sexta-feira, 27 de abril de 2007

Assimetrias

A consciencialização dos viés de diferenciação e hierarquização social faz o que pode, e o que pode é ir-nos denunciando no mapeamento que fazemos das nossas incursões universo social afora, e o caminho porventura (mas apenas porventura) desvelará as margens terrosas. Dou assim por mim a verificar uma insidiosa e inescapável bifurcação na degustação das palavras dos blogantibus que aprecio: os presumivelmente masculinos tendem a injectar-me venenosa inveja, e os presumivelmente femininos deixam-me maior margem para refastelada admiração. Não sendo questão de diferencial de apreciação, só posso supôr encarreirar danadamente ainda na falácia de engendrar uma comparação da medida do self circunscrita aos presumíveis pares, como se de desporto de competição (é assim que se diz?) se tratasse (sendo que em xadrez também o fazem, para incredulidade minha). A única coisa que ainda me falta perceber é porque raio, nunca me tendo beneficiado antes, ainda envergo a fita métrica.

Contra factos...














Nunca atribui grande crédito (conceptual e monetário) a lojas de discos em segunda mão (excepto os apetitosos vinis, que com a crescente lentidão da minha grafonola estou em crer que a minha esperteza saloia vai deixar de ouvir por quem sabe quanto tempo).
Porque motivo é que alguém se iria livrar de gravações apetitosas que justificassem o investimento, a menos que estivessem danificados?














Poderíamos contar com um desaguar contínuo de títulos meritórios apenas explicáveis pela falência de outrém (a configurar a oportunidade do abutre), ou pela estultícia alheia ser tão clamorosa que angarie preciosidades a preço reduzido para os presumíveis sages do caixote das promoções subestimadas?













Continuo sem resposta, mas com algumas visitas no currículo a tais lojas e secções, mesmo sem a segurança da enunciação de mecanismos causais explicativos, sou empiricamente forçado a conceder que lá bons argumentos têm eles (enfim, tinham...)








segunda-feira, 16 de abril de 2007

A caducidade dos espaços

Ressenti de há uns tempos para cá uma plena saturação relativamente à divisão da casa onde até hoje empreguei a centralidade dos meus esforços de trabalho (esforços, porque chamar ao que deles sai trabalho é ofensa capaz de unir os proletários do mundo inteiro – incluindo os proletários intelectuais). Muitas horas de clausura, lascas e fragmentos de existir acumulados no tapete (pronto, é caspa), demasiados raiares inapelados, ecos vizinhos incautos ou displicentemente intrusivos, o espaço sufocado do que não mais comporta.
Mudei-me para a sala, nas noites cativo, aparelhagem em volume obscenamente baixo cuidando de outros embalos acolhendo a minha mínima companhia.
Oscilei para a cozinha, colunas de 1 euro e meio a tentar conferir um pouco mais de dignidade à projecção de som de vil portátil de 1976, entre muesli e as bananas que não se comem e se persiste em comprar.
O aparato da mudança, a dispersão dos materiais, as solicitações acrescidas, não são, não obstante, óbice. Sei que não me perturba de momento a caducidade dos espaços. A eles devo virtualmente o único motor do meu movimento, o simulacro constitutivo de persistir. No entanto, suspeito ainda guardar nostalgia antecipada de deparar algures, no novo ou no conhecido, com o mito, feito arquitectura, de um ponto de retorno, o nosso porto de abrigo.

