quarta-feira, 21 de março de 2007

Saber pelo saber sem querer saber

Complementarmente à arengada já expurgada sobre o texto do Vasco M. Barreto, confesso algum espanto ao ler declarações absolutas de mão no peito sobre a alegre procura do "saber pelo saber" (dado que a única ressalva inclusa não cumpre senão função irónica). Apesar das benfeitorias de estados que ainda financiam pesquisa que ao mundo da instrumentalidade parecerá estarola, não vejo que nenhum cientista em actividade possa olhar o seu meio com a ilusão de feliz descompromisso de qualquer constrangimento social, político e económico à formatação da sua investigação, em diversos aspectos. Não é que o saber pelo saber não possa enquanto princípio ser curioso, e enquanto prática, frutuoso, dadas as imprevisíveis formas de interpenetração e fecundação que investigação em si aparentemente estéril tem em campos não antecipados instrumentalmente. Mas será desatenção sociológica pressupôr que é esse o princípio que opera na produção de ciência. O que, na verdade, a defesa abstracta do princípio acarreta é a exposição da ciência apenas aos constrangimentos dos agentes com poder para se erigirem como condição das suas possibilidades de produção de conhecimento. Ora, se o público muitas vezes compreende mal a ciência, a ciência tende a ignorar olimpicamente o público, com o duplo argumento auto-enamorado de não saberem o que os cientistas sabem, e de que se o soubessem pensariam como cientistas (tidos, terceiro auto-embasbacamento, como massa (cinzenta) homogénea). Se Foucault nos ensinou a dar o passo atrás e perguntar-nos porque é que fazemos determinadas perguntas ao real, qualquer história das ciências (que não louvor oficial) expõe-nos às consequências de não pensarmos nos efeitos de perseguirmos automaticamente a resposta a determinadas perguntas. É certamente também um truísmo a qualquer discerning eye que largamente a instrumentalização do capital de ciência de que as sociedades dispõem é função daquilo que as formas de agência de poder nelas procuraram ver conhecido e instrumentalizado. O que equivale a dizer que não são todas as perguntas que a ciência se pode colocar que são efectivamente colocadas pelos cientistas na sua actividade. Pretender naturalizar com o "saber pelo saber" a pesquisa selectiva que realmente se faz, é legitimar não a imagem clássica do cientista livre, mas uma ciência de Estado e, cada vez mais, uma ciência de mercado. A menos que seja essa a perspectiva encapotada de quem defende o "saber pelo saber", talvez fosse produtivo (social e cientificamente) desistir do mito descomprometido da cientista condição, e aproximá-la da sua verdade, antes de pretender decretar a verdade do mundo e dos outros. O problema, portanto, não é propriamente o saber pelo saber, mas descartar o porque é que se quer saber. E caso não seja evidente, sublinhe-se: saber como e porque é que se quer saber, na verdade, é querer saber mais.

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