domingo, 25 de março de 2007

O direito do avesso

Não, agora menos a sério: anda meio mundo estupefacto com as "previsões" do resultado da votação mais palerma de sempre para o maior português de sempre, com Salazar na liderança. Francamente, o resultado da coisa ser-me-á perfeitamente indiferente, e não tenciono gastar uma linha com o facto consumado. É certo que a coisa resulta um indicador, por muito dúbio que seja (e é), das formas e motivos de mobilização social em Portugal, neste tipo de arenas pronunciativas, resguardadas de razoabilidade na sua esteira simbólica; agora, coisa muito diferente, e equívoca, é dar-lhe substância política directa, "suspendendo a descrença" na sua ficção representativa (basta ver a estrutura dos nossos padrões eleitorais).
Já quanto aos cabecilhas deste atentado à história e à ideia própria de democracia (em cheio, serviço público de televisão), a coroação salazarista seria, na verdade, o fim certeiro das suas estouvadas brincadeiras. Na sua incepção, este é o tipo de iniciativa que, na linha directa do concurso para a "Aldeia mais portuguesa de Portugal", fariam a propaganda salazarista de António Ferro corar de orgulho, com a sua epitomização e essencialização nacionalista, reduzindo toda a imensa complexidade e contradição da história dessa coisa, já de si contingente e inventada, que se chama um país, a uma só ideia simbólica absolutizada, que force um só sentido de identificação e pertença a semelhante entidade (com todos os potenciais de exclusão simbólica - só para começar - que tal implica). Nada mais adequado, pois, que a sagração da lógica ideológica que a ancora.
Do lado de quem se inscreveu neste mecanismo de perversão do espaço público, não é senão paradoxo e ironia eloquentes, ter uma agregação de portugueses a empregar o simulacro de um voto para provar que não têm juízo para (e dispensariam o direito de) o exercer.
Tudo somado, temos mais uma profecia que se cumpre a si mesma, com um epílogo surpreendente para a saga nacional-pessimista. Que tudo isto ocorra nos paços de uma democracia, é uma de tantas ilustrações de que há criações humanas que suplantam as limitações dos seus usuários. Mas já ia sendo tempo de estes lerem o modo de usar. Poderíamos começar humildemente por pensar que, se calhar, erravam as lamentações de que o país que temos é o que merecemos. Começam a avolumar-se suspeitas de que o país que temos consegue ser melhor que nós. Falta saber até quando nos conseguirá resistir, se não fizermos do espaço público mais e melhor que isto.

Nota: vozes indignaram-se com a ausência de Mário Soares na "final". Obviamente, Soares safou-se foi de boa. A ninguém de bem seria recomendável semelhante galardão.

sábado, 24 de março de 2007

Trasmontander

Não sei porque é que está tanta intelectualidade xôxa a arrancar cabelos com o concurso (diz-se bem) «Grandes Portugueses». Cá eu, desde que vi num cartaz de rua que o grande slogan é «Só há lugar para um», estou em pulgas para assistir domingo aos cadáveres exumados (por certo que, desta feita, para este mui nobre fim, a Ministra da Cultura não se há-de importar) a irem ao pêlo uns dos outros (com o fascínio acrescido de o pêlo crescer depois do esticanço, logo, mais material para a cat-fight). Parece-me, não obstante, que a RTP1 não foi honesta. Se tivessem desde logo informado os portugueses (isto é um púlpito à minha frente?) que a decisão final ia ser Highlander-style, de empalanço em empalanço, certamente que os finalistas não seriam estes. Não nego que vai ser giro ver o Pessoa vazar o outro olho do Camões, o Vasco da Gama a fazer o Infante Henrique chorar apodando-o de marinheiro de água doce, o Salazar e o Cunhal making out em rituais SM até o presidente do conselho desonestamente mandar vir a PIDE para um gangbang safando-se por uma nesga do final natural de ser man-handled pela foice e martelo, o Aristides a apanhar por tabela a tentar safar o desvalido Camões da refrega (o Pessoa revelando-se verdadeiramente uma nasty bitch), e o João II a tentar livrar-se anacronicamente desse Sebastião Melo, futuro arrivista dos poderes da coroa, convencendo o Afonso Henriques que se fizer pontaria para Sul do Equador o poder da esfuziante peruca pombalina será neutralizado. Mas pela regra do espadeirão, parece-me óbvio que nem com os manipuladores que há no baralho, a força bruta do Afonso Henriques poderá ser derrotada, o que não seria necessariamente o caso se o Salgueiro Maia lá estivesse para lhe estacionar a chaimite no focinho. Concede-se, claro, que o Salazar deve ter algum truque na manga, para ter conseguido ser ditador, por décadas, de uns poucos milhões, em época onde democracia já era uma palavra minimamente soletrável, com vozinha canora, e ainda hoje persistir arrulhando no seus corações. Mesmo assim, a menos que o programa admita batota, esse é o problema histórico dos ditadores modernos: a sua dependência de um aparelho administrativo-burocrático de sustentação do poder, com controlo dos meios de violência incluso. Continuando weberianos, há uma décalage histórica insanável entre a legitimação carismática do Afonso Henriques, que teria que sovar directamente muita gente para legitimar a coroa, e a legitimação administrativa do Salazar, com a virilidade enxovalhada no corpo afirmada sublimadamente na cavalice troglodita e assanhada dos esbirros de Estado. E se, à imagem do Highlander, até pode haver elementos modernos a concurso, como arremesso de câmaras de televisão ou, se tivermos sorte, da Maria Elisa, a dinâmica de jogo parece-me permanecer resolutamente medieval, a menos que chamem a PIDE outra vez, o que também não seria justo. De qualquer forma, para quem se queixe que assim o jogo está falho de equidade nas hipóteses regulamentares de cada concorrente, ou que será triste medir pelo espadeirar de Afonso Henriques os pusilânimes que fizeram a nossa triste história, vê-se logo que não sabem o que faz um bom show pedagógico de televisão de serviço público. Ai, só eu sei o que aprendo e me está a gustar a história do meu país.

