segunda-feira, 28 de maio de 2007

Reverse Warhol

Por certo que, estando algumas das criaturas a perder o bom senso de se manterem nos respectivos redis, tenho a minha quota parte de doubtful and minor celebrities sightings. Todavia, nunca me senti muito confortável a fazer o cerco aos bichos, e das poucas oportunidades em que o terreno era de tal forma favorável que seria uma ofensa ao espírito dos antepassados deixar a presa escapar, senti (punho no peito) uma certa desilusão com a minha mock idolatry, porque a verdade é que o encontro sempre me deixa largamente indiferente, e a exposição mútua (là, nous sommes pareilles) ao desconforto do matching outfit das presumíveis camisas-de-forças interaccionais de ídolo-idólatra torna-se uma pequena concessão abjeccionista à escatologia da fama.
Claro que levanta-se igualmente o problema da porosidade e contingência potencialmente dramática (para os próprios) do que constitui efectivamente uma celebridade. Dificilmente se pode dar crédito aos meus pruridos retóricos da caça à luminária estando a generalidade dos seres algo pensantes a borrifar-se para quem são (eu próprio tive que ir verificar parte dos nomes da unwilling pandilha) Mike Sary, Steve Fuller, Nicolas Masino ou Renate Knaup (e esta ter-me dado um autógrafo fugidio com "love" e o meu nome lá pespegado, quando, pelo fugidio, só esperava uma assinatura para poder vender no e-bay em caso de carência futura, fez-me sentir-nos bastantes conspurcados por uma espécie de mercantilismo emocional - alienação não tão pós-marxiana - com a desvantagem da assepsia); ou tendo eu como trauma por deflagrar, a probabilidade de, tendo sido arrastado em grupo de méconnus do cavalheiro para o assédio pós-concerto, o Odair Assad ter reagido com um mal-contido "Pelo amor de..." ao meu desconfortável salamaleque para assinar o programa (estou certo, porém, que foi apenas um acesso espontâneo de religiosidade); ou, apesar de ter participado na emboscada à boca do palco, a bem-educada relutância do Hammill à adoração tendo propiciado ser um amigo, e não eu, a arranjar-me o autógrafo (num hábil dois-em-um) do cavalheiro num LP; ou também, tendo descoberto que o vinil do "Olho de Fogo" do Janita que comprei num mercado estava autografado para uma A.M., para mais "com um abraço forte do Janita"!, o que me fez novamente lamentar a potencial frivolidade destas sígnicas (presumíveis) afeições; ou, principalmente, desta feita, já não sabendo minimamente a quantas ando. You figure it out.
Portanto, no meu little corner of the world de misantropia ressabiada, a escala Warhol de contabilização de close encounters de mundanos com celebridades, só pode, para minha paz de espírito, ser encarada como uma wanna-be falácia (estou cônscio da contradição) travestida de cosmopolitismo algébrico (razão pela qual vou sobrecompensar continuando a chafurdar-me em ainda mais assorted anglicismos). Abro uma excepção na minha desdenhosa mesquinhez, quando muito, na eventualidade de alguém se poder gabar de ter feito cosquinhas na barba do Herberto Helder.
Agora, the real game, the big game, Hatari-style, if you will, são de facto, o celebrity-reversal e o celebrity-uncovering.
O celebrity-reversal consiste, naturalmente, em tornar-nos o objecto da atenção da celebridade, desconstruindo a falácia da necessária unidireccionalidade desse campo de energias. Para evitar potenciais trágicos na sequência de semelhantes intentonas, obviamente que a reversão tem que estar ancorada nas excentricidades inofensivas do self, não impondo dispositivos coercivos de encarcerar essa atenção, ou será desqualificada por emprego indevido de meios artificiais e improficientes (qualquer forma de imolação, por exemplo, não dá as mínimas garantias e seria, argumento-chave, francamente patético).
Um exemplo clássico da minha mestria nata nesse campeonato, por supuesto mantendo-nos no pressuposto facilistista-faz-de-conta-que-é-desconstrutivista do "que é uma celebridade?", foi ter-me deparado, numa casa de espectáculos (chamemos-lhe assim) enquanto se aguardava o início de um concerto e se ouvia umas tunes, com uma vaga celebridade parcialmente blogosférica, com a mal-disfarçada volúpia incrédula de quem descobre em outrém um objecto de ridículo superior, especada em mim, após este vosso ter terminado no seu cantinho um intimate albeit somewhat public playback sonoro do «Pleasant Street» (com o falsete e as oitavas todas espremidinhas). Mas tende calma; ainda que este cenário ameace tornar atractiva a hipótese da imolação, o seu poder é precisamente o de sinalizar no corpo, mimeticamente, o quanto a substância da fama, particularmente nos escalões mais rebarbativos, não se encontra necessariamente geminada com qualquer forma de talento, e que realmente, não se discerne, ao assistir novamente ao "Silence of the Lambs", que constitua feito distintamente assinalável o Anthony Hopkins passar um filme inteiro a imitar um furão.
Já o celebrity-uncovering, emana a sua recompensa, no registo são e maduro de auto-confiança (do predador) e liberdade pessoal (da presa), da incorporação de uma familiaridade desinteressada com o objecto de atenção que permite, em condições ominosas, sermos atingidos pela epifania da sua identidade secreta, e deixá-la seguir anonimamente o seu caminho (como quem caça sem balas no rifle, mas na verdade não caça, apenas se depara com a presa, e por acaso tem o bacamarte à mão, mas não é gente belicosa) - obviamente, na disposição perfeitamente oposta ao jeito pueril que desconhece as fronteiras do obsceno, epitomizado na triste caça fotográfica ao recôndito Pynchon, comentada, por razões óbvias não direi exactamente onde, mas algures por, onde mais?, aqui, em jeito de expiação colectivizada pelo leitorado cusco, caçada essa que ironicamente acabou por trazer antes o Stephen King, que é como quem diz o Lou Reed, de volta para o acampamento, o que tornaria simbolicamente a Pynchon-Cale connection um campo de especulação existencial de proporções comprovadamente inapreensíveis pela patética semiótica da money-shot).
O caso mais recente que me ocorreu nesta modalidade, curiosamente, foi avistar um sujeito de chapéu de coco a admoestar o gerente da fnac do Chiado pelo facto incompreensível (indeed) de não terem uma edição em vinil 180 gramas da obra-prima proto-punk-prog dos Happy Guillotineros; a oferecer os seus préstimos na Bertrand para traduzir o «Against the Day», a preço de custo(?), em semana e meia (e não era o Miguel Serras Pereira), para "colmatar essa chaga purulenta, no já de si macilento - saggy, na verdade, poupo-vos à metáfora original - panorama da edição portuguesa"; e a dar um bacalhau ao Rui Veloso no pub O'Gillin's, desabafando, enquanto meneava a cabeça, "somehow, it's not the same..." (embora ao chegar a mince pie à mesa se lhe tenha ouvido, em suspiro de alento, "closer...").
Entretanto o Herberto que se ponha a pau, e a farfalhice a jeito: he's coming next...

