Não sacámos a nominalística à conta do Chris Andrews, não...
«Robert Wyatt foi primeiramente um dos músicos centrais da chamada cena de Canterbury do progressivo inglês, mais jazzística e afastada dos sinfonismos que descambaram nos clichés que ainda hoje tornam o género vilipendiado a priori em muita esfera pública, tendo comparecido primeiro nos seminais Wilde Flowers, depois nos consagrados Soft Machine, posteriormente agrupado os singulares Matching Mole, e tendo exercido inúmeras colaborações com outros músicos que até hoje têm o bom gosto de o convocar. Contudo, essa parte do seu currículo, que parece ser já uma súmula, cumpriu-se efectivamente nem numa década. E após o momentum do progressivo na primeira metade dos anos 70, Robert Wyatt, ainda que com mais colaborações, mas escassa produção, configurou-se como uma das poucas figuras de autor dessa era que soube demonstrar quão funda era a raiz da sua música, mantendo-se em plena vitalidade criativa, irrestrita por classificações, nas décadas subsequentes, reconfirmada já no novo milénio. Vitalidade essa que, pela sua própria natureza, se fez da reconfiguração das premissas em que assenta a sua música. Talvez como uma espécie de Peter Hammill, sem a hiperactividade, e com o dramatismo afogado (a deixar antes ouvir uma bolha aqui e ali...).
Old Rottenhat, um dos exíguos títulos que lançou nos anos oitenta, como noutras décadas aliás (exprimindo talvez a sua velha inclinação para actividades mais produtivas, como dormir), pode suscitar estranheza na sua oferenda musical a quem espere deparar-se com algo de inspiração mais "classicamente" progressiva, mesmo na vertente heterodoxa dos agrupamentos a que pertenceu. De facto, a tessitura musical do álbum configura-se no movimento mais back to basics que Wyatt maioritariamente exprimiu nas obras subsequentes ao seu período de catarse rock bottom, como que exprimindo a partir da estrita circunscrição dos limites da sua própria pessoa a solidão constitutiva do seu discurso musical. Consequentemente, um combo de sintetizadores, esparsas percussões e voz, tudo a encargo do próprio, foi quanto careceu para ancorar as canções que por aqui pairam. Mais que suficiente, à luz leda destas melodias, para quem busque música no seu mais simples encantatório. Ao ouvir a voz de Wyatt (que para muitos, bons e sensíveis ouvintes, é já câmara de entrada para a comoção) esboçar no cristal imperfeito do seu ambíguo falsetto os vôos das suas envoltas melodias, um universo singelo de emoção contida se destila aos poucos para um deslumbramento insuspeito. Para todas as decadências anunciadas da melodia na música contemporânea, o simples fio que articula músicas como "Alliance" e "Mass-media" é a contra-prova cabal. Efectivamente, para os encantados, percussão e sintetizador quase seriam mero suporte descartável, não fosse a heterodoxa herança jazzística de Wyatt a soltar, como possibilidades de outro universo que daquelas melodias se poderia destacar, pequenos devaneios instrumentais em intermezzo ou codas de várias canções, que desconstroem, no mesmo movimento, a continuidade e o transtorno das melodias em que se entroncam, modulando de forma outra o que julgávamos, incautos, ser o seu tom perene. O melhor exemplo desse exemplo maior de singular escrita de canções é mesmo o literalmente esboço que termina o álbum, "P.L.A.", mais uma dedicatória à companheira (amorosa e produtiva) Alfreda Benge, em que de dois versos, uma sequência melódica, e o final desaguar instrumental, todo um espraiar afectivo se desvela, num pano de motivos infantis, que nos remetem, na desarmada ternura que instalam, para os desenhos naïf-mas-sei-o-que-estou-a-fazer da esposa “Alfie”, que aqui, como quase desde o início da vida musical a solo de Wyatt, se ocupa da desarmante arte de capa dos seus álbuns, produtos do verdadeiro casal-cooperativa. Consideremos, contudo, que mesmo estes esparsos recursos sonoros não deixam de ser explorados com a máxima sageza, conseguindo-se efeitos de densificação sonora insuspeitos para tal arsenal, com overdubs de voz e outros pequenos truques do ofício, como a construção em crescendo de “Garbzadeghi” demonstra.
E porque Wyatt se fez também homem de palavras (outra invulgaridade para os clichés do suposto género progressivo), as investidas políticas permanecem como substracto aguerrido em arguta elaboração, imprevisto em tão despida e delicada empresa. Investidas que, não traindo mas não decalcando as filiações assumidamente marxistas do autor, se orientam politicamente para a crítica de muitas margens do real, característica também de basta produção a solo de Wyatt. Aqui, para lá de críticas de classe (que de mais palavras não careceria senão o intróito de efectiva canção popular old rottenhat em “Gharbzadeghi”), mas também críticas às formatações comunicacionais dos mass-media, às dissimulações das desigualdades sociais nas (ditas) sociedades de consumo, aos fechamentos etnocêntricos do olhar e à desigual estrutura de poderes do mundo que organiza essa insularidade e soberba cultural, entre outros, é de relevar um tema que, neste canto também banhado pelo Atlântico, nos escapou na altura, certamente: uma referência a um certo território, deixado à mercê da anárquica lei internacional do mais forte, chamado Timor-Leste. Se olharmos para a data em que o Sr. Wyatt dele se lembrou, dir-se-ia que, até por aí, muita gente devia ter posto os ouvidos neste cavalheiro há muito tempo atrás.»
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