sexta-feira, 23 de março de 2007

Mas afinal é para votar no maior quê?...

...o maior proto-matricida com vontade de poder sem razoabilidade na materialização da humana busca de a place to call your own... ai... o maior papa-criancinhas ao pequeno-almoço a ficar aquém de um Politburo... ai... o mais patético arremedo de ditador semi-periférico a envergonhar internacionalmente a pátria panhonha subjugada à autoridade de aparência implausível de um pio de cana-rachada... ai... o maior exemplo de como as benfeitorias contra genocídios não se dão bem sob arremedo de ditador semi-periférico a envergonhar internacionalmente a pátria panhonha subjugada à autoridade de aparência implausível de um pio de cana-rachada... ai... o maior comprovativo do génio poético de ser um misantropo, pederasta vagamente recalcado, com múltipla personalidade... ai... o maior filibusteiro de banheira a enregelar o traseiro no promontório de Sagres... ai... o maior jogador de poker na modalidade megalómana de alarvidade colonialista em terra alheia e por grafar... ai... o maior zarolho nacionalista a sublimar liricamente pouco saudáveis e recompensadoras fixações sebastianistas... ai... o maior primeiro-ministro a combinar cabeleira rocócó com punho-de-ferro déspota (tentando conter o gesto de bitch-slapping) e uma obsessão, iluministicamente mal-justificada, por ver jesuítas de rabo a andar... ai... o maior desbravador dos primordiais proventos globalizadores, a contar milhas e dobrar cabos por mares nunca dantes navegados para desbastar grelo exótico?
Estou tão indeciso...

Grandes portugueses

Agora me dou conta que, gorada, há tempos, por frivolidades burocráticas, a tentativa, por motivação científica(?), de exumar o Camões (era o Camões? não, acho que era o Sebastião), se desnudou o precedente que fere de irresolução especulativa qualquer dissertação sobre quem tenha sido o maior português. Sem dados histórico-documentais fiáveis para a comparação definitiva da qualidade maior de distinção do carácter luso, via mangalhometria, como é que querem sustentar uma decisão sem ir directo à fonte? A eterealização da fiabilidade peniana sublimada na especulação dos seus sub-produtos personalísticos e respectivos "feitos" (porque os homens são função do pénis que têm - a ponto de, logicamente, tomar as mulheres por função do que não têm) é um cumprimento lúdico da herança iluminista, tudo bem, mas os mesmos pergaminhos filosóficos exigem, para o voto, dados incontestáveis ao milímetro. Poderíamos, é certo, pretender acalentar dar dignidade científica ao procedimento tecnicista, e averiguar das proporcionalidades comparadas da bacamartometria e da grandeza dos feitos, tanto maior quanto se erija resoluta em contra-corrente e ângulo maior à menoridade da erecção. Contudo, a especulativa valorização dos "feitos", da mais diversa índole, a partir dos mais diversos critérios (ó aquele foi melhor fascista que o outro foi lírico) colide irremediavelmente com a exactidão da medida do homem. Parece-me uma inquirição irremediavelmente lesada por um péssimo plano de pesquisa...
Para quem estranhe a exclusão biologista do critério operativo, ele obviamente serve o genital que escreve a história, nossos pacíficos tristes tópicos espraiados alegremente com pompa no ecran, servidos por gloriosos intelectuais e personalidades de mão no bolso.
Disclaimers dirijam-se ao serviço público.
Naturalmente.

Miss Múmia Portugal

«Os dez finalistas»??
Não percebo como é que o César das Neves ainda não topou que isto é uma conspiração gay para deslocar o centro de gravidade dos bacamartes nacionais do soutien para a tanga.