Space Jazz With Me

« Está assente que o Carlos Barretto é dos contrabaixistas com c grande que dispensam mais adjectivos, por isso já poupámos umas linhas. A partir do trabalho prolixo que tem vindo a desenvolver em parceria com os nada menos estimáveis Mário Delgado e José Salgueiro, têm emergido alguns dos registos mais estimulantes do jazz recente em Portugal, e este agrupamento mais expandido e plural, In Loko, com Bernardo Sassetti, João Moreira e Hugo Meneses, pretende estender esse entusiasmo por mais instrumentistas e tantas outras vias expressivas.
De ambição sincrética no cruzamento de estilísticas, a genealogia do projecto aparece pela linhagem do jazz-rock, mais, diríamos, do que da fusion. Pelo menos, sendo esta entendida como lavra de virtuosismo tantas vezes estéril. Em certo sentido, há muito mais um entendimento musical do trabalho sobre o material e o puro som que está mais próximo da ambiência genésica de “Bitches Brew”. Particularmente assim é, et pour cause, no trompete de João Moreira (em certo sentido, o músico que ali se levou a si próprio mais a sério), num estilo subsumido, algo distanciado, e sim, a dar para o cool, que não deixa de evocar o timbre de Miles Davis. Contudo, num ensemble mais democrático, as equivalências cerceiam o mimetismo, e antes de mais, este In Loko impõe-se, bem mais musculado, como uma máquina danada de groove, desde logo alimentada pela secção rítmica firme de Salgueiro e a variação tímbrica das percussões de Menezes (com o feel das congas a não faltar). As síncopes e sentido de adesão rítmica (típicas das malhas sempre irrepreensíveis de Barretto) tomam as rédeas dos temas, apesar de no seu desenvolvimento a voracidade dar azo a reverberação rock (que só dispensavam a denúncia pelo kitsch das luzes epilépticas), emanações psicadélicas e investigação atmosférica. Curioso, aqui, o scherzo cósmico entre Sassetti no Fender Rhodes e Mário Delgado na guitarra tratada, numa palpável constelação de blips.
Nesse domínio de exploração tímbrica, se não pudemos apreciar plenamente a arte de Sassetti, muito longe da sua contenção recente, foi indubitavelmente lúdico assistir ao prazer visivelmente juvenil com que abraçou a novidade de explorar o teclado futurista e lisérgico do Fender Rhodes, em jeito ora de frenesim harmónico, ora de impressionismo esotérico.
Também nessa sede exploratória, deparamo-nos com a incorporação de tratamentos electrónicos das vozes instrumentais, multiplicando fontes de reverberação e surpresa. A novidade resulta indecisa no juízo: por vezes, o tratamento, pelo menos ao vivo, pode arriscar interferir com a fruição do fraseado, como ocorreu ocasionalmente com a guitarra de Delgado (para nossa particular frustração). Quando é incorporado num desígnio estético peculiar, contudo, os resultados podem ser muito felizes, como quando Barretto (ainda que tendo que compensar a quase interrupção do andamento para ligar ruidosamente o pedal), ampliando em eco a vibração do instrumento, e combinando no uso do arco legatos e staccattos percutidos, transformou literalmente o contrabaixo numa máquina lírica de breakbeats.
Parece razoável, no entanto, antecipar um cuidar mais atento do organicismo da exploração, que não deixa aqui e ali de abraçar estranhamente certas convenções (solo de bateria incluso), e não ligar plenamente o fluir das transições, criando, a espaços, um certo clima de indecisão, que sendo prazeiroso no gozo com que os músicos manuseiam os instrumentos, nem sempre favorecerá a textura da interacção (daí porventura a necessidade ressentida de manter canónicos compassos de improvisação solista), e pode não ser propriamente o patamar de identificação estética com que se querem comprometer. No fim de contas, o cliché cumpre bem o que se oferece dizer: a coisa promete.»


