Cartão Jovem
Conquanto nunca tendo particularmente beneficiado, quando foi tempo, dos descontos institucionais consignados a essa duvidosa categoria de "jovem", sendo a minha política orçamental de aquisição de livros e cds orientada pelo gosto acantonado à condicionante "o que é que está em promoção?", perturba-me profundamente ter de pagar full price por qualquer consumo cultural ao mirar as tabelas de desconto ao lado no preçário.
Quanto mais não seja (para dissipar a muito sensatamente presumível inveja e ressentimento de ausência de uma inserção privilegiada nas ofertas sociais), parece-me óbvio que o intervalo etário dos beneficiários do Cartão Jovem devia ter actualizadamente como limite superior a idade em que estes quarentões deixarem de fazer música.
A burocracia foi feita para não entender nada...
«Como se tivesse sido ontem, em 1994 novos e duradouros tempos se configuraram no projecto musical dos Sonic Youth. A sua marca sempre fôra clara e visível, e na senda de Glenn Branca outorgaram ao rock um inquisitividade estrutural imediatamente reconhecível, que a expressão exploração sónica espelha na perfeição, fazendo jus à nomenclatura dessa juventude.
O questionar e a expansão dos limites da canção (sim, ainda canção) e dos pilares sonoros do rock, constituíram a sua empresa como pináculo singular, que conseguiram manter frutuosa por largos anos, apesar de as técnicas básicas parecerem estar já delineadas quase desde o início: não se enganem os que se ficam pelos motes do imediato, pois que a busca sónica se aplicou em exercícios, se reconhecíveis em certa metodologia ou estilo, sempre diversos na configuração das estruturas a questionar por dentro – “Sister” já não era “Evol”, como não foram repetições de nada “Daydream Nation”, “Goo” ou “Dirty” (quem ouve esses álbuns como se do mesmo se tratasse, tem o fundamental da questão a monte). Se oscilaram entre a conformação às possibilidades estritas inscritas na estrutura de uma canção, ou se a desmantelaram para dar outras vozes às peças de Lego que as constituíam, os resultados também sempre foram impressivos na sua própria materialização, e não na reiteração de um paradigma (nessa fruição também residindo a permanência da relevância estética).
Mas aqui, a um pouco menos juventude, decide tornar-se adequadamente um pouco menos sónica, a indignar certas gentes somente carentes de assalto à guitarra armada. Na verdade, aquela juventude tornava-se era sónica noutras vias. A experimentação descarna-se, e torna a canção esqueleto. Para quem suspeitasse que por baixo da distorção, reverberação ão ão, tremolos duais de guitarras em contraponto melódico a avaliarem da possível sua fecundação, não havia sobeja matéria estrutural que organizasse a expressão, desenganem-se. Despidas, desornamentadas, cada gesto neste disco se fez cru e preciso no registo do que faz uma canção inconformada (e a inicial “Winner’s Blues”, linha melódica singular de apenas guitarra acústica acompanhada, “mas isto é um disco dos Sonic Youth?!” perguntam, é todo um programa e um teaser no mesmo gesto cultural).
O que antes era ataque armado e corpo esfacelado no pavimento agreste de distorção, virou ameaça velada na elipse da perenidade do atentatório ruído. Nesse registo, “Bull in the Heather” e “Skink” entram directamente para os anais. “Doctor’s Orders”, bela e mais simples canção, deixa igualmente que o espaço da desenvoltura do formato se dissemine num low-fi de rumores inquietantes no breu que parece confirmar a nova compleição da agregação sónica. Quando a tempestade eléctrica desce, perfura a noite transmutada em espaço silente de premonições e não mais de escancarada revolução, como em “Tokyo Eye”. Nem de propósito, o grosso do disco assemelha-se a um desfilar de haikus sonoros, que de mais esparsa matéria conferem maior singularidade ao seu enunciado.
E porque de beleza mais esconsa (para os sónicos acólitos) fala agora esta moçada, é nos recantos que se vai descobrindo o espigão que nos alerta para a sua continuada sabedoria. No final da primeira volta de “Bone”, os espamos de distorção a deixarem quase oculto o facto de a canção estar a terminar (como terminará, sem enganos, na segunda volta) em surpreendente, repousado da provação, acorde maior. Ou na recuperação da cadência imparável de “In the mind of the bourgeouis reader”, a finta rítmica a trocar-nos as voltas.
Mas mais que esses pormenores, mais fundo nas raízes, mais depurado na audição, a sageza da gestão das densidades sonoras ressalta para quem julgasse que para fazer matéria do que lhes fez carreira bastava ligar o amplificador. Este pessoal é pleno senhor dos seus crescendos. Mas é nessa maior depuração (que consegue permanecer sujíssima, não obstante) que as guitarras passam a desafiar-se no novo laconismo da certeira conjugação, na interrogação do inesperado, que o minimalismo disfarçado sugere (nos insidiosos meios tons das escalas e em riffs, por uma vez, subsónicos). O silêncio ganha espaço, o espaço ganha a amplitude, já não da reverberação que o atulha e lhe expande os limites perceptíveis, mas do eco que se não vislumbra senão no retorno do ignoto confinamento do formato: experimental, pois claro. No Star(s). Jet Set e Trash? É preciso soletrar a(s) ironia(s)?
Os Sonic Youth equilibram-se na estreiteza de um desenho a lápis fino e cerrado, para demonstrar a justeza de um percurso mais além dos mapas prescritos, retendo-se, no entanto, na geografia do lugar que pôde ditar o sentido da dilatação do som das estruturas e da apreensão cerebral. Intacta, e mais secreta, se mantém pois a inquietação. Este álbum representava supostamente a nova vida pacificada dos sónicos de meia-idade, pausados em experimentalismo menos exigente nas carnes e na tensão arterial. E de facto, a terminar com canção em solarengos acordes maiores (“mas isto é um disco dos Sonic Youth?!” escandalizam-se), de “Sweet Shine” despudorado no título... ah a doçura da meia-idade. E no entanto, no entanto, essa nova vida só confirma que a sageza dos tempos sempre esteve com eles.
O futuro continuava em frente. A geração era questão de pormenor.
Admiráveis putos.»
4 comentários:
uma das vantagens do 'Experimental Jet Set, Trash and No Star' era podermos alterar livremente as capas do disco
Ora, pois é, bem visto. Realmente já só posso clamar um mundo de capas alternativas para os outros.:eu cresci demasiado obtuso para jogar com um que não me seja dado ready-made.
Mas já agora, com benefício avisado, acho que vou verificar which one suits me better... Talvez ainda haja esperança...
... e uma das capas foi feita por um português, o João Paulo Feliciano dos Tina & The Top Ten.
aprendendo e aprendendo... Isto afinal é produtivo!
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