quinta-feira, 12 de julho de 2007

Dancing about architecture

« “Writing about music is like dancing about architecture”. O aforismo é conhecido e disputado. Mas com a graça das proposições que incorporam formalmente as sementes do seu plural contraditório (tornando arena para obtusos o arremessá-las como argumentos fechados e conclusivos em disputa), o escrever música como quem dança sobre arquitectura, como é o caso desta obra encomendada pela Trienal de Arquitectura a Mário Laginha, torna o fechamento em absurdo do discurso sobre a música uma abertura sobre o discurso da música sobre si mesma.
Convém reconhecer que, a não ser meramente fruto de feliz acaso, a encomenda revela olho. Porque o, parece-nos que nunca devidamente louvado, Mário Laginha é manifestamente dos pianistas de jazz que mais tem expresso um saber peculiar de jogar com as dimensões e o peso estrutural da música, particularmente nas suas dinâmicas de saturação do espaço e a sua modulação harmónica. Dada a ductilidade subsumida do seu fraseado, não resulta impositiva, mas é singularmente manifesta a composição gráfica das suas estruturas harmónicas, oblíquas e esquinadas nos padrões rítmicos, mas estranhamente suavizadas pelos contornos matizados das linhas, algo sumamente expresso nesse ainda saudoso, logo, clássico, seu disco de estreia a solo «Hoje». E se é facto que a música precisa pouco de metáforas a enxameá-la, circunscrevê-la e torná-la de fácil digestão ao ouvido desprevenido, e não se precisasse de insistir na justificação explícita do raciocínio arquitectónico na erecção desta música, insistir um pouco mais na matéria torna-se, neste caso, curioso. É que essa fortíssima dimensão espacial, particularmente no seu trabalho sobre as massas harmónicas, vai-se diluindo pouco a pouco ao longo deste disco, para dar mais a ver os alicerces dos seus referentes. Ainda que não subjugado a uma submissão programática, é algo irónico que a sobrepujança da referenciação arquitectónica, manifesta nos títulos das composições, o tenha conduzido mais a uma rarefacção das figuras musicais que à sua expansão. Sendo justos, contudo, isso também corresponde a um alargamento da paleta das suas convocações musicais, ao arrepio da forte idiossincrasia já lhe havia criado uma personalidade estilística. «Plano» abre como uma folha de jazz impressionista perdida dos Prelúdios de Debussy, e «Baixo-Contínuo», sem precisar da denúncia do título, põe na malha diabólica de contrabaixo de Bernardo Moreira um evidente referente barroco.
Por essa paleta referencial perpassa igualmente uma maior aproximação à dimensão de obra composta, tornando mais ambiguamente esparsas as balizas jazzísticas do empreendimento, o que a restrição e arcaboiço estrutural da secção rítmica dos veteranos Bernardo Moreira e Alexandre Frazão bem ilustra. Uma palavra nos pedem os acabamentos da bateria de Frazão, particularmente, justifique-se a janela para outro canteiro, pelo que lhe ouvimos (e vimos, densificando a dimensão gráfica da experiência musical) no concerto de apresentação do disco. A pluralidade sensitiva e tímbrica da sua intervenção de pormenor, peculiarmente nos momentos mais contidos de lirismo fusco (não a nossa senda favorita do seu labor), arrisca por vezes uma riqueza de afago instrumental com uma sensualidade quase temerária.
Obviamente, se as metáforas podem ser restritivas na apreensão menos mediada da pura audição, por vezes também cumprem o propósito de lhe dar outras asas. O que implica que a atenção ao referencial comparativo das noções espaciais na estruturação deste disco resulta perfeitamente opcional para degustação selectiva. Mas para quem quisesse insistir na metáfora do absurdo, a justeza imagética na tradução espacial das suas composições (bastando seguir os títulos, como «Paredes que nos Rodeiam», «Escada», «Vazio Urbano») tornaria este disco um patamar eloquente do cruzamento discursivo que perpassa a liberdade elusiva das estruturas musicais. Porque, até ver, também que raio é dançar senão jogar o movimento sobre constrangimentos arquitectónicos, do espaço e do corpo? Mas isso aproximá-lo-ia de um disco de tese, parcialmente condicionado a testar uma hipótese. E se essa parece exemplarmente comprovada, queda ajuízar se por aí se justifica esteticamente o empreendimento. E aí se erige um espaço que fica finalmente a cargo da emancipação imaginativa de qualquer um trespassar na sua fruição, ou falhar na clausura da materialidade arquitectónica da pauta. De qualquer forma, provavelmente a resposta definitiva (outra ficção arquitectada) ficará pendente dos espaços em que a mutação idiomática de Laginha (mais significativa que o que lhe tem sido apontado) se continue a instalar, mais exactamente, da linha de fuga (para seguir no idioma) em que a idiossincrasia lhes transcende o motif da armadura.
Da nossa parte, suspensos nesta ponte do arquitecto Laginha, à espera do que aguarda da outra margem, só nos cabe cogitar que, se tanto música como arquitectura tentam iludir no seu plano a fixidez denunciada das traves-mestras, tornar consubstancial a música à metáfora (e saber se primeiro veio a metáfora ou a música é discussão digna dos ovíparos galináceos), e não somente explicitá-las como dimensões que se implicam, pode arriscar, para a sua plenitude desagrilhoada, exigir do auditor a disciplina de um Method actor, a quem se diz ao fazer girar o disco: “agora ide para aquele canto e não penseis numa parede”. A sério, ide. Depois direis de vossa justiça. »