sábado, 26 de maio de 2007

When all else fails...

we'll still have videogames

...

ooooooor "we can whip the horse's eyes and make them sleep and cry"...


(não, para o caso de a Associação de Defesa dos Animais não ter na lista de espécies a proteger o Lizard King, esclareço antecipadamente que não fui o moçoilo do Equus. Quanto mais não fosse por diferencial anatómico (sei que já estou a abusar, mas é por uma causa medíocre). Falo do filme, claro, Sidney Lumet, Richard Burton, e tal (humm, neste "tal" alojando-se velhacamente um actor sob a alçada, intransponivelmente parca, no matter how high your hopes, do seu big penis), não da mais recente e famigerada encenação da peça. Apesar do vago corrupio internético de fruição vagamente iconoclasta que se contenta com o fecho éclair em lugar da picareta, escapei a espreitar lá o que ocultavam as culottes do ex-miúdo Harry Potter pelas fotos que para aí correram. Antecipo que mesmo em indiferença libidinal, a visão da exposição não deixaria de sugerir que me sentisse algo porco. Se o passado é um país distante, leva o seu tempo a lá chegar, e enquanto se afasta esfuma a liminaridade das fronteiras)
(e sim, nego à partida uma zoofilia que desconheço)

domingo, 20 de maio de 2007

sábado, 19 de maio de 2007

Para o Vasco Barreto

Não me dou bem com polémicas, particularmente com escribas que aprecio. Presumia que o comic relief do post anterior evitasse mazelas, mas suponho que do lado da recepção tal possa legitimamente ser interpretado como mera cobardia retórica. Nestas coisas, uma palavra, um tom ambíguo bastam, e não terei cuidado suficientemente de evitar a possibilidade de personalização(que não era a intenção, apenas acordei para a discussão com os seus textos, e neles vislumbrei matérias não questionadas). Precisamente por isso, deixo apenas umas notas concretas sobre a matéria:

- a picardia da pulga, é de facto uma picardia, que se ajustava ao argumento, não a uma sua qualquer reivindicação explícita de autoridade. Contudo, a pulguinha de Hooke, para lá de um marcador temático, assinala a familiaridade do autor com a área da biologia, investindo-o, por definição, com autoridade credencial, critério que outros consideraram quasi-excludente nesta discussão (it's really not all about you). Mas não deixou de ser na base da neutralidade científica (aqui metonimizada pela estatística) que pretendeu ancorar a validade os seus argumentos (digo eu). Claro que só leitores mais aturados ou fiéis o saberão biólogo, mas aí, essa é condição pela qual não encontro grandes razões para me vitimizar, ainda hoje.

- assinala em mim uma retórica de vitimização e anti-homofóbica. Não recordo ter-me reivindicado ou encarnado vítima e/ou afiliado de nada, e não entro em discussões racionais com declarações de interesses (preconceito iluminista). Poderá a sua semiologia estar mais afinada que a minha. Se assim não fosse, esse seu descartar de certos argumentos soaria a, chamemos-lhe, retórica de vitimização invertida, óptima muleta de desconsideração e menorização argumentativa de outrém, como irredimivelmente refém de fidelidades grupais e interesses individuais. Seria bastante desadequado para a pretensão de argumentar racionalmente, ainda que o interlocutor não valha o esforço. Quanto a isso, e ao mais, seria o último a fazê-lo sentir-se obrigado a dar-me troco: não pretendi forçar argumentos inanes com a pressão de qualquer righteous indignation (era mesmo comic relief). Se foi essa a sua impressão, o que tem a fazer é, logicamente, ignorar-me à discrição.