quarta-feira, 21 de março de 2007

Saber pelo saber sem querer saber

Complementarmente à arengada já expurgada sobre o texto do Vasco M. Barreto, confesso algum espanto ao ler declarações absolutas de mão no peito sobre a alegre procura do "saber pelo saber" (dado que a única ressalva inclusa não cumpre senão função irónica). Apesar das benfeitorias de estados que ainda financiam pesquisa que ao mundo da instrumentalidade parecerá estarola, não vejo que nenhum cientista em actividade possa olhar o seu meio com a ilusão de feliz descompromisso de qualquer constrangimento social, político e económico à formatação da sua investigação, em diversos aspectos. Não é que o saber pelo saber não possa enquanto princípio ser curioso, e enquanto prática, frutuoso, dadas as imprevisíveis formas de interpenetração e fecundação que investigação em si aparentemente estéril tem em campos não antecipados instrumentalmente. Mas será desatenção sociológica pressupôr que é esse o princípio que opera na produção de ciência. O que, na verdade, a defesa abstracta do princípio acarreta é a exposição da ciência apenas aos constrangimentos dos agentes com poder para se erigirem como condição das suas possibilidades de produção de conhecimento. Ora, se o público muitas vezes compreende mal a ciência, a ciência tende a ignorar olimpicamente o público, com o duplo argumento auto-enamorado de não saberem o que os cientistas sabem, e de que se o soubessem pensariam como cientistas (tidos, terceiro auto-embasbacamento, como massa (cinzenta) homogénea). Se Foucault nos ensinou a dar o passo atrás e perguntar-nos porque é que fazemos determinadas perguntas ao real, qualquer história das ciências (que não louvor oficial) expõe-nos às consequências de não pensarmos nos efeitos de perseguirmos automaticamente a resposta a determinadas perguntas. É certamente também um truísmo a qualquer discerning eye que largamente a instrumentalização do capital de ciência de que as sociedades dispõem é função daquilo que as formas de agência de poder nelas procuraram ver conhecido e instrumentalizado. O que equivale a dizer que não são todas as perguntas que a ciência se pode colocar que são efectivamente colocadas pelos cientistas na sua actividade. Pretender naturalizar com o "saber pelo saber" a pesquisa selectiva que realmente se faz, é legitimar não a imagem clássica do cientista livre, mas uma ciência de Estado e, cada vez mais, uma ciência de mercado. A menos que seja essa a perspectiva encapotada de quem defende o "saber pelo saber", talvez fosse produtivo (social e cientificamente) desistir do mito descomprometido da cientista condição, e aproximá-la da sua verdade, antes de pretender decretar a verdade do mundo e dos outros. O problema, portanto, não é propriamente o saber pelo saber, mas descartar o porque é que se quer saber. E caso não seja evidente, sublinhe-se: saber como e porque é que se quer saber, na verdade, é querer saber mais.

