The Sound of Mugic
« A Amélia Muge é uma força criativa de muitas raízes que soube enredá-las numa personalística estética singular que lhe permite esticar-lhe os limites para muitos lados de cada vez. A imprevisibilidade e renovação expressivas que daí resultam são uma das maiores valias que a tornam das figuras mais vitais da música portuguesa contemporânea, e tal se comprovou mais uma vez no magnífico concerto que arquitectou para inaugurar a apresentação pública do novo disco «Não Sou Daqui».
Diz-se que “arquitectou” o concerto, e diz-se bem. De há muito que Amélia investe em concepções mais amplas de presentear audiências com o canto ao lado, divisando potenciares cénicos, aproximações cuidadosas a obra de arte total, para tornar visível a mais sentidos uma ideia de espectáculo que vá para lá da recolecção de canções. Desta feita, ergueu seu maior feito, com o “desenho de sons” (como Amélia preciosamente o designou) digital em tempo real de António Jorge Gonçalves (de traço, texturas, cromatismos, e plasticidade sonora admiráveis) a materializar em écran de fundo a concretitude e abstracção do universo sonoro em expansão emanado do palco, fazendo-nos lembrar (perdoarão a veleidade), o trabalho de Picasso com Gjon Mili. Mais que curiosidade tecnológica, foi um operador constitutivo dessa expressão pictórica que a música já convocava, particularmente assoberbante em momentos como «O anjo», assombroso exorcismo vocal e performático em que as projecções encontram no corpo da cantadora a tela que mais exterioriza as suas dilacerações. Canção que assimilou à transcendência a experimentação à Laurie Anderson que é bem fonte das concepções de espectáculo que Amélia tem desenvolvido, mesmo sem ser necessário comprová-lo com o exercício de sampling e spoken word sobre texto da dita «A garra do macaco», dos raros momentos provindos de outros discos (nomeadamente, do anterior «A Monte»). Fora esse, apenas «Ervas-de-Cheiro» e «Senhorecos» (mais uma inestimável intervenção do desenhador de sons) relembraram o inicial «Múgica» e o grande poeta discreto (a própria nominalística pseudonímica dixit) Grabato Dias (que, não sendo elencado com os poetas musicados no disco, vários presentes na sala, não podia faltar no elencar dos elementos mais perenes do universo mugiano(?!)), e no corpo do programa, apenas um “sampling” in loco no corpo de outras canções evocou esse passado quase em língua estrangeira (dadas as mini-pátrias que cada linguagem nova de Amélia vai inscrevendo quase a cada disco), que foram os nunca suficientemente ditos geniais «Todos os Dias» e «Taco a Taco». Apenas nos encores a memória de «Todos os Dias» voltou com o final e inevitável(?) «Nevoeiro», e antes, com uma renovada interpretação do ominoso «Ao passar o mal-lavado». Esta interpretação aliás, volve-se fulcral para perceber a distância dos caminhos que a compositora vai trilhando. Da suspensão esparsa e ameaçadora do original, em que nem os breves clímaxes cíclicos resolviam a tensão, esta versão espraia-se num acompanhamento instrumental cheio, com abertas jazzísticas. Portanto se confirmava que do anterior afinco na precisão arranjística, na certeza tímbrica, no corte e costura instrumental e composicional estranhado e entranhado numa linguagem perdida a narrar um universo inimitável, teríamos em alguma medida que abdicar para nos rendermos a esta nova proposta de sincretismo denunciado (como teríamos que abafar algumas saudades de uma braguesa - «Chamaram-me cigano» não colmatou).
A música de Amélia Muge, se já depurou o imaginário da música popular portuguesa ao seu mais secreto e pristino, e se já dominou a sua alquimia para jogar em criatividade formalmente irrestrita com os seus elementos e produzir as equações mais imprevistas (nesse ó seminal «Taco a Taco»), parece neste momento querer menos desenvolver a sua especificidade idiomática internalista, não obstante para ela convocar elementos diversos (da inspiração tradicional à discreta electrónica) que sirvam a sua potencialidade expressiva, quanto cruzar géneros já solidificados para nessa simbiose instalar um transfronteiriço canto, e não tanto o seu próprio país múgical (se é que me faço entender). Não se estranhe pois a instrumentação renovada, de piano, contrabaixo, percussões plurais e o multi-instrumentalismo do cada vez mais prolixo José Manuel David (sopro de mãos incluído), ainda que com o brilhantismo do José António Martins sempre ao leme da direcção musical (desta feita quase inteiramente escondido nos bastidores). Portanto, muito menos se estranhe o feeling jazzy de «Sete portas tenho em casa», quase a abrir. Ou ainda um provável novo género luso-blaxploitation low-fi em ressonâncias de Fender Rhodes alimentando um enganoso quase lounge jazz (seja lá o que isso fôr) a enevoar as harmonias arrevesadas, na distensão ou numa locomoção razoavelmente groovy. Ou mais directamente, a deliciosa habitação de um registo falso-fadista, entre o jocoso e o sincero, a proximidade e a distância, esse meio-termo de todos e ninguém onde Amélia quer com os géneros que convoca fazer existir, com palavras medidas à precisão por Hélia Correia, no «Fadunchinho». Momento também simbólico do quanto Amélia parece neste momento optar por sublinhar conceptualmente a mais grosso traço o seu sincretismo e concomitante distância de qualquer pureza de género, já que a aproximação ao fado havia sido, com aquelas mesmas devidas distâncias, assumida com naturalidade expressiva pelo menos desde 1998, em «Há quem te chame menina».