- se efectivamente tivesse encarreirado numa vitimização, e discussão de explicitamente hidden agendas discriminatórias, teria pegado à cabeça na, aí perdoe, triste "graçola" do último parágrafo do seu primeiro post sobre o assunto, equacionando jocosamente (partilhamos pelo menos o problema do comic relief), em termos paralelos, a homossexualidade e, lá está, uma plêiade de comportamentos de risco - se o Vasco Barreto verifica com inteira justeza que nada de novo eu disse sobre grupos e comportamentos de risco (era chato não estar a fazer render pensamento inovador para lá deste pardieiro), a sua piada sugere que, mesmo em repeat, ainda não se ouviu é falar o suficiente sobre a matéria.

- já agora, porque se estou aqui só pelo desporto, não estou aqui só pelo desporto, uma nota sobre a questão da toxicodependência, que não tinha aflorado, mas vi-o empregar na resposta ao Bruno. A questão da exclusão de toxicodependentes da doação de sangue é certamente discutível, mas parece-me conter matizes menos problemáticos que a exclusão de homossexuais. Em primeiro lugar, estou em crer que o critério concreto de exclusão se prende com drogas injectáveis, não toxicodependência em geral. Em segundo lugar, presume-se que esteja comummente associada à toxicodependência, ao fim de determinado tempo, a degradação de algumas funções cerebrais. Presumo que a capacidade de exercer um juízo de memória e consciência sobre a adopção de comportamentos de riscos (o esquecimento de uma partilha de agulhas em situação de ressaca) pode arguivelmente ser suspeita comprometida. Se agora quiser argumentar o compromisso das funções cerebrais na homossexualidade, é consigo. Já agora, ainda que não seja comigo, não posso deixar de achar curiosa a sua invocação do "então e os toxicodependentes?" para uma discussão centrada na exclusão de homossexuais. Faz-me lembrar, parcialmente, um vago paralelo com as palavras rasantes de alguém, rezando «Noto também que faz parte da retórica anti-homofóbica inverter as posições (colocar os heterossexuais no lugar dos homossexuais, como grupo observado em vez de grupo que observa) mas neste caso concreto não faz muito sentido».

- em termos de argumentos, se ainda contar, uma precisão: o seu, na eventualidade de o ter percebido, consistia em considerar a comparação das prevalências estatísticas da infecção por HIV entre população homossexual e heterossexual, boa ciência para ajuizar da validade de exclusão de dadores homossexuais caso haja risco estatisticamente acrescido associado a esse colectivo estatisticamente construído. A questão que pretendi aflorar (pretensões leva-as o vento) estava a montante: saber se a homossexualidade, enquanto forma não inequívoca de categorização dos indivíduos (dos seus actos objectivos? da sua auto-identificação?...), assente estatisticamente em estimativas, e no entanto assumida como categoria "natural", é à partida uma boa variável de correlação com comportamentos de risco, na linha da causalidade directa da infecção; e se a sua aplicação como critério de exclusão num sistema de selecção estruturalmente falível, porque parcialmente assente na auto-exclusão, seria proficiente - e isto estritamente para efeitos de saúde pública. Não repetirei porque opino, sem autoridade (não estudei empiricamente a matéria), não só que não, mas que pode ser contraproducente (sem entrar sequer na questão tida colateral do reforço social de estereótipos e suas consequências, que as tem, como o provável acréscimo dos fenómenos de marginalização e exposição a, cof, situações de risco) - acrescento apenas que a inclusão da homossexualidade possivelmente alargaria as malhas da triagem, não o inverso, enquanto chapéu de comportamentos menos específico e como tal menos susceptível de auto-identificação, que a concretitude da inquirição de variáveis directas de risco (ainda que a mesma também não seja matéria simples). Mas se passou ao largo da sua inquietação com a saúde pública, certamente não passava de frescura de antropo-sociologia.

- ainda a respeito das debilidades da engenharia social do dispositivo de triagem (para mim, a questão sensata de saúde pública), e da correlativa redundância da inclusão da homossexualidade enquanto categoria de auto-exclusão, deixo-lhe as contradições da sua pena, para que meça, e reflicta mais relaxadamente, pelas palavras próprias, o aquém, na sua posição, do rigor de uma regressão linear: «Infelizmente, não podemos fazer com que o sistema dependa do juízo que cada um faz dos seus actos.»; «A verdade é que, em muitos casos, dar sangue ou não é uma questão que o indivíduo deve resolver com a sua consciência.». Em que ficamos?

- anular a relevância de um questionamento dizendo que se trata de um mero cliché ideológico não combina francamente bem consigo. Se o único critério para aceitar a exclusão ou não de homossexuais como dadores é a comparação estatística da prevalência do HIV entre homossexuais e heterossexuais, não percebo (o que não equivale a sugeri-lo, atenção) porque é que, cientificamente (já socialmente, pode argumentar o breakdown dos stocks), o critério não é operatório para ambas as populações: something's missing. Explicar essa diferenciação, parece-me aqui a coisa "científica" a fazer. É tão simples e tão não-cassete-programática quanto isso.