Outras evidências inquestionadas

Será provavelmente sintomático das relações entre ciência e sociedade que o discurso e representação das ciências (duras, au) por si próprias pareça por vezes ter incorporado pouco da turbulência que a vivência dos seus efeitos sobre o real historicamente vem gerando. Foi dado à leitura, há dias (porventura 5), um escrito interessante do Vasco M. Barreto sobre a investigação biológica no domínio da causalidade da homossexualidade e as reacções sociais avessas à prossecução de semelhante inquirição. Deve dizer-se aliás que o mapeamento que faz dos argumentos e inquietações que presidem à euforia e à preocupação com essa possibilidade explicativa da homossexualidade, dos dois lados do espectro homofóbico, é certeiro. O que torna mais descoroçoante o facto de daí não extrair ilações, como se grafar as movimentações sociais em torno de um objecto de polémica possa apenas ser expediente para mais cabalmente as ignorar.
É também bastante curioso como resulta amiúde irónico (e é por isso que a blogosfera de vez em quando até tem graça) que ao empacotar num texto referências en passant se deixe passar ao lado o potencial subversivo que essa referência tem para as próprias proposições das quais a fazemos sustentáculo (ou estacazita). Por entre os factores sociais que são evocados para explicar o porquê dessa polémica na face da estranheza intelectual que lhe suscita, aparece a influência social de Michel Foucault, com a sua concepção de que a homossexualidade seria uma "construção social". É possível que o tio Michel desse uns pulos à Bubka sem precisar de vara ao ouvir falar de construção social a propósito da sua teoria (por razões que não tenho também espaço para não explicar), mas para post, a coisa faz-se entender. E conviria talvez deixar mais explícito que quando se diz que para Foucault a homossexualidade é uma invenção histórica recente, fala-se da constituição da categoria social da homossexualidade, enquanto forma de classificar os indivíduos em função das suas práticas sexuais, e não, obviamente, das práticas propriamente ditas, isto no contexto da governamentalidade que estendeu a partir do século XIX as malhas da apreensão e classificação disciplinar da realidade como forma de regulação social (a ciência moderna nunca servindo só, ou sequer primeiramente, para "conhecer"). De alguma forma, é verdade que Foucault esvazia a questão de uma causalidade biológica para a homossexualidade. Mas, como em qualquer ciência (menos para quem tenha a pretensão ao mito da unicidade de uma Grã-Ciência), fá-lo para poder colocar outras questões (de outra ciência, ou perspectiva analítica) ao fenómeno: não está propriamente investido em negar directamente as pretensões de ontologização de uma classificação histórica, vertida em senso-comum, dos indivíduos em função das suas práticas sexuais. Antes, olhando de fora dos esquemas explicativos das disciplinas que o pretenderam fazer (e fizeram, e fazem), examina como é que determinadas práticas sociais e sexuais "ganharam" "direito" a serem escrutinadas e, em consequência, epitomizando disciplinarmente os seus actores sociais como constituindo um tipo ontológico particular.
O que Foucault perguntava ou sugeria não é qualquer avanço sobre o que é a homossexualidade, mas porque é que social e disciplinarmente se cria a necessidade de categorizar os indivíduos enquanto tal, sendo que, pela própria operação das disciplinas, a categorização dos sujeitos concorre com a sua identificação com tal categoria (seja para aceitá-la, seja para debatê-la, mas inevitavelmente constrangidos por ela). É também esse o pressuposto porventura não devidamente explicitado na busca de uma explicação biológica da homossexualidade: o de que existe uma ontologia homossexual à espera de ser explicada. Ora, começa aqui a ironia de se presumir directamente que a perspectiva de Foucault concorre hoje com a contestação da investigação biologizante da homossexualidade. Sejam quais forem os efeitos políticos de uma naturalização científica da homossexualidade, o problema com qualquer explicação biológica para realidades comportamentalmente indiciadas, é o de deduzirem de certas práticas ou formas de auto-identificação em parte auto-induzidas pela classificação disciplinar (antes da "invenção" da categoria "homossexual" ninguém se pode identificar como tal) uma realidade objectiva a ser estudada. Ora a perspectiva de Foucault está na verdade a montante dessa questão, a inquirir como é que se cria o pressuposto de que há na homossexualidade uma realidade a carecer explicação (como o não há, na heterossexualidade). Ou seja, de alguma forma, from the grave, antecipa-se à estranheza do Vasco M. Barreto, explicando porque é que para ele a homossexualidade constitui um objecto inquestionável de estudo para, por exemplo, a biologia (sendo que na perspectiva de Foucault, todas lá iriam ou foram parar, como a sociologia, antropologia, psiquiatria, ainda que cada qual com suas consequências) - isto para além do argumento saco-sem-fundo do "saber pelo saber", porque a questão é o que nos aparece, da infinidade inaprisionável de hipóteses explicativas do real, como algo "a saber", e não a concorrer para a prateleira de laureados de IgNóbeis.
Mas há outro paradoxo curioso, directamente emanado da perspectiva foucaultiana da explicação disciplinar, na "evidência" de estudar a homossexualidade, para o caso, numa perspectiva biológica. É que lhe parece estrangeiro que a sexualidade humana seja objecto de reflexividade e invenção naquilo que é a sua vivência pelos sujeitos, e abordá-la disciplinarmente, classificá-la, explicá-la, implica largamente fabricar uma nova realidade para se adequar aos mecanismos e hipóteses da explicação. Neste caso, antes de se definir disciplinarmente os indivíduos como homossexuais, de se fixá-los ontologicamente numa nomenclatura, um pluralidade de efeitos da sua auto e hetero-identificação como tal não poderiam emergir como tal. É nesse sentido que a homossexualidade pode ser dita uma "invenção recente". E com a hipótese biológica, aquilo que se criaria seria, de facto, independentemente de outras conjecturas futurológicas da instrumentalidade desse conhecimento, the ultimate invention of homossexuality, com a certificação biológica de quem é homossexual, e quem não é, no sentido da arregimentação dessa coisa que parecemos (por vezes com efeitos lamentáveis) ainda não perceber ser tão avessa a espartilhos, que é a sexualidade humana (para lá da falácia reprodutiva, tão regurgitada, sintomaticamente, nos comentários ao texto), com homossexuais, heterossexuais e foot-fetichists cada quais arrumados cientificamente em suas inexpurgáveis fileiras (sim, eu sei que não são categorias mutuamente exclusivas, cientifização oblige, mas também se poderia dizer que os foot-fetichists só se andam a enganar - um bom pé não tem sexo). Ou em dialecto, um homem (é o meu viés, perdão) já não pode partir bilha impunemente. Pode, claro, argumentar-se que o comportamento social e sexual permanece intrinsecamente livre, mas ignorar que os decretos disciplinares de existência são constitutivos das condições de experiência e percepção de existência, é descartar evidência antropológica.
De facto, qualquer pretensão de explicação biológica da acção humana (logo, potencialmente reflexiva, não mecanicista) é polémica (particularmente quando respeita à identificação ontológica dos indivíduos) porque absolutiza a determinação dos objectos explicados (mesmo com todas as cautelas à falácia determinista comummente associada à genética, a que o Vasco M. Barreto alude), e encerra os indivíduos nas verdades que se dizem descobrir sobre eles (que podem ser avessas às suas verdades subjectivas de si). A homossexualidade ser determinada uma realidade categórica torna-a uma compulsão social, algo que, na face dos indícios de se "ser", requer como termo lógico tornar-se condição de vida específica (algo intuível, por exemplo, na reprovação conceptual generalizada dessa coisa não "devidamente" determinada que é a bissexualidade, encarada, por exemplo, como frescura de homossexuais who are just kidding themselves).
Ora, não deixa de ser irónico que a postura de distanciação cientista de Foucault seja pedagógica igualmente para a questão candente(?) de saber se tal linha de pesquisa deveria ser prosseguida ou não. Basicamente, o que nos diz é que o conhecimento que produzimos e proferimos fala mais sobre o que pensamos que aquilo que temos em mente. Não é preciso voltar a Weber para percebermos que as questões que colocamos e o que procuramos explicar não é inocente, just plain fun ou just plain research. Aquilo sobre que uma sociedade se interroga é função das estruturas de pensamento em que assenta, e que balizam o seu campo de cogitação. Se nos perguntamos qual a causa da homossexualidade, é porque concebemos esse como um facto carente de explicação. Ora, entre os receios eugenistas e as legitimações absolutas biologistas, o campo político de apropriação de qualquer decreto biológico de explicação da homossexualidade é na verdade largamente indeterminado - mas poderá passar instrumentalmente a configurar hipóteses muitíssimo mais acirradas de determinação. E tal como a ciência e a política partilham leitos dizendo que não se conhecem, concebo que seja por conceberem politicamente essa determinação como um risco à defesa ampla de não discriminação sexual que vozes no campo da homossexualidade se manifestam contra essa investigação, apesar da sua potencial indeterminação intrínseca (não o perceber é persistir nessa tragédia muda ou adiada de julgar que o laboratório é realmente estanque do mundo exterior).
O que é de facto luminoso, e a ironia maior, é verificarmos que, na colocação da hipótese causalista biológica da homossexualidade, se está de facto a prosseguir na invenção da homossexualidade. Se ao presumir a realidade objectiva da categoria, a ciência reproduz as condições de ratificação e comprovação da sua existência, daí resulta esse curioso paradoxo final: na verdade, se há contestação da hipótese de ontologização disciplinar (biológica) da homossexualidade, é precisamente como emanação histórica da fixação disciplinar de um tipo humano, homossexual, como uma realidade objectiva, a explicar, e seus efeitos na transformação da percepção, clasificação e identificação dos indivíduos. Esses homossexuais recalcitrantes à explicação biológica de quem assumem que são, são pois os filhos (pródigos) directos da invenção disciplinar (biting her in the ass) da sua condição. Um truísmo rebuscado? Talvez. Mas muito instrutivo.

