quarta-feira, 23 de novembro de 2005

How the West was(n't) won

«Confessemos: isto não é bem recensão de um concerto. Este concerto é mais um leitmotif para expressarmos uma ou duas ressonâncias sensoriais e reflexivas sobre música contemporânea, do que propriamente matéria sobre a qual possamos permitir-nos opinar de forma particularmente informada sobre o seu conseguimento estético, quer das obras, quer interpretativo, até porque algumas das obras, para lá da exigência colocada à sua apreensão mais organizada, são primeira audição absoluta ou em Portugal. Nada de veleidades, portanto. Mas, efectivamente, não resistimos a tomá-lo como possível ilustração de algumas dinâmicas estéticas e sociológicas (porque o estético, infelizmente?, nunca se bastou) que atravessam a produção de alguma do que possamos designar como música erudita contemporânea (e logo as designações nos dizem bastante sobre a problemática condição da produção musical, em diversos planos), tal como não resistimos a reproduzir alguma leiga ressonância sensorial ao que se ouviu, já que também é para ela existir e ter voz que a entrada em concertos de tal natureza não é barrada aos não peritos da coisa.
Composto de obras de compositores orientais ou de obras de compositores aí não nados inspiradas por elementos de culturas asiáticas, o programa tinha a virtude de combinar alguma diversidade estética, embora talvez sensorialmente menor do que à partida se poderia crer, o que de alguma forma talvez possa indicar que o forte impulso teórico que assiste a boa parte da produção musical contemporânea possa gerar certos efeitos de diluição das diferenciais linguagens às quais compositores em diversos contextos musicais/culturais possam acorrer para diferenciar as suas aproximações à produção musical. De Takemitsu, por exemplo, fica-nos essencialmente a emanação de um certo impressionismo, que efectivamente caracterizou parte das suas inclinações estéticas. Ainda que não implicando juízos quanto à eventual diferencialidade na estrutura das obras dessa influência orientalista, seria curioso comparar o efectivo “orientalismo” que a diversos níveis pudesse ou não pautar a especificidade dos compositores integrados neste festival: se se verificasse haver uma “troca” de influências entre compositores ocidentais e orientais, com cada lado a ser mais papista que o papa (perdoe-se o etnocentrismo) que acorda com o sol no outro lado, as ciências sociais teriam um dia profícuo. De qualquer forma, conseguir ultrapassar a obtusa fixação num exotismo estéril também é parte do cuidado que deve compreender um evento desta natureza.
Dessa diversidade resulta igualmente uma característica curiosa, ligada à própria natureza do projecto que agregou uma diversidade de instrumentistas nesta Orchestrutopica. Sendo um projecto dedicado à divulgação de novas músicas no plano erudito de produção, é ilustrativo de algumas dinâmicas sociais que condicionam a produção musical contemporânea, quando se poderia julgar estar no tempo da maior liberdade expressiva possível, onde, de produção neoclássica a música concreta, tudo pode caber nas larguíssimas costas da música contemporânea (embora com diferenciações e hierarquias, explícitas ou como quem não quer a coisa, e suas devidas traduções institucionais). É que o carácter desafiador e não-convencional de parte da produção contemporânea se encontra em dialéctica com a submissão a formas de veicular a sua audição a algum público. Tal produção encontra-se, pois, algo condicionada a compor para agrupamentos, e suas especificidades instrumentais, à partida constituídos e vocacionados para veicular novas formas de expressão musical. A liberdade e a invenção teórica (que, considerandos os não poucos efeitos de escola, também poderia ser questionada) encontram-se pois condicionadas pelas especificidades das possibilidades sociais de comunicação da música produzida.