terça-feira, 10 de abril de 2007

Beast on a leash


«Ele há coisas injustas, que as formas de organização da percepção auditiva produzem, e só muito arduamente se pode esperar rebater. Quem produz uma obra verdadeiramente singular (to say the least), sem par estilístico que se lhe veja, dificilmente pode sobreviver nominalmente a essa efeméride, principalmente se se trata de um primeiro álbum.
Os Comus mal sobreviveram do seu inaugural “First Utterance”, delírio pagão de guitarras e outras cordas como lâminas a chiar em ragas acústicas endemoninhadas e percussões obsessivas alimentadas com doses de sangue, suor e outros fluidos orgânicos extirpados em alucinados rituais sonoros, obra por demais radical mesmo para os tempos supostamente radicais de artesania do que por réstia de reconhecimento ainda se chamasse música. E os Comus reagrupados 3 anos após esse desvario ritual não sobreviveram de todo.
Renegado por todos, os próprios autores, a crítica e o público, o segundo álbum que a conveniência comercial da Virgin impulsionou na busca de estranhas sonoridades para um público em busca de algo novo a cada disco, a cada agrupamento, caiu silente nos cadafalsos da memória. Nem nas infindáveis recuperações dos mais diversos géneros associados a essa memória caleidoscópia dos anos 70 em que tudo o que da artesania ou da tecnologia saísse era música a tomar em conta, como se o som fosse recurso inesgotável de estímulos (e se calhar não se enganavam, apesar de a maioria dos resultados não o confirmar, mas as escassas confirmações serem prova eficiente?…) foi este “To Keep From Crying” resgatado, ao contrário de outros discos bem menores de tantas outras obscuras criaturas. A única reedição do seu material de que temos conhecimento (embora já deva haver para aí barrocas reedições japonesas a preço de incrustado de platina) é na recente antologia “Song to Comus” que reúne todo o material editado pela banda, incluindo um posterior single, esse sim, bem embaraçoso, editado a solo pelo seu chefe de fila, Roger Wootton. Sintomático: no livrete reproduzem-se fotos do primeiro disco, do extraordinário maxi-single “Diana” que o acompanhou (a sugerir outros caminhos, porventura ainda mais estimulantes e apurados, que a finíssima artesania do agrupamento poderia ter prosseguido, desacorrentada de uma fixação programática nos revolterares estridentes do horror), fotos da banda, de cartazes e notícias da época, mas do segundo álbum, nem uma imagem. Ponhamos os pontos então nos i’s no que a esta rodela esquecida de vinil diz respeito.
Porventura uma psicologia da audição às vezes dá jeito. Calhou, pelas excentricidades do acaso, que ouvíssemos este “To Keep From Crying” antes de “First Utterance”, e sem vícios comparativos, sem expectativas formatadas, e mesmo posteriormente tendo sido afrontados com a insanidade criativa do primeiro opus, mantemos o que nos ficou daquela primeira audição: o louvor de uma pérola da pop psicadélica contemporânea que merece ser escutada no seu singelo requinte pelos seus próprios termos.
Ou estamos muito implicados em querer reverter juízos históricos, ou os vícios da comparação são efectivamente fatais, mas escapa-nos por completo o opróbrio a que se sujeita ainda hoje esta colecção de canções. Seria talvez daqueles casos em que uma mudança nominal, dos próprios autores, permitisse fazer justiça à especificidade de uma obra. Porque é por demais óbvio que os termos criativos desta produção estão o mais radicalmente afastados do que o universo ameaçador e esgazeado de “First Utterance” materializava em ritualizada chacina sonora. A única proximidade é sugerível pela ligeira aspereza da primeira canção “Down like a shooting star”, e mesmo assim... (mas escute-se o sacadíssimo arreganhar, a espaços a sugerir larvar delírio, nas vozes, na simultaneidade sagaz da linha crescente do baixo e decrescente das vozes num grande refrão em cavalgante cascata – eles ainda sabiam da poda, dedicaram-se foi a outras culturas). Tal como dos arranjos, a única persistência é a do fulgente e ardiloso entrosamento do jogo de vozes agudas entre Roger Wootton e Bobbie Watson (it’s a she), mas aqui mais aplicados ao encanto etéreo do movimento perpétuo, quando antes polifonizavam em paranóia assanhada e inocência corrompida, a agonia e os fervores da carne.
Contudo, precisamente, para quem seja capaz de operar tal segmentação estilística (pensem que são duas bandas diferentes que partilham o nome, se preciso for), a recompensa é fausta, e quase teríamos a ousadia de afirmar que no seu absoluto contraste estético, somos capazes de ouvir os dois álbuns como a sequência de um belíssimo par (ou o verdadeiro “three of a perfect pair”, se contarmos com o dito, extraordinário, maxi-single). Para mais, somos relativamente insuspeitos em matéria de preferências delicodoces, pelo que tem que haver aqui mais substância que eterealidade fofa e vaporzinhos pop (embora tenha sensibilidade pop a rodos, sim) para nos tanger as cordas sensíveis.