Não obstante as desafiantes e inaprisionáveis arremetidas de Amélia a tanto som enclausurado nas tipologias, confessamos que é no registo mais íntimo e esgarçado do interior partilhado que essa coabitação de tanto mundo e música justifica mais o exaltante sentido, na nudez da voz, trespassando inclusive efémero vislumbre de rouquidão (sintomaticamente(...), não seria a primeira vez que a veríamos, voluntariosa, actuar constipada...). Como na belíssima «Na noite mais escura» e «Transparência», sobre poemas de António Ramos Rosa e de Eugénio Lisboa, onde essa fibra toda corpórea que Amélia entrega ao canto nos entrega também a identificação perfeita com essa mulher inteira que canta com toda de si, com cada músculo e cada sentido em cada grave e cada vibrato.
Se a indomável busca de novos pousos onde divisar novo canto se arrisca corajosa à diferencial satisfação dos que a esperam ouvir sempre renovada mas necessariamente cativos de terreiros anteriores onde a sedução e admiração tomaram raízes, é dever a esta grande inquietadora das certezas adquiridas esperar sempre cada capítulo com a vontade desacorrentada. Pela nossa parte, aguardamos com indisfarçável ansiedade os dois capítulos já prometidos que se seguem (que se livrem de demorar mais 5 anos).
(em aparte reincidente, não há maneira de, ou alguém para, pegar e editar o material que deu concerto magnífico, e estação exuberante da heterodoxia revisited mugiana (outra vez?!), há caramba demasiados anos atrás, de Amélia com um coro búlgaro? É que era um favor que me faziam – com esta é que os convenço...) »
Diz-se que “arquitectou” o concerto, e diz-se bem. De há muito que Amélia investe em concepções mais amplas de presentear audiências com o canto ao lado, divisando potenciares cénicos, aproximações cuidadosas a obra de arte total, para tornar visível a mais sentidos uma ideia de espectáculo que vá para lá da recolecção de canções. Desta feita, ergueu seu maior feito, com o “desenho de sons” (como Amélia preciosamente o designou) digital em tempo real de António Jorge Gonçalves (de traço, texturas, cromatismos, e plasticidade sonora admiráveis) a materializar em écran de fundo a concretitude e abstracção do universo sonoro em expansão emanado do palco, fazendo-nos lembrar (perdoarão a veleidade), o trabalho de Picasso com Gjon Mili. Mais que curiosidade tecnológica, foi um operador constitutivo dessa expressão pictórica que a música já convocava, particularmente assoberbante em momentos como «O anjo», assombroso exorcismo vocal e performático em que as projecções encontram no corpo da cantadora a tela que mais exterioriza as suas dilacerações. Canção que assimilou à transcendência a experimentação à Laurie Anderson que é bem fonte das concepções de espectáculo que Amélia tem desenvolvido, mesmo sem ser necessário comprová-lo com o exercício de sampling e spoken word sobre texto da dita «A garra do macaco», dos raros momentos provindos de outros discos (nomeadamente, do anterior «A Monte»). Fora esse, apenas «Ervas-de-Cheiro» e «Senhorecos» (mais uma inestimável intervenção do desenhador de sons) relembraram o inicial «Múgica» e o grande poeta discreto (a própria nominalística pseudonímica dixit) Grabato Dias (que, não sendo elencado com os poetas musicados no disco, vários presentes na sala, não podia faltar no elencar dos elementos mais perenes do universo mugiano(?!)), e no corpo do programa, apenas um “sampling” in loco no corpo de outras canções evocou esse passado quase em língua estrangeira (dadas as mini-pátrias que cada linguagem nova de Amélia vai inscrevendo quase a cada disco), que foram os nunca suficientemente ditos geniais «Todos os Dias» e «Taco a Taco». Apenas nos encores a memória de «Todos os Dias» voltou com o final e inevitável(?) «Nevoeiro», e antes, com uma renovada interpretação do ominoso «Ao passar o mal-lavado». Esta interpretação aliás, volve-se fulcral para perceber a distância dos caminhos que a compositora vai trilhando. Da suspensão esparsa e ameaçadora do original, em que nem os breves clímaxes cíclicos resolviam a tensão, esta versão espraia-se num acompanhamento instrumental cheio, com abertas jazzísticas. Portanto se confirmava que do anterior afinco na precisão arranjística, na certeza tímbrica, no corte e costura instrumental e composicional estranhado e entranhado numa linguagem perdida a narrar um universo inimitável, teríamos em alguma medida que abdicar para nos rendermos a esta nova proposta de sincretismo denunciado (como teríamos que abafar algumas saudades de uma braguesa - «Chamaram-me cigano» não colmatou).
