Sinais de vida
«Não juramos, que o disco está ausente, mas na gravação do concerto de Chico no Zenith de Paris, ao encetarem-se os acordes d’As Vitrines, relampeja de repente do público um grito sobre-humano recortando as subliminares cores da harmonia. Esse grito, das entranhas que esgarçam as cordas vocais num espamo irreprimível, é a agonística memória do que a música de Chico sucede em “ir ao fundo do fundo do fundo” se for por quem lhe entranhou ao tutano todas as insuspeitas dores e revelações que se acoitam no silêncio dito de um só gesto, em todos os gestos.
Esse grito quase se repetiu neste dia da longa jornada de Chico pela outra costa de tanto mar, não fôra o facto de a sua emissora deste dia o ter repetido rasurando o acometimento d’alma pelo voluntarismo social. Na verdade, não importa. Na incerteza das rimas que oram na devoção, o certo é que alguns fiéis o chamavam ao soar da hora da comunhão.
Mas esse Chico, não bicho para se quedar feito bezerro de ouro, até porque já topa o cinismo de fãs o quererem ver apenas na fixação de poder ser a sua última chance (e não porque na primazia do imponderável, qualquer chance é imperativa), finta a idolatria, sem golpe de anca, que esse se guarda para os relvados. Para os palcos fica pois um elenco musical de um corpo que descarta o gesso para a estatuária, e em vez de presentear a fácil oferenda de infindos temas da memória colectiva para a celebração do passado, que na pavloviana reacção a um refrão incrustado deviria herança anquilosada, não só insiste na plenitude do cardápio da sua última colheita “Carioca”, como revisita a carreira com especial incidência no tanto que passa por baixo do radar, tanto disco passado, subsumido em tanto título já-ouvi-isto-em-qualquer-lado. Em vez de emblemas, pois, a reinstatação dos méritos, mais amplos que qualquer simbólica, que os produziram, e continuam a produzir, na criação de um homem que, sempre na suave ironia, foi-se despedindo da música há mais de uma década, mas quando, no pasa nada, lhe retorna, não é para colher louros devidos, mas novos, que brotem na plena frescura da incerteza sem garantias.
É pois como um intentado retorno epifânico do artista ao seu público, muito mais na condição humilde do cantador que na sagração antecipada, que Chico ensaia vestir de novo a pele musical, aqui sob o beneplácito cénico minimalista a convocar um esquisso pendente da linha da espinha dos morros cariocas (que ainda “arromba a retina”), e a “lua cris”, a relembrar a luz de Jobim, realumiada em “Imagina”, bem como um pano de palco como que fac-símile de uma partitura de Villa-Lobos (excertos de cujas Bachianas Brasileiras ficarão a ressoar findo o concerto). São largamente essas linhas de brasilidade e classicismo que se congregam belissimamente na inspiração sincrética do último disco, “Carioca”, e na insistência em mais um renascimento que representa, todo o espectáculo assenta na reiteração reflexiva do que, em tudo, numa vida dividida entre vocações plurais, implica voltar às canções: começar de novo, quase como que sem passado (reconhecível), para sulcar novas linhas no seu registo, como na polpa dos dedos a calejar familiarmente de novo a afinidade com as cordas do violão.
Assim se inicia em concerto senda renovada, com o mote explícito de “Voltei a Cantar”, do compositor (apropriadamente) carioca da primeira metade do século XX, Lamartine Babo (de quem, aliás, Chico já tinha recriado uma canção para “Quando o Carnaval Chegar”); assim se encerra dessacralizada jornada com mais um incerto até sempre, de artista cuja frescura se alinha com a periclitante condição, “cantando no toró” (“cantando e sambando na lama de sapato branco, glorioso/Um grande artista tem que estar tranchã/Sambando na lama, amigo, até amanhã/E o tal ditado, como é?/Festa acabada, músicos a pé”), e seguindo como em triste fatalidade circense de sorriso indelével na boca, “na carreira” (“Ir deixando a pele em cada palco/E não olhar pra trás/E nem jamais/Jamais dizer/Adeus”).
Se uma das arestas do concerto evoca essa exposição quasi-circense do cantor à carga de um espectáculo que não pode parar até que o fim se imponha, e as continuações nos floresçam, outra é reiterar a novidade do que o tempo esqueceu do que tanto ouviu (ou deveria ter ouvido). Daí, ouvir Chico de novo, implica ouvir a totalidade do (a cada audição mais) belo disco que é “Carioca”, e resgatar quase que do mais recôndito dos baús canções silentes para espantar novos tempos: três prebendas escondidas n’”O Grande Circo Místico”, obra criada para o Ballet Guaíra, duas das quais, aliás, inéditas na voz de Chico (“A História de Lily Braun” e “A Bela e a Fera”, em arranjos a puxar pelo blues, sendo a outra a referida “Na Carreira”); a belíssima “Palavra de Mulher” resgatada a um dos discos derivados da “Ópera do Malandro” (na voz de Elba Ramalho), também inédita no timbre buarqueano; e a quase desconhecida “Mambembe”, emparelhada na banda-sonora de “Quando o Carnaval Chegar”, disco que (atenção ao indicador perdulário de génio) conserva algumas das suas rutilantes pérolas.