Nota: sustentar uma crítica de um parágrafo a Foucault (mais uma menção e tenho palavras para um altar...) é exercício curioso mas dificilmente plausível com a sugestão de a mesma ser propensa a tão debilmente ser afanicada com um texto internético (sem querer esnobar...) de um «historiador» (pelo que vi tinha formação em filosofia, but whatever) que, com base numa (e só uma) fonte documental, de uma só época histórica (o argumento de Foucault cobre, mesmo com buracos, uns poucos séculos), pretendesse perigar seriamente (ainda que também aqui toda a dissensão e crítica empírica e analítica seja benvinda) um argumento incluso numa obra muito mais ampla, em três volumes (a «História da Sexualidade»), sustentada em extensa e finíssima (carpaccio-like) análise documental (para quem possa ter ficado com a ideia leviana que, ao contrário dos "historiadores", as imbricadas analíticas de Foucault são veleidades, conquanto eruditas, do seu livre esprit, sem sequer mímica de ancoragem empírica), é um bocadinho audaz demais. Aliás, segundo me lembro (aqui posso estar mesmo errado), embora se possa pretender induzir isso, Foucault não andou propriamente a conceber a homossexualidade como uma forma de categorizar a atracção sexual, entre outra possíveis como classe social, côr do cabelo, bla bla bla. Quanto mais não fôra, a dissolução categorial e vale-tudos nunca foram propriamente estratégia da sua autoria.
Até para quem não leu a fonte documental (a partir da qual se pretende discutir a tese foucaultiana de que as formas de classificação de práticas ditas homossexuais produzidas disciplinarmente no século XIX, não se compaginam com classificações prévias, como seja na Grécia Antiga), se constata que (já que em matéria de minúcias essas hermenêuticas se jogam), apesar de na estrutura do discurso do texto de Aristófanes (a dita fonte) se definir a possibilidade de uma relação homossexual tal como a concebemos hoje (estável, entre dois homens adultos e livres, para simplificar) e não nos termos de regulação que a cultura grega apunha às práticas homossexuais (como tal, sugerindo uma homologia mais forte entre a suposta diversidade histórica de classificação de actos homossexuais), descartar o facto (reconhecido) de não se encontrar nessa cultura, referência a uma categoria linguística que nomeie esses sujeitos ou a condição de que seriam protagonistas como realidade determinada (ou seja, palavra para a homossexualidade enquanto categoria relacional e ontológica ou identitária), é uma leviandade tendo em conta a centralidade linguística no desenho das formas de entendimento do real: algo para que se não tem uma palavra, é algo de existência não-evidente (não é o mesmo que não-existente, bem entendido). E aí cairá novamente o busílis da questão para a contemporaneidade.

sexta-feira, 9 de março de 2007

Parte interessada

Em conversa de amigos (for argument's sake), sou imediatamente suspeito se manifestar apreço por um filme que albergue losers.