- explicar essa diferenciação consequencial na aplicação de um mesmo critério a duas populações diversas, dizendo que isso se deve ao HIV ter-se expandido originalmente a partir da população homossexual, é não só absolutamente nebuloso para a minha limitada cognição, como implica sugerir que o seu argumento estava colocado numa perspectiva histórica. Sejamos honestos: só com muito revisionismo seria o caso. Logo por essa razão, não lhe podia ter assacado intenções moralistas (a última citação não lhe dizia respeito) - paremos de brincar às vítimas. Mas como ninguém é tão nerd para andar feito catatua a repetir factos à toa, convenhamos que introduzir um facto qualquer num contexto discursivo é feito em função do poder argumentativo que para uma posição determinada desloca. Em relação à invocação do facto no contexto desta discussão, se não quer retirar consequências de proporções bíblicas, parece-me que o sensato é acordar que o facto não veio aqui fazer nada (a menos que se quisesse partir para a discussão histórica - e mesmo aí, a questão não era tão linear, mas era igualmente improcedente, pelo que me fico).

- assinalo a reiteração em loop da minha falta de originalidade (não o sabia critério) argumentativa, incluindo a discussão emanada do seu texto no 5 dias como origem de algumas das ideias que reproduzi. Como seu leitor (there's the bitchy ironic victim again), e do blog em questão, já o tinha realmente lido, mas as considerações que daí me surgiram, teci-as a seu tempo. Vejo que lhe passaram ao lado, e good for you: mais do mesmo. Em nome, quanto mais não seja, da reciprocidade, mesmo com 99% de certeza que não lhe interessarão pevas, aqui ficam

