sexta-feira, 11 de novembro de 2005

Ahh, ganda mulher!! (no pun intended)

«O facto de raça ser um conceito nascido de uma selecção arbitrária de traços humanos para justificar assimetrias que historicamente serviram propósitos de dominação que aí também se ancoraram para se legitimar, é um dado histórico fundamental, mas não suficiente para desvanecer a persistência dos efeitos que a organização da vida social e da percepção em redor do conceito suscitam. Isto porque um conceito social não precisa de formas de validação científicas para operar: basta-lhe que haja gente a atribuir-lhe crença de validade, e pode perdurar para sempre, por muito que se clame que essa validade é nula. Daí que as estratégias de gente e grupos para contestar esses efeitos possam ser várias, contraditórias ou até conflituantes. Uma delas é assumir que as diferenças que esses conceitos erguem estão enraízadas em terra de séculos, separaram mundos sociais, e para ultrapassar as dominações que sustentam tais divisórias há que trabalhar com essa diferença demasiado sedimentada para poder ser ignorada e partir do zero. Que é como quem diria: se nos fizeram outros, pois sejamo-lo com orgulho. Se é a melhor estratégia, é matéria de discussão, que aqui não cabe. Mas qualquer estratégia pode ser mais valiosa se sempre for aliada a algum bom senso, que sempre faltou aos mais elaborados, rígidos, e geralmente lamentáveis, programas de tranformação social. E quando tal estratégia se corporiza, por exemplo, na beleza plácida mas decidida de um objecto artístico destes, algum crédito já arrebatou. Tal intróito serve os propósitos de uma recensão musical, porque é de tal programa estético-político que se poderia dizer que emana este belo disco de uma senhora de seu nome Virgínia Rodrigues. Como diria um saudoso amigo brasileiro, branco(?) de tez por acaso, e senhor de uma versão particularmente sagaz e benigna daquela estratégia, “nós, os negros” temos agora nesta senhora um novo estandarte de valorização estética de uma condição social que, por mais que se quisesse, a história (não o leitmotif da biologia) não deixa pura e simplesmente deitar para trás das costas: a negritude. Mais ainda, Virgínia Rodrigues tem o mérito de ser das poucas mulheres (outra assimetria biologizante) a quebrar com mérito próprio a dominação masculina dos mundos da música, a que a música brasileira não escapou. Mesmo no caso da louvada Elis, a condição de intérprete, que tolheu a maioria das vozes femininas, condiciona-as a escolhas de repertório e arranjos que exigem muitas vezes mais esforço que o humanamente compensatório para resgatar da desqualificação sonora o fio de uma interpretação vocal. E quanto mais não fosse, bastava um senhor chamado Chico de ascendência Buarque andar por essas águas para que os nossos afectos musicais rezem, sem que lhes fosse pedido, “nós, os homossexuais”... (não juramos conseguir cobrir todas as categorias de assimetria social até ao fim da recensão, mas faremos um esforço...) Contudo, a senhora do dia logo à primeira audição se imiscuiu nas nossas dedicações, a força de pura voz, e de umas ajudas de primeira água no bom gosto. A primeira audição, no entanto, nem foi neste disco, mas nas divagações brasileiras de António Chaínho no seu “Lisboa-Rio”, de agradável memória, do qual a belíssima faixa original com madame Rodrigues era provavelmente o farol. Ao pegarmos neste álbum de estreia, possibilitado pela “descoberta” de Caetano de que estava por aí, em cantos recolhido, este vozeirão, a já não tão frescota moçoila, mas muito viva, dá de si o que muitos não dão com toda a incauta e descomprometida juventude. O disco abre a cappella, e para quem o não soubesse, com voz desta é difícil falhar, de tal modo parece talhada no ébano de uma dedicação singular, avessa a rebaldarias sonoras. Voz que doravante é a definição de cava, que ecoa (intencionalmente) vozes de negritude transplantada e renascida mais vezes que as que humanamente se julgaria possível, o seu timbre é todo um programa, e contam-se pelos dedos das mãos os timbres que nisso se lhe equiparem. E é todo esse programa que o disco cumpre, ilustrado no Sol Negro do título, das divinas cordas que ecoam nas nossas gargantas, e na especial arte de capa, toda em tons de negro, branco e dourado. Contudo, a voz, por si, raramente se basta. E a conquista deste disco, se corre nesse regueiro, conta-se também pelo repertório e pelos arranjos. Todo o disco é um desfrute, garantido. Mas um punhado de faixas são inacreditáveis, em que aquela divina trindade