sexta-feira, 16 de fevereiro de 2007

Corações ao alto

«A perfeição, a pureza, a genuinidade (credo!), são noções muito duvidosas, a que certo essencialismo implícito, e certa exaltação explícita, recorrentemente nos conduzem. E se tal senda dificilmente se arreda dos nossos passos discursivos, talvez seja um bem operativo encontrá-la em objectos que desafiam a sua (eventual) absolutista delimitação.
A grata oportunidade de ouvir, neste segundo concerto do ciclo da Culturgest “Os Filhos de Abraão”, Jean-Paul Poletti com o seu Coro (dizia-se, de homens, sete) de Sartène, vila corsa onde estabeleceu oficina de lavores musicais, revelou-se pois não só um acontecimento solene de comoção musical, como um exemplo de mansa mas inequívoca diluição daqueles imperativos absolutistas de apreciação musical.
Formalmente, o trabalho de Poletti com este coro, alimenta-se ao tutano da tradição oral corsa, mas não se encontra cerceado pela sua estrita reprodução. Antes labora sobre a sua arqueologia formal, ampliando a sua reverberação emocional. Tecnicamente, se não nos passou nada ao lado, apenas a inicial «E Muntagne D’Orezza» foi cantada na logística tradicional da forma musical paghjella a três vozes, e cerca de mais duas canções o foram a quatro. A larga maioria do repertório é pois “orquestrada” numa amplificação coral, abrindo mais os espaços e possibilidades da polifonia tradicional, mantendo-lhe largamente, não obstante, a estrutura formal. Igualmente, parte dessa abordagem zelosamente expansiva daquela base fulcral se denota no facto de boa parte do material resultar de um trabalho composicional de Poletti sobre melodias e fragmentos tradicionais e populares, ou em tais inspirado, produto, contudo, muito mais de uma devoção aos resquícios de uma tradição oral, que da ambição de a empregar como recurso para outra forma de expressão.
A genuinidade e pureza que daí resultem, portanto, não se confundem com, nem reclamam, qualquer mito das origens (embora de um substrato cultural de identificação se nutram), mas revertem para a inventiva que, ora como dantes, subjaz à enraízada transplantação de uma identificação emocional. Não por acaso, cada peça é intercalada com uma explicitação, ora contextualizante, ora poetizante, de Poletti, sobre o manto histórico e sentimental que sustem o relevo daquela expressão.
Nesse lavor de pormenor sobre a expressão musical de raiz ou inspiração popular e tradicional, vai-se pois materializando uma atmosfera de envolvência que cinge quem nela respira. Quase todo o tempo, a corporalidade e dedicação da(s) voz(es) têm algo de um acometimento basilar e ritual, como que depurando e extremando a identificação dos canto aos seus cantores, dada a própria natureza temática que remete para identificações situadas. Tais tanto remetem para o substracto quotidiano do canto, seja numa dimensão de memória histórica (como uma canção de embalar oriunda das experiências da I Guerra Mundial), seja numa dimensão funcional (como numa cantiga festiva, ou de socialização cultural das crianças à dicção para o domínio do canto tradicional), como remetem para a inextricável presença da religiosidade nessa vivência, sedimentada pela presença de séculos de uma comunidade franciscana em Sartène. Dessa enraízada emanação, este esforço centra-se em constituir uma imagética exaltante de experienciações subjectivas devolvidas enquanto arte partilhável. Para lá de um arranjo cénico de simples projecções, em geral evocando envolvência religiosa (como vitrais), temática de boa parte das canções (aliás, várias precisamente em latim enquanto língua litúrgica), a apresentação cenográfica dos corpos desenrola-se num movimento constante entre sombras e espaço iluminado, como se ao deslocarem-se para a luz esforçassem a iluminação emocional do canto por entre a clausura dos seres por exprimir.
Por essa visceral entrega à partilha de palavras e melodias feitas carne na vida de quem as ora, se concebe a pureza destas oferendas. A sua apresentação foi “tecnicamente” perfeita? Nem tanto. As polifonias não foram sempre, sempre, perfeitamente timbradas, nem ritmicamente consonantes (aliás, nem tal é da sua forma popular). As vozes individuais, ao ser-lhes dado protagonismo, revelam-se desiguais, com um tenor a destacar-se claramente na projecção e domínio vocal (dois, na verdade, mas o outro “tenor” descobrimos, ao ressoar no final, habitar anónimo uma ala da plateia). Isso importa? De todo... Dentro da calibrada harmonia a exponenciar a expressão do ressentido, entre a suspensão como pó nos feixes de luz de catedral e o dramático ou jubiloso estrépito, a margem do canto cumpre a devolução transfigurada da emoção de um corpo que ressente o que canta como o tacto na pele. Não é por acaso, e não é todos os dias, que num dito “concerto” (é veramente mais do que isso que se trata) se comunga disto: um dos baixos encarna uma canção (aliás, fora do programa) com todo o ser no timbre pungente; ou um tenor beija o cruxifixo depois do canto de uma Ave Maria, e limpa uma lágrima depois de um tema intitulado (identificação nacional oblige) Terra Mea; ou se abre o canto à plateia, como explanou Poletti, reproduzindo o seu gesto de partilha do canto em cerimónia litúrgica, algo intrínseco à vida musical do Coro em Sartène, fazendo entoar a palavra, precisamente, canto. Assim selava, simbolica e materialmente, com porventura o gesto primordial, a união que num encontro de vontades e espíritos se congrega, e que, nutrida do verismo dos nossos apegos encarnados, nas suas também polifónicas virtudes e feições na pluralidade dos seres, pode, como a homofonia de “Choeur” incessamente sugere (concedamos-lhe), num momento maior, elevar tantos e diversos corações.»