Entre as queixas de Wootton na rejeição desta obra, com quebras do alinhamento inicial dos Comus, mudanças de instrumentistas e intenções de suster uma carreira comercial (daí o encosto pop), inclui-se a má produção. Ora, lamentamos discordar, mas para a que tinham, geriram-na como se não precisassem de mais. Se há coisa que ressalta das sonoridades que nos banham é a qualidade pristina dos arranjos, que não são da polidez asséptica, mas contêm desnuda a qualidade maior de definirem um claro espaço de som, de construir uma necessidade intrínseca à manifestação de cada fonte sonora para o efeito estético, configurando em certos fôlegos (os mais líricos) uma matriz de relação quasi-geométrica (“perpetual motion”, pois) na arquitectura do som. Reparem como a luz de cada canção adquire uma ambiência sonora própria, espraiada a partir de esparsas emanações de som, raramente uma delas ganhando desmesura protagonista. Aqui o tanger da guitarra acústica, ali o vaguíssimo devaneio de um vibrafone, acolá o repenicado oboé de Lindsay Cooper (dos Henry Cow), e além discretas percussões inventivas de Hellaby; a bateria aplicada primeiro para destaque tímbrico na textura de uma canção (a par do ribombar, quando requerido, do bem esgalhado baixo) e não somente como indiferenciado metrónomo, tal como o baixo (se mais langoroso, o violoncelo), com voz e rítmica próprias, mais do que pau-de-cabeleira harmónico; e quando muito um sintetizador a dar um chamariz cósmico discreto q.b. (só mais notório precisamente na canção mais fraca, a larga distância, “So long, supernova”), que estas constelações se fazem num sotto voce eficacíssimo de sugestão fulgente (e também por lá cirandou, em sax tenor, Didier Malherbe, dos Gong,). Mérito maior, aliás, na sua larga sugestão de apelos celestes (nos títulos, e nas atmosferas ou arroubos mais líricos), os arranjos das canções mais investidas nessa diáfana espectralidade tendem a gerir cuidadosamente não só a relação entre os sons, mas entre o som e o silêncio, e os espaços entre eles – a edificação da canção, ora bem.
Atente-se que nessa qualidade de aquilatar da densidade relacional do som, não falamos estritamente, ou sequer principalmente, dos interlúdios de pura evocação ambient engendrados pelo gosto de experimentação com a matéria do som de Andy Hellaby (reminiscente já da sua intervenção espectral em “Bitten” e “The Herald” no primeiro álbum). “Touch Down” (as palavras a espraiarem-se numa atmosfera de ecos em rallentando), “Children of the Universe” (a desarmante inicial melopeia estelar, o eficacíssimo crescendo), a extraordinária (provavelmente a melhor canção do álbum) faixa-título, com o seu cristalino enleio a conter e acolher no limite a violência da mágoa como espaço de transtornada doçura, são exemplares de belíssima inventiva melódica, singeleza e sageza comoventes de arranjos, canções feitas de primeira água. As outras, não colhendo da mesma vinha rubra de doçura com o travo de ardor a vogar tão acolhido nos fundos, recrutam as mesmas qualidades sonoras para devolver como delícia pop os inspirados motes da época que, se fecharem os olhos e o juízo austero, destilam a ingenuidade e frescura (as que se imaginam e vivem antes da doce laceração que este não tão inocente disco também faz correr subterrânea) que por virem de quem vêm, quando vêm, não justificam o rebate do cinismo. E se a pop fosse feita da fluidez e admirável desenvoltura melódica como a que marca canções, com apelo pop mas nele não estioladas, como “Figure in your dreams” (os belíssimos serpenteares daquele ahhh refrão), “Perpetual Motion” (contem as espirais melódicas desta em sucessivo desdobramento perfeitamente orgânico – viva a pop inócua), ou o tom de dualidade ambivalente (e desconcertante face ao desbocado título) de “Get yourself a man”, a história da pop seria um pouco diferente. Foi diferente aqui. Para quem não quiser aí demorar o passo, a perda, como sempre, será de quem deixa tolher a fruição pelos constrangimentos da história, ou o imediatismo da exposição. Dêem uma oportunidade a este Comus, da lenda expurgado para etérea e lúdica função (com laivos cósmicos e evocações misturados com la la la’s e palminhas, sim). Até os pagãos se deleitavam entre a inocência e o rasgo de consciência que tende a brotar sob as promessas do aberto céu estrelado.»


