"Will you marry me now?"
«Ao que (não) nos consta, foi pouco trompeteado este concerto, e falta-nos perceber porquê. Será todos os dias que dois criadores de jazz da envergadura de Martial Solal e Dave Douglas, numa reunião de gigantes de dois continentes e duas gerações, partilham a intimidade desafiadora de um concerto com os seus piano e trompete, invulgar união de facto, como únicos protagonistas? Convirá talvez dar mínimo registo que não, não será todos os dias.
Se o jazz tende a requisitar mais vezes o emprego da dispensa de palavras para dele falar, não restará muito a grafar desta ocasião. Aos primeiros sons, cuida-se que bastaria sinceramente a estrita materialidade do tão preciso e maleável manusear dos instrumentos por tais mãos para esgotar mais considerações sobre a sua matéria expressiva.
É curioso, no entanto, verificar como as divisórias oceânicas e etárias se esborratam na vivência quintessencialmente presentificada desta música. Com uma primeira parte assente nas composições originais do disco de 2005 («Rue de Seine») que assinaram em conjunto, não deixa de provocar um sorriso que seja o decano Solal a mais erigir a irreverência digital no instrumento, e que a exploração mais denotadamente melódica e lírica se quede na coutada das composições de Douglas (a voar mais alto no seu «Blues to Steve Lacy»), apesar de o mesmo se encontrar notoriamente em noite de exploração tímbrica, por todos os orifícios do trompete. Essa, aliás, uma nota fulcral para a compreensão do sucesso deste encontro matrimonial (como Douglas de alguma forma propôs – faltando só pôr-se de joelhos, certamente por pudor): o carácter profundamente lúdico que instala um quase permanente espaço de jogo, por vezes literalmente humorístico, na fulcral interacção instrumental, para lá da fixidez das balizas improvisativas.
Para aquela transgressão (inerente à norma jazzística) da expressão fixa, cuidamos igualmente essencial a matéria de que se faz a veterania heterodoxa de Solal. Particularmente heterodoxa, porque alimentando a sua subversão de bilros num persistente desafio à (efeitos da história) ortodoxia do que se foi fazendo jazz. Operando num incansável jogo de contrastes e tensões, o facto é que a mnemótica, hoje tradicional, do jazz, se vai emergindo aqui numa figura rítmica, e acolá numa dobradinha harmónica, vai sendo no mesmo passo desconstruída na sucessão de pausas e repentes abruptos, suspensões e arroubos controladíssimos, que operam muito na linguística arrevesada e angular de Solal, como que tentando extremar, sublinhando como que entre um e outro lado do espelho, o valor expressivo de cada figura musical. A sua originalidade vai pois desenhando um edifício esquisito (etimologicamente), em que a diversidade de materiais se sobrepõe, como quem juntasse tijolo e muralha medieval, para produzir uma unidade híbrida e singular (mau grado o desconchavo da metáfora), mesmo que podendo ter que digladiar-se mais explicitamente com o risco de automatismos. O mesmo, em larga medida, exemplificou, já no espaço do concerto dedicado aos standards, no seu ataque de cavalaria à, já de si nada mansa, «Caravan» de Ellington, arrastada e resgatada das águas pelos tempos e figuras peculiares da arte profundamente dinâmica de Solal.
Fora tal arranque, contudo, terão sido as explorações dos standards que, apesar de tudo, menos nos entusiasmaram na (ainda que muito) relativa domesticação do espaço para a verve subversiva (apesar do reboliço gozão de um medley final) que mesmo o pendor do momento mais lírico de Douglas não coarctou, antes, novamente, valorizou em contraste, e que o mesmo não deixou, por certo, de igualmente protagonizar, ainda que suspeitemos, sob o signo de certa modesta reverência.
Dizia-se que o jazz pede poucas palavras, e que este concerto as concitou por tão pouco alarde parecer ter suscitado. Termine-se pois com um pouco (estruturalmente) menos que a evidência: um singelo privilégio, amiguinhos, foi o que foi.»
1 comentário:
Ahh então era assim eheheh
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