The criticgoer

No hábito de ler textos, em geral do Bénard (Folhas da Cinemateca oblige), após o visionamento de certos filmes, percebe-se que, mesmo com uma memória invejadamente prodigiosa, quem escreva tanto sobre cinema o faça a partir do recurso a essa memória; e por vezes a mesma produz imagens, ligações, que não se encontram na película, mas são já a recriação da mesma a partir da visão encarnada em que se foi enformando na nossa percepção total do filme. Lembrei-me disso ao ler uma citação de Deleuze, postada pela Cristina, em que fala sobre Stromboli (o filme), sobre o confronto fenoménico da Bergman com a ilha geografia e seus modos habitados. Na última parte diz «Et plus tard après l’admirable séquence du thon, de la pêche au thon, un marin voudra lui faire toucher un thon; elle le touchera très très timidement». Ora, se bem me lembro (e devia, revi-o há dias), o Deleuze, na sua rememoração analítica, está a plasmar duas sequências diferentes: a primeira quando o marido traz um peixe (que não era atum) para casa, após a primeira faina em que arranja emprego e se deixa explorar para poder "providenciar" as "necessidades" da esposa, que, após a saída dele, vai tocar, de facto, muito ao de leve no peixe, quase com a estranheza de ressentir a textura dessa coisa tão brutamente real; a segunda quando ela assiste de facto à faina do atum em crescendo de horror visual, que surpasse sequer a plausibilidade de aprofundar tactilmente o terror da sangria. Como se a visão/imagem, não o tacto, fosse a instância máxima de confronto com o real.
Não que esta rectificação interesse, por si, realmente (muito menos para a proposição que Deleuze quer sustentar). Não que eu tenha mais certeza factual que aquela de que desconfio na frase de Deleuze. Não que o cinema não se faça igualmente dos nossos raccords subjectivos, para os quais cronologia e encastramento situacional podem tornar-se quase empecilhos na primordial floração de um sentido pessoal e "libertável" do referente. Não que um filme (e não se careceria o fantasma de Baudrillard para ratificação sentenciosa) não seja tão ou mais filme nesse rearranjo não contingente (como tal, não erróneo) dos seus elementos em função da visão que lhe assiste (da qual o rearranjo subjectivo dos seus elementos pode hipoteticamente ser mais respeitadora ainda que a sua incepção prática), que a sua mais detalhada e factual descrição. Não que se pretenda privar e desautorizar os autores na intencionalidade do gesto. Não que a intencionalidade do gesto seja auto-suficiente na erecção estética, que o autor não seja um construto que extravasa a factualidade de cada filme. Não que o exercício crítico não seja também de ampliação analítica e interpretativa das margens de significação de um filme para a história, para a estética, para as subjectividades, no quadro de um idioma expressivo específico. Não que o sumo exercício crítico não seja também a polinização de um filme para que mais filmes nele, e dele, possam ser legíveis e possíveis. É em parte por isso que cresci a gostar quase tanto de crítica de cinema, como de cinema propriamente dito; a acolher a crítica como cinema. Com a mesma dissensão e deslumbre particulares em potência - com cinema e crítica que nos interessam, e cinema e crítica que não nos interessam (há que querer ler e escolher), consoante a concepção que vamos nutrindo (processualidade oblige) sobre o que quer que sejam. Com a mesma necessidade constitutiva.

quinta-feira, 8 de março de 2007

Dá-me biscoitinhos, Ivan Petrovich

É muito esclarecedor da necessidade de incitar metodologicamente a produção de conhecimento, só apercebermos pelos automatismos deslocados dos gestos (fora do contexto de hábito) a correlativa deslocação desapercebida das preponderâncias estruturais em que se vai inscrevendo o nosso quotidiano. Hoje ficou reflexamente comprovado que, ao contrário do meu hábito ancestral, devo andar muito saído do habitáculo: estando nessa penthouse heffneriana a que chamo lar, depois de lavar as mãos na casa-de-banho (mas para que é que agora estão a pensar nisso?, eh pá, com um intróito logo assim tão pseudo-algo para vos elevar o espírito inquiridor, para que é que tinham que encarreirar nessa cogitação profana?, como que, assim, tipo arremetendo-vos salivarmente - ahhhh, por isso... pois, já percebi, perdão, não voltarei a duvidar de vós... ou antes... tinham mesmo que me antecipar o argumento, não?... chiça, mesquinhos...), dizia eu, depois de lavar as mãos na casa de banho em casa, tive um segundo de hesitação em que fiquei à espera que a torneira se fechasse sozinha.