A música de Amélia Muge, se já depurou o imaginário da música popular portuguesa ao seu mais secreto e pristino, e se já dominou a sua alquimia para jogar em criatividade formalmente irrestrita com os seus elementos e produzir as equações mais imprevistas (nesse ó seminal «Taco a Taco»), parece neste momento querer menos desenvolver a sua especificidade idiomática internalista, não obstante para ela convocar elementos diversos (da inspiração tradicional à discreta electrónica) que sirvam a sua potencialidade expressiva, quanto cruzar géneros já solidificados para nessa simbiose instalar um transfronteiriço canto, e não tanto o seu próprio país múgical (se é que me faço entender). Não se estranhe pois a instrumentação renovada, de piano, contrabaixo, percussões plurais e o multi-instrumentalismo do cada vez mais prolixo José Manuel David (sopro de mãos incluído), ainda que com o brilhantismo do José António Martins sempre ao leme da direcção musical (desta feita quase inteiramente escondido nos bastidores). Portanto, muito menos se estranhe o feeling jazzy de «Sete portas tenho em casa», quase a abrir. Ou ainda um provável novo género luso-blaxploitation low-fi em ressonâncias de Fender Rhodes alimentando um enganoso quase lounge jazz (seja lá o que isso fôr) a enevoar as harmonias arrevesadas, na distensão ou numa locomoção razoavelmente groovy. Ou mais directamente, a deliciosa habitação de um registo falso-fadista, entre o jocoso e o sincero, a proximidade e a distância, esse meio-termo de todos e ninguém onde Amélia quer com os géneros que convoca fazer existir, com palavras medidas à precisão por Hélia Correia, no «Fadunchinho». Momento também simbólico do quanto Amélia parece neste momento optar por sublinhar conceptualmente a mais grosso traço o seu sincretismo e concomitante distância de qualquer pureza de género, já que a aproximação ao fado havia sido, com aquelas mesmas devidas distâncias, assumida com naturalidade expressiva pelo menos desde 1998, em «Há quem te chame menina».
Não obstante as desafiantes e inaprisionáveis arremetidas de Amélia a tanto som enclausurado nas tipologias, confessamos que é no registo mais íntimo e esgarçado do interior partilhado que essa coabitação de tanto mundo e música justifica mais o exaltante sentido, na nudez da voz, trespassando inclusive efémero vislumbre de rouquidão (sintomaticamente(...), não seria a primeira vez que a veríamos, voluntariosa, actuar constipada...). Como na belíssima «Na noite mais escura» e «Transparência», sobre poemas de António Ramos Rosa e de Eugénio Lisboa, onde essa fibra toda corpórea que Amélia entrega ao canto nos entrega também a identificação perfeita com essa mulher inteira que canta com toda de si, com cada músculo e cada sentido em cada grave e cada vibrato.
Se a indomável busca de novos pousos onde divisar novo canto se arrisca corajosa à diferencial satisfação dos que a esperam ouvir sempre renovada mas necessariamente cativos de terreiros anteriores onde a sedução e admiração tomaram raízes, é dever a esta grande inquietadora das certezas adquiridas esperar sempre cada capítulo com a vontade desacorrentada. Pela nossa parte, aguardamos com indisfarçável ansiedade os dois capítulos já prometidos que se seguem (que se livrem de demorar mais 5 anos).
(em aparte reincidente, não há maneira de, ou alguém para, pegar e editar o material que deu concerto magnífico, e estação exuberante da heterodoxia revisited mugiana (outra vez?!), há caramba demasiados anos atrás, de Amélia com um coro búlgaro? É que era um favor que me faziam – com esta é que os convenço...) »
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