Desse ponto de vista, a Orchestrutopica é visivelmente adequada para tal propósito dada a diversidade de valências instrumentais que agrega para poder, consoante as especificidades de cada obra, compor diferentes ensembles para diferentes exigências composicionais (permita-se o viés de saudarmos a presença até de um guitarrista, o, na altura em que o conhecemos, extremamente promissor Júlio Guerreiro, que agora só não pudemos confirmar ser o excelente Júlio Guerreiro porque, maldição da natureza do instrumento, a sua curta intervenção na peça de Gilbert não se pôde elevar acima da massa sonora de conjunto). O que tem o efeito particular de um concerto desta natureza implicar uma constante reconfiguração do cenário instrumental, implicando certa quebra no andamento da performance. Para não irmos mais longe, a abertura com as “Three Japanese Lyrics” de Stravinsky durou uns cinco minutos, após o que se seguiu logo uma espera para mudança no palco: é caso para dizer, nem deu para aquecer, e as peças diluíram-se na adaptação aos inícios das hostilidades.
Outra característica muito interessante desta performance foi precisamente o seu carácter performativo. Parece-nos ser uma possível característica de parte da produção de música contemporânea que merece particular atenção. Tivemos, só neste concerto, vários casos em que, seja na convocação de diferentes recursos musicais (e musical aqui é no sentido de tudo o que produza som), seja na acção de produção sonora, se manifesta uma postura de interpelação nova à audição e colocação do público no espaço do concerto, que se pode muito bem caracterizar como valência de sedução para novas linguagens musicais que, se instaladas no mesmo cariz estático que caracteriza a produção e comunicação de música clássica (em sentido amplo), e acolitadas somente na novidade dissonante da sua gramática, jogam xadrez com o autismo musical, e tornam a produção e fruição musical áreas de exclusão mais fortes do acesso cultural. Os exemplos: na peça de Gilbert, temos o solista em flautas a dar um gira pela plateia e pelo palco, fazendo circular o som em diversos pontos de difusão, num contínuo teatral de diferenciação espacializada da recepção sonora, tornando praticamente cada ouvinte um ponto único de audição; na peça de Côrte-Real, o recurso a recitantes verificou-se uma opção extremamente feliz pelo contraste bem conseguido entre as linguagens (inglês e francês, e grego, em gravação, declinando escritos de Kavafis) e as impressões sensoriais que a sua expressão não musical (no sentido estrito) oferecem (e como tal, são musicais, em sentido amplo – sendo notória a diferenciação entre o apelo racionalista que se cola à digressão pela memória “póstuma” da sensualidade vivida, em inglês; e o apelo sensualista, muitas vezes sussurrado, não à recordação mas à evocação da sensualidade feita carne (une) autre/fois, em francês, ora pois); também na peça de Côrte-Real, o recurso a certos apontamentos electrónicos soou já mais discutível, na medida em que, exceptuando quando parecem emanações de um disco dos Cosmic Jokers em dia de menor trip, parecem surgir a espaços não como complemento identificável de produção de outros sons, mas quase como substituto de valências instrumentais que o ensemble não comporta, de tal forma que por certos segundos nos podemos equivocar na natureza do som (mesmo que tal fosse a intenção, parece-nos que provaria um ponto de vista que se esgota no seu efeito, e contraria a natureza de um concerto – mas deixemos humildemente a coisa em aberto...); na segunda peça de Takemitsu, temos o final com o clarinetista que se desloca do palco para os bastidores e daí emite os últimos ecos distantes da peça, em belíssimo efeito; na peça de Isang Yun, tivemos a soprano a utilizar de forma plenamente convincente o seu recurso instrumental de forma bem mais ampla do que o registo lírico tradicional, amplitude essa indubitavelmente mais rica para transmitir o agónico conteúdo da peça emanado da memória purulenta do fascismo, o que faz questionar com muita eficácia os limites que qualquer fixação expressiva comporta. Inclusive, e já nos esquecíamos (porque não tem efeitos sonoros, mas é simbólico de algo), até a espaços temos António Carrilho, solista em flautas, a alçar a perna feito Ian Anderson dos Jethro Tull, durante as suas intervenções.
Querem mais performático?
Francamente, para estratégia comunicacional que consiga pela sua inovação a mais planos expandir as margens de recepção de músicas novas, aliciando pelo seu enriquecimento textural de apresentação musical o consumo e socialização de novas linguagens, parece-nos que se pode fazer bem pior e inconsequente. Infelizmente, por enquanto, era Dia da Música, e o auditório da Culturgest estava a um terço.
Keep on trying, boys