sexta-feira, 2 de março de 2007

Tira-teimas

Andou por aí, breve (e distante, o que diz bastante do intervalo cognitivo da minha apreensão fenoménica) no tempo e no espaço, eco de vozes, numa escolha de Sofia dos televisivo-dependentes, manifestando a sua preferência por um dos dois paradigmáticos apresentadores de talk-shows norte-americanos, o Jay Leno e o Conan O'Brien. Não cuidava que as comparações fizessem particular sentido, já que os cavalheiros se fazem de exercícios humorísticos largamente diversos: o Leno num exercício mais formatado oriundo de stand-up comedy; o Conan numa voragem anárquica (which does take some getting used to) que abraça de bom grado a contingência, o erro, o excesso a testar os limites do ridículo e do exasperante, da qual a sua pessoa, a sua persona e a corporalidade que integra e fomenta aquela dualidade de fronteiras ambíguas, se erigem como centro da tempestade (da qual os convidados mais entediantes se tornam quase meros apêndices a fornecer leitmotifs, e os mais aventureiros se vêem co-participantes de uma espiral de nonsense cujos limites alimentam a própria subversão - o Jeff Goldblum é um clássico), o que o torna às vezes um exercício fascinante de absolutização do idioma humorístico sobre a intervenção do "real" não-domesticado para o efeito, com um live bodily experiment em exposição performática a operar a transmutação. Teoricamente, deve ser o programa gravado com menos editing do mercado (algo sintomaticamente, "we'll edit that out later" é das frases recorrentes a aparecerem nas emissões). Metaforica e literalmente , o Conan O'Brien é, a bastante distância de Leno, um "humorista" de corpo inteiro, ainda que não chegando a entrar na danger zone de, por exemplo, Andy Kaufman.
Contudo, mesmo buscando terreno comum para fazer-se a comparação, a logística humorística de Conan sobrepõe-se, resgata e subverte qualquer circunscrição de formato humorístico, como no clássico monólogo inicial em registo precisamente stand-up comedy. Basta observar os apartes não escritos às piadas para avaliar não da qualidade autorística (salvo seja) do humor, mas da encarnação personalística de um humorista (o que faz toda a diferença - um mau cómico descortina-se à primeira, mesmo com a melhor piada do mundo).
Há pouco tempo, numa peça humorística, entabulava-se um diálogo "apaixonado" entre Conan e o baterista Max Weinberg (compincha do Springsteen - as bandas dos dois programas são outro indicador diferencial de qualidade esmagador) sobre os entediantes e minuciosos pormenores, que fazem as delícias dos expert-fans, do futebol (que chamam soccer, irrisório nos EUA e seus desportos manápulocêntricos), findo o qual o nosso red-headed-proto-albino-gigantic-irish-nerd apresentador desabafa «Man, what a crappy game!». Ouvem-se "ohhhh"s da plateia. Conan comenta qualquer coisa como «Uau, there's lots of people now writing angry letters of protest...» e num flash de inspiração, remata «...with their feet!».
He rests his case.