sexta-feira, 18 de maio de 2007

Vira o disco and it's Village People all over again

É também um dado científico que parece ainda não ter entrado no senso comum, ou sequer científico, que a ciência e a técnica que os homens fazem se constrói, não aparece assim feitinha. E é o que se denota quando todo o mundo abocanha essa coisa do "homossexual", e tem na prática consciência do carácter problemático do que semelhante conceito social designa (quando se desce aos critérios definitórios, francamente ainda não sei bem quem é que sabe o que, ou quem, é homossexual), mas emprega a categoria para a sua magia e evidência estatística como se designasse uma realidade translúcida, rigorosa e inquestionável. Vem isto a propósito do debate sobre a exclusão de homossexuais, por entre outros critérios (de causalidade directa ou extrapolação "heurística"), para a doação de sangue, que me surgiu, na minha misantropia selectiva, pela prosa do Vasco Barreto (em modo de subliminar autoridade científica encimada pela pulga de Hooke) novamente (sorry, e garanto, parece que convirá esclarecer, não ser ad homo, perdão, ad hominem), mas a ciranda passa por aqui, acolá, acoli, e outros links nesses links, que eu estou cansado...
O que particularmente me encanita (porque do resto f. já se encarregou mais que cabalmente), é a pretensão de brandir argumentos científicos e técnicos, com o efeito colateral ou direccionado de exclusão automatista (acento no automatista) de quaisquer outras considerações "mundanas", quando, curiosamente, essa argumentália parece não se interrogar sobre o rigor e validade dos pressupostos e fundamentos em que assenta.
Pessoalmente, não posso deixar de achar irónico que se pretenda determinar com uma razoabilidade técnica a ponto de autoridade, sem consideração de qualquer ponto problemático, um determinante de exclusão de presumíveis indivíduos homossexuais da doação de sangue, a partir de dados estatísticos comparativos de prevalência da infecção por HIV entre essa presumível população e a população heterossexual, se levarmos em consideração que esses cálculos de proporções dependem de meras estimativas dos universos respectivos, mesmo alargando-se os patamares de significância estatística.
Dentro da ainda mais irónica ingenuidade conceptual de tomar a homossexualidade como categoria inequívoca (at face value?) de classificação dos indivíduos, acho ainda mais piada que se considere que, na ainda ausência de testes genético ou coisa que o valha para identificação de homossexuais (damn!) para os pôr finalmente devidamente etiquetados no lugar (enfim, com umas lantejoulas para se entreterem, somos humanistas, caramba), se considere que a exclusão pelo critério da homossexualidade, tendo que ser auto-declarada (não conheço outra maneira, a menos que os técnicos de selecção estejam orientados para a busca a maneirismos, que claro TODOS os homossexuais portarão, juntamente com o sangue contaminado) seja uma forma proficiente de minimizar a entrada no sistema de indivíduos com reais riscos de transmissão de doenças pela doação de sangue. A questão muito simples é, obviamente, e apesar dos problemas novamente das estimativas (I'm no better), que provavelmente boa parte das pessoas que têm comportamentos homossexuais, ou deixando-nos de parvoíces, comportamentos sexuais de risco (para o caso, keeping up with the argument, com indivíduos do mesmo sexo), nem se reconhecem identitariamente (muito menos publicamente) como homossexuais (e pela natureza clandestina dessa sua porção de prática sexual, muito provavelmente se encontrarão com maior facilidade em circunstâncias de risco), e no entanto, na "verdade" das suas consciências, não são abrangidos por semelhante critério, e facilmente não se auto-excluirão - duvidoso, e único, critério desta generalizante selecção, o que deixa como real questão, que fica na polémica por considerar, o problema da eficácia das próprias lógicas de base da inquirição na pré-selecção para a doação de sangue, a que a introdução da questão da homossexualidade nada adianta.
O que ainda é mais irónico (it never ends), é que tais circunstâncias de prática sexual clandestina são favorecidas precisamente por essa coisa que nunca está em jogo nestas discussões tão elevadas, que é a discriminação (e não estou a pôr isto em termos de "direitos", atenção), contida no próprio uso da categoria homossexual. E é nas pequenas coisas que se vê o quanto a categoria, pretendida ser empregue como descritor tecnicamente a-problemático do real, não é usada de forma neutra: por exemplo, colocando-se a razoabilidade técnica de a presumível população homossexual ser excluída da doação de sangue se tiver, de forma estatisticamente significativa (let's pretend), maior prevalência de infecção com HIV, mas não se colocando sequer a hipótese inversa se a prevalência for maior na população (essa tem que se auto-declarar?) heterossexual.
Suspeito bem que mais ali atrás já se poderá estar a dizer que "o gajo (eu) está a ser capcioso", e que basta substituir, como alguns contendores já fazem, "homossexualidade" por "homens que fazem sexo com homens" (no caso dos homossexuais masculinos, claro, acho que as lésbicas ainda não estarão assim tão à frente), nos critérios de exclusão, e a questão resolve-se. Como não me apetece entrar em psicanálises da profundidade do self-denial ("se faço sexo com homens? claro que não!, sou eu que mando as trancadas às segundas no Parque Eduardo VII, não apanho!"), ou da fundamental distância entre a pragmática humana e a abstracção racionalista, a falácia continua a ser razoavelmente igual: o comportamento homossexual ser epitomizado como comportamento de risco. Se é preciso lembrar a tragédia, foram erros conceptuais da mesma estirpe, como a identificação de grupos de risco (e não comportamentos e situações sociais de risco), no início da epidemia, que favoreceram a situação presente de acréscimo de incidência da transmissão do HIV em populações que, não sendo identificadas como grupos de risco, continuaram tranquilamente a desenvolver os ditos, os propriamente da Bayer, efectivos comportamentos de risco.
Até se perceber que, conceptualmente, não é a "homossexualidade" que tem que ser chamada à partida para esta discussão, as investidas travestidas (et tu Brutus?) de tecnicistas a fomentar o debate nesses termos parecem ser tecnicamente improcedentes ou contraproducentes (apesar de toda a gente ter apenas e tão só a saúde pública no credo) e/ou enfermar de certa ingenuidade científica. Para esses casos, será talvez de considerar que, particularmente nessa chata turbulência dos fenómenos sociais, e particularmente quando se brinca às engenharias sociais, a fixação na explicação mais "evidente" (como tal, menos questionada), mais prêt-à-porter, mais simples, a la Occam's Razor, por vezes arrisca redundar apenas em simplismo. Para os casos em que se lêem coisinhas, só com aval científico e pura neutralidade enunciativa, como «a fonte fundamental de “democratização” do HIV é/foi o inter-cruzamento entre os diferentes grupos de risco originais e a restante população», oh tão inocente enunciação do mito da origem da epidemia a mascarar o facto de a democratização (relativa, calma lá) do HIV ser largamente uma inevitabilidade biológica e antropológica (excepto num mundo de assepsia sanitária e moral que nem se percebe como ainda não foi parido), percebe-se que às vezes já nem é ingenuidade, não é?...

(vá lá que desta feita não falei em Foucault - doh!)

(este testamento foi salvo da obliteração, no próprio dia em que se me apresenta a existência de semelhante feature, pelo autosave do Blogger. Pela autoridade do destino assim revelada, quaisquer contestações fiquem-se pela evidência: this post was meant to be)

sábado, 12 de maio de 2007

"Will you marry me now?"