vem ao de cima gloriosa. Se o repertório foi escolhido a dedo e se reclama das mais diversas expressões, lamentações e exaltações da negritude, não só brasileira, como chegando a catrapiscar um espiritual norte-americano, os arranjos vão pela árdua mas compensadora via do less is more: são escolhidos a dedos os instrumentos para cada faixa, e usados na mais estrita necessidade expressiva. Pura lição de inteligência e sensibilidade na arte do arranjo, na sua exiguidade a evocar a regra e esquadro as movimentações de corpos num ocaso colectivo, que no seu oblíquo espaço concentram mais luz, outras luzes, que iluminam mais que a razão soube por muito tempo, espaço e cabeças, reconhecer. E se falámos de programa, e se daqui se pode destilar uma perspectiva política e epistémica para a condição da negritude, o seu destilar é de uma vibração estética superior que não se elabora prosélita para lá do que as palavras de um sentimento e vivência inspiram. As consequências do discurso fiquem para semiólogos e cientistas sociais, que existem para algo. No nosso discurso aqui segmentado, só beleza, mágoa e celebração epidérmica, contida e comovente nos interessa destacar. Pela mão de Caetano, provavelmente, o disco acaba por agregar outras luminárias, interessantemente absolutamente dispensáveis neste contexto. Aliás, mal se dá por elas, o que foi outra escolha inteligente: é (não) ouvir Gilberto Gil e Djavan a fazer coro indistinto, que qualquer tamanco vocal faria, em “Terra Seca” (e só não pensamos que a sua participação é uma ironia escancarada, porque não queremos atribuir a ninguém tamanho descaramento ou malvadez). Aparentemente, o prato forte está a cabo de Celso Fonseca, que deu mais que se poderia esperar nos arranjos, e a direcção artística nas mãos de Caetano. Sem fazer a partilha de créditos, souberam certamente dar todo o protagonismo à voz que decidiram sabiamente aqui servir. E a rarefacção instrumental que identifica timbricamente cada faixa criou o espaço perfeito, não de acomodação, mas de verdadeiro complemento a tal voz. Mas genial, genial, são duas faixas. Se o resto prima pelo mesmo bom gosto e estratégia, a “Noite de Temporal” e o “Negrume da Noite” são os sóis negros por excelência deste disco. Ornadas de berimbau e percussões (escassíssimas), exclusivamente, são um portento expressivo, impressionantes como raras (por exemplo, duvidamos que algumas vezes as meras palmas das mãos tenham sido usadas de forma tão eficaz como no corte tímbrico que acentuam na segunda destas faixas – recurso que julgaríamos para sempre proscrito depois da sua prostituição na história da pior pop orelhuda, que também a há boa, claro...). A justeza dos passos tímbricos a pontuar e acompanhar a descrição de vidas feitas de augúrios tecidos no sal encarniçado abaixo da pele, de vidas a clamar o excelso da condição pela qual são desqualificadas (talvez o recurso último de emancipação discursiva), não cessam de surpreender a cada audição, plenas de teleporte mental para o auditor. Já de si belas canções, nestas versões valiam um disco cada uma. O resto é menor, mas não é “material menor”, com belas canções, justamente desenhadas, desde Caetano ou Carlinhos Brown a clássicos de Luís Bonfá e Ary Barroso (este em explícita e impressionante denúncia - a consciência social tem às vezes mais faces, tempos e espaços do que o presente recorda), só destoando um pouco o inglês atabalhoado do espiritual “I wanna be ready”. Principalmente, “Adeus batucada” ainda nos estimula em particular, é comoção à brasileira, na qual nem na hora da despedida se abranda o passo que ritma a cadência do coração, com fanfarra de sopros contida no ponto. O resto, vai cumprindo na linha o passo seguríssimo deste disco singular, em que às belas recuperações da voz negra, em vários espaços e colorações (que convenhamos, negro e branco nunca foram cor de gente, nem antes do Technicolor), se juntam até canções de uns brancos jeitosos, que também os houve, uns poucos, com juízo, alguns dizendo, cantando, “nós, os negros”.»

3 comentários:

eduardo b. disse...

Esta posta não tinha sido já colocada há uns tempos atrás?

Anónimo disse...

Bom post, Julinho! Bj

Anónimo disse...

Já tinha postado, já, ainda que só pelos segundos que demorou a retirá-lo. Que pontaria, com meia dúzia de leitores e ainda assim sou apanhado com a boca na botija. Não me soou bem na altura, no contexto. Mas como tenho issues com a revisibilidade extrema da postagem bloguísta achei que devia voltar a reinstaurá-lo. Ei-lo. E parece que deu frutos.