sexta-feira, 6 de abril de 2007

«A whorehouse is any house»

(não sei quem é que tem cintilantes (em forma de bola de espelhos) ideias como trazer Bonnie 'Prince' Billy e (E) Faun Fables ao (AO) pequeno arremedo de revivalismo kitsch afogado em ilubricação rubra de cabaret Maxime. Embora seja um pincel arrebanhar ingresso, estranhamente acachapando o comodismo, tenho dificuldades em não acolher com bonomia a capitosa originalidade, por exemplo, permitindo acomodar muito caseiramente o dildo como metáfora para a interpenetração musical dos seres, e no seu zelo organizacional negar a lógica reversiva de que "a house is any whorehouse")
bom...
Nunca fui um bonnieprinceano registado. Pode dizer-se que primeiramente por simples, e insubstantiva, razão: os discos são persistentemente caros à brava e ainda não lhes deitei a mão. Ao que se pode acrescentar estapafurdiamente (velha mania hegeliana de virar do acesso?) que o homem não anda propriamente carente de mais devoção (sou um samaritano nas paixões). A decisiva, porém, brotava dessa ignota contingência magna, volvida sinal na encruzilhada de tantos apelos a comunhão (talvez não tantos, incógnita x), que era nunca ter ouvido a sua presença.
Pois, não mais.
Felizmente, a estranheza entranhada barra verborreias muitas (outras). Do pouco que se exime dos votos que calam o claustro, pode dizer-se que certo repentismo me trouxe flashes do antigo (testamento) Cave. Ainda que não movido necessariamente pela mesma palavra. Como a profanação da distância emocional na fixação de uma melodia, pelos estragos desacatados no timbre desacorrentado no palco, me lembraram um pouco a incessante recriação hammilliana de tudo quanto põe na boca e mãos, dado tempo, dado espaço, que seja pela bilionésima vez. Curiosamente, já a consciência agonística do «business of selling emotions for money» (que não deixou, ainda que na crua crueldade do mero facto, de evocar) envolvido nessa presentificação extrema de cada cantar, se tomou cedo para Hammill os contornos de uma distanciação intíma (cada reverberação ontológica em palco é uma explosão dialecticamente auto-contida) de qualquer fenómeno de idolatria e sagração do público («Energy vampires» será o apodo mais mimoso que dirigiu a tais séquitos), parece, pelo menos neste tempo, tomar outros bem diversos para Bonnie 'Prince' (porventura aí mais se diferenciando as respectivas modalidades de encarnação do ressentir soberano de cada, cada, canto). Sente-se bem, deste lado (público), creio, essa ameaça permanente de desconforto por uma adoração voluntariosa que ameaça a cada momento a disrupção do cantar liberto e ouvir comungado, como que na exigência de um pedaço do homem por cada devoto, carentes de fazê-lo mais seu (e, por definição, menos ele?). Desconforto provavelmente irresolúvel na mútua dependência constitutiva que esse canto sagra. Mas se o cantador se expõe de pé junto à carência potencialmente carnívora, não o faz com evidência na nudez do homem. Pareceu-me haver ali uma profunda dimensão jogralesca, a recobrir o gume macio dos cacos do bule de porcelana a desvelar a cor do osso (perguntem-lhe...), por entre os aparentes caprichos do storytelling a irromper nas canções a ficarem inacabadas, ou amalgamadas, nas suas provocações discursivas aos limites culturalmente ponderados da carne e orifícios (entre outros), a vertigem do stream of counsciousness (e de convoluções) na ambiguidade sempre liminar do acting out, a escusar a entrega de si sem mediação, quando é precisamente por esse filtro que se pode abdicar de si às palavras nos seus matizes mais ferinos de infiltração. Daí poder fluir com relativa liberdade por entre as margens enclausurantes da veneração, paradoxalmente jogando, com mestria encarnada (já de si um paradoxo para o caso), com as suas convenções, eludindo-a ao passo que a alimenta. Como alienígena, posso abusar da semiologia, mas ressoar «I See a Darkness» dentro do "plano" (chamemos-lhe assim...) do "programa" (idem) de concerto, e não ser evitada, ou surgir como encore, e antecipando-se à guarda (aliás, requerida) do jorro de pedidos de mil e uma canções a rebate a estender a teodiceia, surge-me como mais que eloquente dessacralização.
É, será também questão que estes esventramentos e cultos também não tanto se operam sem a primordialidade abandonada de um canto. Mas já isso diria cada vez mais constatar justificado: quem tem algo de visceral a dar, murro para trespassar a solidez dos corpos, fá-lo de um punho só. Tudo o mais resulta meio rede de segurança, meio fogo-de-artifício. Nada que valha um bocado orgânico da vida.
Enfim, nada disto interessará muito.
Talvez não se cuide plausível elaborar a imponderável compaginação em corpos, de risos e aplausos ao canto, com tripas esgarçadas no soalho.

