segunda-feira, 5 de dezembro de 2005

Handfull of genius

«A primeira obra dos supremos progressivos Gentle Giant, dos multitalentosos irmãos Schulman e companhia, estreados no vinil em 1970, tende a ser relativamente desconsiderada no seu património. E de facto, para quem produziu incessantemente em menos de uma década títulos indisputados como do mais belo e complexo que neste movimento estético se inscreveu, é difícil não olhar este como um título menor na sequência que os levou até “Interview” em 1976. Contudo, se os álbuns devem ser vistos numa série de perspectivas contextualizadoras, também devem ser vistos como entidades em si. E, como tal, este contém coisas francamente insubstituíveis para um ouvido dedicado, e lança já pistas bem seguras para o que viria a ser o modus operandi deste combo imbatível. A inicial “Giant” é basicamente um exercício de estilo rítmico, a ensaiar possibilidades, mas de destreza agradável na secção inicial. O mesmo poderá ser dito de “Alucard” (não pensem em dicionário, pensem em anagrama), a ensaiar experimentalismos sonoros distorcidos e fantasmáticos que não ficariam como marca sonora dos senhores, pelo que é uma curiosidade revisitar. E depois, bem, depois há a beleza dos melodistas que estes cavalheiros também eram, como se não bastasse a sua supremacia também instrumental, vocal e de composição. Francamente, não se vê que os outros agrupamentos da época pudessem ter outra reacção às suas performances senão “estes gajos até metem nojo!” (talvez seja a pista que faltava para descodificar o seu, ó! de bradar aos céus, insucesso). Ouçam as melodias que iluminam a balada “Funny Ways”, que no desbunde síncopado do seu intermezzo anuncia as mini-sinfonias que fariam as maravilhas sonoras de 4 minutos de álbuns como “Octopus” (o que, considerando a necessidade da maioria das bandas de um lado inteiro de vinil para atingir uma amostra desta complexidade, acrescenta crédito à hipótese “estes gajos metem nojo”); ou a mais que deliciosa canção para quarteto de cordas (não leves a mal, Costello, alguém se lembrou disso primeiro...) “Isn’t it quiet and cold”, com um solo prodigioso no vibrafone (está bem, cordas e mais qualquer coisinha...), que seria presença regular no arsenal destes multi-instrumentistas. Ou ainda o lírico início de “Nothing at all” que, se se estende por nove minutos, é por lá para o meio dar a mão iniciática, mas já irreverente, a um decalque classicista (ninguém é perfeito...), que cedo é devidamente abardinado para descambar num delírio free de percussionista sob speeds e um técnico de mistura drunfado. E se não sabiam da relação entre trovadores medievais e bluesmen, ouçam a progressão central da “Why Not?” (indeed...), que num minuto liga temporalmente distâncias-luz de uns quantos séculos (coisa pouca), e numa progressão brilhante retoma, sem aquelas quebras progressivas, o completely different tema inicial, para culminar num solo bluesy de guitarra bem esgalhado para redimir as aberrantes, infindáveis e insignificantes masturbações sonoras de guitarristas que desconhecem que não é para isso que o braço da guitarra serve (equívoco de consequências graves para audiências, e ainda mais para o instrumentista). É que o cavalheiro com o instrumento nas mãos era um tal Gary Green, que não ficará nas enciclopédias, mas percebia da poda, sabendo que um solo tem que dizer qualquer coisa mais que “olha, agora sem mãos” – não, não é uma piada ao Hendrix, que tocava melhor com os dentes que a maioria com os 10 dedos). E porque não foi só Zappa que se lembrou de perguntar “does humour belong in music?”, uma versão jocosa em orgão e guitarra marados do hino inglês (é verdade, o Hendrix outra vez, mas juramos que não foi planeado...) é um remate airoso a um álbum que, por si só, é audição mais que recompensadora, e não só premissa do que estava por vir, que, por sinal, atingiria logo um pico no seguinte álbum, e obra-prima, “Acquiring the Taste”, onde revisitam alguns procedimentos estilísticos aqui inaugurados, como, por exemplo, a improvisação de percussões em “The Moon is Down”, ou a angulosa canção para cordas “Black Cat” (que nem são os zénites do álbum, para que não julguem que não foi uma superlativa renovação da linguagem musical, mas só mais do mesmo). Começava assim um percurso incomparável e deslumbrante de exploração das possibilidades específicas que uma tematização contém, movimento de desenvolvimento musical que estes senhores impulsionariam a inéditos paroxismos formais, numa lógica cada vez mais refinada, internalista e densificada (no espaço e no tempo), em certos momentos a sugerir paralelos sonoros com uma configuração pictórica a la M. C. Escher. Ah, e já agora, porque não foi só Zappa que se lembrou de perguntar “does humour belong in music?”, atenção ao pequeno teaser de sintetizador que, qual toupeira impertinente, vai escarafunchando pelo disco: só a sua aparição gozona antes da elegância de “Isn’t it quiet and cold?” valeria o preço do álbum. Nem se percebe como é que ainda ninguém se lembrou de o pôr como toque de telemóvel...: bolas, os rapazes eram mesmo visionários... Até mete nojo.»


2 comentários:

. disse...

Foi apanhado

Anónimo disse...

A presa era fácil, não custava a caçar (e convenhamos, também não tinha muito interesse...).
Mas sim, apanhado...
(agora, quanto ao mais: schhhh; a cada um as caçadas em que se empregue...)