponto de vista na organização expressiva do material documental; é aliás nótoria, na sua própria ciclicidade e crescendo, uma descida dantesca pelos círculos vários de uma contínua objectivação daquelas formas de vida. Contudo, o facto é que esse ponto de vista, podendo parecer evidente (mas não o é para toda a gente e suas razões, e funcionará, idealmente, como ponto de partida para o restart consciente dos nossos raisonnements), não emerge de uma qualquer exploitation ou retórica moral, mas é, mais uma vez quase em lógica de experimento, o resultado experimental de uma aproximação metodológica a um campo do real, organizada expressivamente. E a sequência mais poderosa de explicitação dessa capacidade de recuperar a unicidade de contrários que estão subsumidos em todos os dados adquiridos que fizeram a "normalidade" deste processo instituído, a cuja visibilitação "indevida" somos atirados, está na sequência pós-vivissecção de um pequeno macaco, quando a sua cabeça decepada, com o cérebro exposto, é colocada num viço, e é alternadamente captada de cima, com a centralidade superior da razão científica focada inteiramente no cérebro, na secção objectivada que lhe fundamenta a acção, e depois num ângulo de baixo, onde ainda está exposto o facies como vestígio simbólico ineludível daquilo que há poucos minutos incorporava uma manifestação de vida.
Por estranho que possa parecer a quem visualize a imagem, isto não é manipulação emocional, mas é o confronto nu, e experimental, da nossa percepção, com campos ópticos/perceptivos que se convencionou manter separados. As consequências de adjudicação social do juízo produzidas pela sua unificação documental são, de alguma forma, a consequência experimental da exposição total da nossa sensibilidade e razão a essa unidade complexa de sentido. Sim, de alguma forma, quem assiste a este filme não é menos parte do seu experimento perceptivo, com o mesmo estatuto ontológico dos agentes que foram fixados no ecrã (com a violenta dissociação e recombinação complexa de reconhecimento com seres, biologica e socialmente, postulados como diferentes que isso implica), e isso faz dele uma experiência ética, política, estética e cognitiva que confere o mais potente sentido à expressão "dar a ver".
Porque são as implicações perceptivas da partição visual da especialização do saber e da prática modernas que são aqui desafiadas como pré-condições socialmente desonestas para a manutenção de modos de vida a expensas da consciência de todos subentendidos necessários à sua reprodução. Facto com o qual, politicamente, se pode querer activamente viver em paz: e serão provavelmente muito poucos os voluntaristas ou temerários capazes de teoricamente (muito provavelmente, o cadeidoscópio segmentado das práticas modernas tê-lo-á também já tornado virtualmente impossível) querer habitar essa plena apropriação consequente das implicações do seu modo de vida. Mas nesse sentido, nesta política da imagem, contra os hábitos inconscientes de selectividade (própria ou instituída) da (in)visibilidade do real, não podemos escapar à assumpção honesta e consequente de que, para aqui, só não olha quem não quer ver; e esse é apenas o primeiro passo para pensar, e não reagir - sendo a replicação behaviorista pelos espectadores de uma univocidade significante lida na película, o resultado experimental falhado deste tipo de método fílmico, que assim contém metodologicamente também a chave da sua própria invalidação.
Para os (depois disto, ainda) interessados, o curto ciclo ainda decorre na Cinemateca, incluindo o monumental (é que não parece haver outro adjectivo) Shoah, este sábado, e incorpora também um ciclo de conferências na Culturgest, de que ainda restam uma ou outra sessão.