(É de convir: é fodido abrir para Bonnie 'Prince'. Em compensação, seria inconcebível fechar para ele. Ainda assim, mesmo tendo que requisitar regressão mnemótica, há que reconhecer que os Faun Fables, espécie de Comus renascidos com a paleta ampliada de misticismo e cromatismo, numa folk assombrada, de candura e fascínio pela delicadeza milimétrica de poções e maravilhas e a força bruta de mitos e narrativas, confirmam-se uns bichinhos levados da breca. Fazer estremecer o palco mais que nos barroquismos de disco, sós em casal, somente dispondo à vez de guitarrita, flautinha, djembé e soca de sapato, é obra de gente com evidente talento e uma palavra decidida a dizer. Como woof. (antes desse uivo primal de wolf among necessarily undiscerning wolves. ou "estranha forma de vida"))

terça-feira, 3 de abril de 2007

A estratégia da aranha

Pode ter a sua graça, mas não lhe tenho achado piada nenhum. Entre várias razões, incluindo a vaga chama de acontecimento público com que alguns ciclos da Cinemateca se têm apresentado (ou a profecia da multiplicação de espectadores de Langlois vertida em maldição individual), tenho vindo a não conseguir assistir a alguns tomos centrais de certas obras. Papei bastante do recente ciclo do Murnau, mas precisamente o Nosferatu escapou-se-me por entre as mãos. Andei imerso em Rossellini, mas o Roma Cittá Aperta, está quieto, e por duas tentativas. Curiosamente (temos que consolar-nos com algo até a carência perder sentido), tornou-se-me mais claro ser um exercício fascinante, abordar uma obra a partir das suas margens, em que a processualidade e/ou a tentativa desequilibrada deixam entrever com maior clareza a especificidade do seu dialecto.
Há algo de estranhamente galvanizante em assistir a uma estética a lavrar ao arrepio de ditames de encomenda propagandística.
Há algo de luminoso em descobrir mais desabridamente em capítulos de estilística atípica (como as "comédias" - apesar da relativa ironia de alguém lhes chamar, mesmo com os chamamentos simbólicos e programáticos a tal, comédias) as mais sintomáticas incepções idiomáticas de uma visão do mundo, como lugares hermenêuticos privilegiados em que essa visão e a linguagem que constitutivamente a alberga têm que divisar sintaxes para se veicular ao arrepio da comodidade formal.
Ou encontrar numa das suas revisitações do contexto italiano da 2ª Guerra Mundial, no seu período mais desconsiderado (entre a Bergman e o projecto pedagógico televisivo, fora os filmes sob o fascismo), uma desconcertante transposição formal, para a experiência de um filme, da expressão que se quer dar da vida representada. Se o meu senso comum para generalizações abusivas ainda estiver operacional, presumo que serão poucos os espectadores inocentes do filme, cujo título omito (quem quiser saber pouco tem que pesquisar) para não ser ironicamente acusado de spoiler, que não presumirão, ao cabo de uma hora e tal de filme, com a morte de um protagonista, e o fim do huis clos invertido que concentra a narrativa, que o filme estará a terminar. Mas não finda. Dura, e dura, e durará talvez mais uma hora e meia (tempo para outro filme), arrastando-se talvez (e precisamente) ao exaspero, esvaíndo-se (ironicamente, ao mesmo tempo que se abre) a narrativa das pessoas que a ancoravam e dos mundos que albergavam e sua perspectiva, até que ao final, com o sinal do término da guerra, o que fica a quem resta, por entre a encenação colectiva de libertação e euforia, e a quem olhava e se descobre em estranha alquimia transpondo a distância emocional e intelectual (importante) do projectado no ecrã (salvas todas as distâncias...), é, longe de qualquer gáudio, alívio ou satisfação, mais que um nó na garganta, mas fruto desta durée exangue (na história como no celulóide), um insanável vazio na alma.
Eu sei que isto deveria pelo menos ter o arremedo de uma punch-line qualquer para os requisitos primários de apresentabilidade, mas, sob o signo da santa improcedência, hoje não me apetece falhar o esforço.