E o mais recôndito do recôndito reservado para a música que fez com o baterista de sempre, Wilson das Neves, “Grande Hotel”, gravada apenas em disco deste. No seu chamamento, por Chico, para a interpretação desse samba e um gingado no tablado, se ressalta também a teia de familiaridades que sustêm os extemporâneos retornos de Chico, que emerge bissexto da sua submersão literária para a imersão musical, e como tal, a sua implicação não é a de quem já só de tal mister se ocupa. Tal se ilustra com a fidelidade aos músicos, como o fiel Chico Batera, e o arranjador dos últimos tempos, Luiz Cláudio Ramos, e a presença predominante do parceiro dos últimos tempos, Edu Lobo, no cômputo geral das composições agora tocadas.
Nesse particular, a direcção musical de Luiz Cláudio Ramos, tendo feito o seu mais apurado trabalho neste “Carioca”, optou por tentar transpôr a composição dos arranjos para o palco, que sustendo canções que não pedem muito para o desarme, sem o arcaboiço da artesania precisa que adorna bons espaços do disco, implicou o recurso a teclados para, por vezes, dispensáveis insuflares artificiais. Não obstante, a disposição do programa em alguns blocos esteticamente identificáveis, facilita a verificação do cuidado na diferenciação de ambientes sonoros, entre o intimismo da confissão, o blasé a meio-caminho para o cabaré, o circense de jogar com a máscara, e o arroubo fantasista. Mesmo que assim não fora, não seria nada, confesse-se, que beliscasse o que se buscava “à flor da pele” ouvir: o timbre inteiro, meio caçula e irmanado (até nas fragilidades de esquecer um verso, como no início d’”As Actrizes” em que “tinha um moço mexendo em mim” para arranjar o aparelhómetro que Chico levava à cintura) que decanta versos mais fundos que o mar; timbre que também não se basta ao seu reconhecimento tão humano no franzino, e que se atreve (e sucede), ao invés dos profetas da decrepitude, no desafio às envoltas melodias que fazem o segredo e o demorado (perene para os dispostos) enlace do seu trovar, como na impossível de cantar “Imagina” e “Eu te Amo” (ambas feitas com Tom Jobim), ou simplesmente na generalidade das retorcidas vielas pelas quais Chico conduz à vitalidade contemporânea a sua clássica resolução melódica que, consta, alguns estranham a passos mais (muito felizmente) arrevesados neste último registo, incluindo arremedo rap em “Ode aos Ratos”. E como não há tábuas rasas, terá sido nesse “Eu te amo” seguido de “Palavra de mulher” que ressoou a sequência mais comovente do velho Francisco no programa.
De qualquer forma, entre a ousadia de enjeitar receber de bandeja a devoção e o recato de quem nunca foi animal de palco - que justifica ter-lhe sido questão quase diplomática negar o seu propalado na imprensa “ser estático e sisudo”, esclarecendo que “eu é que não posso bem me mexer com tanto fio, me desmanchava”, e afiançando “demorei 40 anos a aprender que cantar é uma coisa boa”, “talvez daqui a quarenta dê pra dançar” - fica a dúvida do que escorreu correnteza abaixo de Chico para este público. Concedamos que, se não falharam apanhar o toque das primeiras palmas ao inebriante (primeiro esperançoso, depois saudoso) cirandar final de “Tanto Mar”, talvez haja remendada (como um justo “amor barato”) esperança para tais animais, que conservam na memória que o ritmo se pode fazer carne. Mas persiste a dúvida, se terá sido também a voz embargada a desculpa para um uníssono desaustinado não ter congregado perfeitamente as vozes presentes nos derradeiros encores de “Tanto Mar” (a afinar a corda da saudade com a dedicatória portuguesa e cravo lançado ao palco para a despedida) e nesse (como sempre) insuspeito cume de dilacerada beleza que é “João e Maria” (segundo pormenor perdulário de génio enquanto marco histórico: canção verificadamente tão icónica, nunca foi gravada em disco, que não ao vivo, por Chico). E entre os equívocos da cínica oxigenada ao lado à espera aborrecida de um best of (a contentar-se com pouco mais que a gostosa “Morena de Angola”, com Chico a dar toque especial dedilhando uma kalimba), ou do casal de namorados à frente a intentarem o cafuné ao quase sempre enganoso embalo buarqueano, aqui em “Mil perdões”, até o último verso lhes sugerir ser das mais arrevesadamente venenosas canções de Chico (“te perdôo por te trair”) e a cabecinha da moça deslocar-se suspeitosa do ombro do parceiro; fica por saber se ali desaguava afinal a esperança de, na sageza de redescobrir os nomes dos gestos quotidianos que nos pervertem as vozes, haver remédio para tais animais em que o verbo se pode fazer carne. Chico fez de novo tudo o que podia para tal, e se, ao arrepio subtil do encerramento “na carreira”, o que nos pulsa ainda como cindido sentimento de saudade e antecipação sempiterna de um qualquer futuro na carne e no verbo, são as palavras “Pode ser/Que passe o nosso tempo/Como qualquer primavera./Espera/Me espera/Eu vou voltar”, uma coisa é certa: a homem algum se podia pedir mais.»
Sem comentários:
Enviar um comentário