«Ao que (não) nos consta, foi pouco trompeteado este concerto, e falta-nos perceber porquê. Será todos os dias que dois criadores de jazz da envergadura de Martial Solal e Dave Douglas, numa reunião de gigantes de dois continentes e duas gerações, partilham a intimidade desafiadora de um concerto com os seus piano e trompete, invulgar união de facto, como únicos protagonistas? Convirá talvez dar mínimo registo que não, não será todos os dias.
Se o jazz tende a requisitar mais vezes o emprego da dispensa de palavras para dele falar, não restará muito a grafar desta ocasião. Aos primeiros sons, cuida-se que bastaria sinceramente a estrita materialidade do tão preciso e maleável manusear dos instrumentos por tais mãos para esgotar mais considerações sobre a sua matéria expressiva.
É curioso, no entanto, verificar como as divisórias oceânicas e etárias se esborratam na vivência quintessencialmente presentificada desta música. Com uma primeira parte assente nas composições originais do disco de 2005 («Rue de Seine») que assinaram em conjunto, não deixa de provocar um sorriso que seja o decano Solal a mais erigir a irreverência digital no instrumento, e que a exploração mais denotadamente melódica e lírica se quede na coutada das composições de Douglas (a voar mais alto no seu «Blues to Steve Lacy»), apesar de o mesmo se encontrar notoriamente em noite de exploração tímbrica, por todos os orifícios do trompete. Essa, aliás, uma nota fulcral para a compreensão do sucesso deste encontro matrimonial (como Douglas de alguma forma propôs – faltando só pôr-se de joelhos, certamente por pudor): o carácter profundamente lúdico que instala um quase permanente espaço de jogo, por vezes literalmente humorístico, na fulcral interacção instrumental, para lá da fixidez das balizas improvisativas.
Para aquela transgressão (inerente à norma jazzística) da expressão fixa, cuidamos igualmente essencial a matéria de que se faz a veterania heterodoxa de Solal. Particularmente heterodoxa, porque alimentando a sua subversão de bilros num persistente desafio à (efeitos da história) ortodoxia do que se foi fazendo jazz. Operando num incansável jogo de contrastes e tensões, o facto é que a mnemótica, hoje tradicional, do jazz, se vai emergindo aqui numa figura rítmica, e acolá numa dobradinha harmónica, vai sendo no mesmo passo desconstruída na sucessão de pausas e repentes abruptos, suspensões e arroubos controladíssimos, que operam muito na linguística arrevesada e angular de Solal, como que tentando extremar, sublinhando como que entre um e outro lado do espelho, o valor expressivo de cada figura musical. A sua originalidade vai pois desenhando um edifício esquisito (etimologicamente), em que a diversidade de materiais se sobrepõe, como quem juntasse tijolo e muralha medieval, para produzir uma unidade híbrida e singular (mau grado o desconchavo da metáfora), mesmo que podendo ter que digladiar-se mais explicitamente com o risco de automatismos. O mesmo, em larga medida, exemplificou, já no espaço do concerto dedicado aos standards, no seu ataque de cavalaria à, já de si nada mansa, «Caravan» de Ellington, arrastada e resgatada das águas pelos tempos e figuras peculiares da arte profundamente dinâmica de Solal.
Fora tal arranque, contudo, terão sido as explorações dos standards que, apesar de tudo, menos nos entusiasmaram na (ainda que muito) relativa domesticação do espaço para a verve subversiva (apesar do reboliço gozão de um medley final) que mesmo o pendor do momento mais lírico de Douglas não coarctou, antes, novamente, valorizou em contraste, e que o mesmo não deixou, por certo, de igualmente protagonizar, ainda que suspeitemos, sob o signo de certa modesta reverência.
Dizia-se que o jazz pede poucas palavras, e que este concerto as concitou por tão pouco alarde parecer ter suscitado. Termine-se pois com um pouco (estruturalmente) menos que a evidência: um singelo privilégio, amiguinhos, foi o que foi.»

o título ficou a vegetar no sofá

Vegetando em frente ao ecrã benzodiazepina-visual, deparo-me com publicidade da TVCabo aos seus engodos pagos em suplemento, para o caso, o "Canal Disney", e deleito-me com os requintes retóricos da publicidade.
Toda a cascata dos inúmeros atrativos do canal se verte na sedução paternalista do "tu". "Tu não sabes o que estás a perder", "vais ter horas e horas de diversão inane e moralista" (bela combinação), "vais conseguir fazer regredir a idade mental dos teus pais à civilização oral ao forçá-los a ver episódios em loop do Ursinho Pooh até, quando tiveres 14 anos, estarem no ponto de acreditar que o cheiro a tabaco no teu casaco é de um repulsivo fumador - fazer esgar de nojo - ter bafejado para cima de ti no elevador", ou algo dentro destes parâmetros... Até que, sharp as a knife, a última frase faz o câmbio para o "você" que paga a conta, e profere: «Adira já».
Assim de repente, talvez não fosse mau exemplo do persistente anacronismo do direito face à mudança social, face a estes infindos e maquiavélicos apelos ao esforço das criancinhas salivantes para massacrarem as figuras paternais a cederem ao acréscimo de despesas mensais, ainda não se terem alargado os termos de definição jurídica da exploração do trabalho infantil.