The Sound of Mugic

« A Amélia Muge é uma força criativa de muitas raízes que soube enredá-las numa personalística estética singular que lhe permite esticar-lhe os limites para muitos lados de cada vez. A imprevisibilidade e renovação expressivas que daí resultam são uma das maiores valias que a tornam das figuras mais vitais da música portuguesa contemporânea, e tal se comprovou mais uma vez no magnífico concerto que arquitectou para inaugurar a apresentação pública do novo disco «Não Sou Daqui».
Diz-se que “arquitectou” o concerto, e diz-se bem. De há muito que Amélia investe em concepções mais amplas de presentear audiências com o canto ao lado, divisando potenciares cénicos, aproximações cuidadosas a obra de arte total, para tornar visível a mais sentidos uma ideia de espectáculo que vá para lá da recolecção de canções. Desta feita, ergueu seu maior feito, com o “desenho de sons” (como Amélia preciosamente o designou) digital em tempo real de António Jorge Gonçalves (de traço, texturas, cromatismos, e plasticidade sonora admiráveis) a materializar em écran de fundo a concretitude e abstracção do universo sonoro em expansão emanado do palco, fazendo-nos lembrar (perdoarão a veleidade), o trabalho de Picasso com Gjon Mili. Mais que curiosidade tecnológica, foi um operador constitutivo dessa expressão pictórica que a música já convocava, particularmente assoberbante em momentos como «O anjo», assombroso exorcismo vocal e performático em que as projecções encontram no corpo da cantadora a tela que mais exterioriza as suas dilacerações. Canção que assimilou à transcendência a experimentação à Laurie Anderson que é bem fonte das concepções de espectáculo que Amélia tem desenvolvido, mesmo sem ser necessário comprová-lo com o exercício de sampling e spoken word sobre texto da dita «A garra do macaco», dos raros momentos provindos de outros discos (nomeadamente, do anterior «A Monte»). Fora esse, apenas «Ervas-de-Cheiro» e «Senhorecos» (mais uma inestimável intervenção do desenhador de sons) relembraram o inicial «Múgica» e o grande poeta discreto (a própria nominalística pseudonímica dixit) Grabato Dias (que, não sendo elencado com os poetas musicados no disco, vários presentes na sala, não podia faltar no elencar dos elementos mais perenes do universo mugiano(?!)), e no corpo do programa, apenas um “sampling” in loco no corpo de outras canções evocou esse passado quase em língua estrangeira (dadas as mini-pátrias que cada linguagem nova de Amélia vai inscrevendo quase a cada disco), que foram os nunca suficientemente ditos geniais «Todos os Dias» e «Taco a Taco». Apenas nos encores a memória de «Todos os Dias» voltou com o final e inevitável(?) «Nevoeiro», e antes, com uma renovada interpretação do ominoso «Ao passar o mal-lavado». Esta interpretação aliás, volve-se fulcral para perceber a distância dos caminhos que a compositora vai trilhando. Da suspensão esparsa e ameaçadora do original, em que nem os breves clímaxes cíclicos resolviam a tensão, esta versão espraia-se num acompanhamento instrumental cheio, com abertas jazzísticas. Portanto se confirmava que do anterior afinco na precisão arranjística, na certeza tímbrica, no corte e costura instrumental e composicional estranhado e entranhado numa linguagem perdida a narrar um universo inimitável, teríamos em alguma medida que abdicar para nos rendermos a esta nova proposta de sincretismo denunciado (como teríamos que abafar algumas saudades de uma braguesa - «Chamaram-me cigano» não colmatou).
A música de Amélia Muge, se já depurou o imaginário da música popular portuguesa ao seu mais secreto e pristino, e se já dominou a sua alquimia para jogar em criatividade formalmente irrestrita com os seus elementos e produzir as equações mais imprevistas (nesse ó seminal «Taco a Taco»), parece neste momento querer menos desenvolver a sua especificidade idiomática internalista, não obstante para ela convocar elementos diversos (da inspiração tradicional à discreta electrónica) que sirvam a sua potencialidade expressiva, quanto cruzar géneros já solidificados para nessa simbiose instalar um transfronteiriço canto, e não tanto o seu próprio país múgical (se é que me faço entender). Não se estranhe pois a instrumentação renovada, de piano, contrabaixo, percussões plurais e o multi-instrumentalismo do cada vez mais prolixo José Manuel David (sopro de mãos incluído), ainda que com o brilhantismo do José António Martins sempre ao leme da direcção musical (desta feita quase inteiramente escondido nos bastidores). Portanto, muito menos se estranhe o feeling jazzy de «Sete portas tenho em casa», quase a abrir. Ou ainda um provável novo género luso-blaxploitation low-fi em ressonâncias de Fender Rhodes alimentando um enganoso quase lounge jazz (seja lá o que isso fôr) a enevoar as harmonias arrevesadas, na distensão ou numa locomoção razoavelmente groovy. Ou mais directamente, a deliciosa habitação de um registo falso-fadista, entre o jocoso e o sincero, a proximidade e a distância, esse meio-termo de todos e ninguém onde Amélia quer com os géneros que convoca fazer existir, com palavras medidas à precisão por Hélia Correia, no «Fadunchinho». Momento também simbólico do quanto Amélia parece neste momento optar por sublinhar conceptualmente a mais grosso traço o seu sincretismo e concomitante distância de qualquer pureza de género, já que a aproximação ao fado havia sido, com aquelas mesmas devidas distâncias, assumida com naturalidade expressiva pelo menos desde 1998, em «Há quem te chame menina».
Não obstante as desafiantes e inaprisionáveis arremetidas de Amélia a tanto som enclausurado nas tipologias, confessamos que é no registo mais íntimo e esgarçado do interior partilhado que essa coabitação de tanto mundo e música justifica mais o exaltante sentido, na nudez da voz, trespassando inclusive efémero vislumbre de rouquidão (sintomaticamente(...), não seria a primeira vez que a veríamos, voluntariosa, actuar constipada...). Como na belíssima «Na noite mais escura» e «Transparência», sobre poemas de António Ramos Rosa e de Eugénio Lisboa, onde essa fibra toda corpórea que Amélia entrega ao canto nos entrega também a identificação perfeita com essa mulher inteira que canta com toda de si, com cada músculo e cada sentido em cada grave e cada vibrato.
Se a indomável busca de novos pousos onde divisar novo canto se arrisca corajosa à diferencial satisfação dos que a esperam ouvir sempre renovada mas necessariamente cativos de terreiros anteriores onde a sedução e admiração tomaram raízes, é dever a esta grande inquietadora das certezas adquiridas esperar sempre cada capítulo com a vontade desacorrentada. Pela nossa parte, aguardamos com indisfarçável ansiedade os dois capítulos já prometidos que se seguem (que se livrem de demorar mais 5 anos).

(em aparte reincidente, não há maneira de, ou alguém para, pegar e editar o material que deu concerto magnífico, e estação exuberante da heterodoxia revisited mugiana (outra vez?!), há caramba demasiados anos atrás, de Amélia com um coro búlgaro? É que era um favor que me faziam – com esta é que os convenço...) »

He (aventesma) has left us alone (até ver) but shafts of light (tipo, recônditas canções do camandro) sometimes grace the corner of our rooms...

(o indecoroso tom pós-teológico mal-resolvido, ainda para mais aplicada à mais profana das funções simbólicas, o fellatio blogosférico, é claramente compensado por ser debitado à conta de um título da responsabilidade dos ainda na minha enciclopédia considerados exasperantes A Silver Mt. Zion bla bla bla, sendo que em circunstância alguma, reitero, sacrificarei um qualquer risível potentado retórico de meia-tijela a quaisquer considerações racionalistas, afectivas, morais, estéticas, políticas, económicas (não, económicas sim, preciso do cacau), sexuais (não, sexuais sim, já doei o pulso à Faculdade de Motricidade Humana), or otherwise. Donde se confirma este clássico albeit rançoso engraxanço blogosférico e correlativa pouco subtil forma de pressão social conquanto discretamente púdica no meio do chavascal serem no meu estrito self-interest. Be warned. Sou o sofista palerma de mim mesmo)