Talk to the hand

«Os Gnidrolog são uma das recentes (re)descobertas dos baús do progressivo de 1970’s. (Re)descobertas, porque as descobertas é substantivo agora reservado para grupos que nem sequer chegaram a editar à época, e que são ressuscitados com edições fora de tempo do que nem então chegou aos registos musicais. Tudo isto se parece descolar de um renovado interesse no género, que globalizações, internet e sociedades de consumo possililitam para a exploração de um novo nicho de mercado musical. O supremo exemplo de tal são as hodiernas ressurreições de bandas que, sem um contributo artístico ou sequer sinais de vida há mais de duas décadas, voltam à vida para mimetizar mais ou menos esqualidamente os seus espectáculos daqueles idos, ou, em geral mais desgraçadamente, editar novo material.
Os Gnidrolog acompanham em alguma medida esse passo, ainda que não tenhamos ouvido o seu mais recente disco editado já neste milénio (e não estejamos em pulgas para o fazer). Contudo, os pergaminhos que deixaram dos seus dois registos da década de 70 são, na verdade, assaz recomendáveis, e é de alguma forma espantoso como as arqueologias discográficas deste período têm, neste assomo de ressurgimento do progressivo, conseguido desenterrar a velocidade constante algumas pérolas de música deste fértil contexto temporal.
“Lady Lake” é o segundo álbum desta banda, cujo nome constitui anagrama arrevesado do nome dos irmãos (mais uns) Goldring que a encimavam, e é marcado caracteristicamente pelas especificidades de várias tendências progressivas da época, muitas vezes identificadas com as suas bandas seminais. Neste caso, francamente, haverá quando muito uns cheirinhos de Gentle Giant em certos tiques de composição, mas apenas em um ou dois temas (como o derradeiro), e, pela valência superlativa dos sopros, a única aproximação mais certeira será talvez a algumas sonoridades dos Van der Graaf Generator, embora no caso dos Gnidrolog os sopros não cheguem a ser instrumento de construção de pontes para outras esferas de som. Simplesmente demonstram-se de uma eficácia a toda a prova nos seus riffs a régua e esquadro que detonam as colunas com a eficácia de um acorde frippiano em dia viperino, com um certo enraízamento telúrico e um negrume gótico muito próprios (de que nem as achegas pastorais de uns Jethro Tull são propriamente próximas). Peças como “Ship” demonstram à exaustão a eficácia deste combo siamês de sopros, que se ocupa por si só de praticamente toda a sustentação da rítmica que sobressai da composição. No caso do final de “I could never be a soldier”, tal suma instrumentação chega a tornar válida a espera de que despachem quase dez minutos de uma balada de inspiração meio hippie (se os hippies se dessem mais a inspirações góticas em florestas de sombra do que ao flower power) para a sequência que termina e redime a peça em esfuziante cavalgada sonora. A sombria faixa título, repete, num crescendo de mais eficácia, uma declinação temática semelhante ao método de “I could never be a soldier”, até atingir um menos surpreendente clímax, mas este carregado de fatalidades, contendo ainda uma introdução ritmicamente admirável, mais uma vez comandada pelo incansável exército de sopros.
Há ainda duas baladas, a desolada “A dog with no collar”, a antecipar o tom sombrio da faixa título, e a irritantemente adocicada “Same Dreams” (musical e liricamente – haja pachorra, já em 1972 versos como “we share the same dreams/the same hopes/the same cigarettes” eram cliché repetido à náusea). No entanto, o ponto alto da singularidade instrumental e composicional do grupo será talvez o seu culminar, “Social embarrassment”, que, se a espaços tem vocais que ameaçam fazer justiça ao título (intencionalmente?), cedo, na cadência impiedosa dos instrumentos em curvas e contracurvas tonais e rítmicas, desmancha, no seu rigor composicional de constantes angularidades imprevistas, quaisquer reservas. Estes senhores merecem inquestionavelmente um lugar reputado entre os mais refinados agrupa- mentos do progressivo da época: não sei se repararam, mas na indubitável excelência instrumental dos cavalheiros não surge um único exemplar da praga de teclados electrónicos da época, geralmente (geralmente) malfadadas máquinas de criar ambiente e cama para sinfonismos ou trips espaciais de pacotilha. E isso, no nosso livro, dá-lhes pontos a rodos.
A única infelicidade da edição que nos disponibilizou recentemente esta delícia é reunir os dois únicos álbuns da banda num só CD, o que a carteira agradeceria se no processo não se tivessem dado ao trabalho de dar cabo das capas dos discos, reproduzindo-as ambas em miniatura no frontispício do CD. Em épocas de downloads, não cuidar da estética do objecto CD (quando a atracção dos belos vinis também ressuscita), é um hara kiri das próprias editoras. Atentem, por exemplo, nas cuidadas reedições recentes dos Beach Boys: é possível manter alguma dignidade mesmo nas edições 2-em-1 – os melómanos de carteira à míngua também têm direito a alguma qualidade... já bem basta terem de rebuscar nos caixotes atamancados das promoções.»