sexta-feira, 4 de maio de 2007

Requiem for the West

« Aos Henry Cow se deve muito, muitíssimo, na subterrânea persistência de algumas luminárias em conceber a música popular como campo de experimentação feroz, ao lançar algumas das sementes que permitiram a subsistência da criação de relevâncias estéticas inauditas, bandeira dessa fugidia coisa, à época a devir quase exclusivamente caricatura grotesca de si mesma, que alguns chamaram progressivo. O mítico concerto Rock In Opposition (RIO) que organizaram, do qual participaram a maior parte dos nomes que carregariam a bandeira de exigência musical (des)comprometida para a robótica sonora dos anos 80 (que nem só de pós-punk vive um homem, para o caso), é basicamente o momento fundacional da pertinência estética de ainda se falar em renovação da criatividade no que seja esse elusivo movimento.
Contudo, mais que cunhar essa marca RIO (por mais internamente complexa que seja o que acolhe, e é, o que a torna quase “meramente” simbólica dessa atitude de exigência e desafio), cujo fechamento estético, aliás, o seu ideólogo (pelo lado politizado) Chris Cutler sempre devidamente rejeitou (perigo a que alguns se não esquivaram), devemos aos Henry Cow primeiramente o exemplo e a concretitude da sua música, de uma obstinação na demanda estética inspiradora, de rara.
O percurso tortuoso dos Henry Cow sempre se pautou por uma busca irredutível de formas de exprimir liberdade estética sem compromissos facilitistas a qualquer programa pré-estabelecido. Daí, o tortuoso do percurso - principalmente após o tom ainda jovial do desafio, quando os escolhos não eram evidentes, no iniciático e já seminal “Leg end”(1973). Fazendo apelo ao jazz, à música contemporânea, à dissolução da canção na inspiração a traço grosso da dupla Brecht/Weill nos álbuns com os Slapp Happy, à produção de frescos tenebrosos sobre a decadência da história política do Ocidente, os Henry Cow formaram no seu tempo de existência um dos combos mais visceral e constitutivamente desafiadores, como só na música popular o poderiam ser (no seu lado de politização), das barreiras musicais que arregimentam os corpos a partir dos ouvidos. E após os seus anos de duelo incessante com as formas musicais, erguem, para memória dos tempos futuros que não mais protagonizariam senão como espectros ou outros corpos criadores, porventura a sua obra mais acabada e ostensiva, e com a mesma indomável e acirrada ousadia que sempre os guiou. Narrativa musical da decadência histórica de um entendimento dessa coisa chamada modernidade, “Western Culture” (1978) encena uma peça de câmara do lento descambar que os totalitarismos vários habitando esse pináculo prometido de progresso vão nos seus dilacerantes espasmos arrastando (conferir a arte de capa, de Cutler, e os títulos das composições). Para desalmado espanto, fugindo a qualquer mecanismo programático para bombear o negrume, o disco vai desenhando uma viagem através dos escombros dos aquéns terrestres com desesperante clareza imagética, carregando ao pormenor no bojo das notas, paisagens, utopias e desenganos, emoções e arroubos, tingidos cada vez mais pelas nuvens de desalento desvalido que inscrevemos na história colectiva e juncam a jangada que se prometera conduzir por luminoso progresso. É uma obra que ainda soa a requiem civilizacional sufocado na poeira e sombras de construtos derribados de pós-guerra (prelúdio e fuga para “Germania Anno Zero” de Rossellini?), como já soavam os encontros dos Henry Cow com os Slapp Happy (estes com a distracção macerada de cabaret), mas já não ancorado na sua mnemótica sonora distintiva, antes no sentido de falência moral colectiva, sem nervo sequer para a incredulidade. Nesse cenário imagético da história mais recente que se gostaria (no reacender cíclico dos seus fantasmas), discorrem hinos nado-mortos, elegias inacabadas, recortes arruinados de abrigos humanos, lamentos e iras calados em compassos catatónicos, descabeladas marchas para nenhures só para manter as incertas promessas genésicas do movimento e inquietação. Numa arritmia decadente (em certo sentido, como se dissera de Schöenberg), a guitarra de Frith derrama ácido (de baterias), a bateria de Cutler já letárgica ainda martela e estilhaça em espasmos irregulares de maquinaria falida os restos de uma civilização (nada de fascínio industrial aqui), os sopros e teclados de Lindsay Cooper e Tim Hodgkinson dispensam réstias de desencanto (memória, dissipada, dos encantos) e estrebucham o estertor de povos iludidos por estandartes futuristas e promessas rio acima, que se descobrem fora d’água.

Painel de desencanto tão feroz como ponderado (dialéctica de lucidez), urdido numa imbricação microscópica das fortes vontades criativas de cada protagonista instrumental (apesar de ser obra composta apenas por Hodgkinson e Cooper, cada um, cada lado do vinil original), este é um documento basilar e único de ponderação sobre os destinos da história, manifesto de exigência política e estética a elevar a música popular a alturas de interpelação cidadã dificilmente igualáveis, sem valência maniqueísta na forma. Por esse gesto, de admirável conseguimento e visão, independentemente de afinidades ideológicas, mais que um monumento, “Western Culture” pertence ao cânone exíguo das obras exemplares.»