segunda-feira, 13 de fevereiro de 2006

Nova (velha) litania para velho (novo) instrumento

«A guitarra clássica é um instrumento que, apesar de todos os seus famigerados renascimentos, em diversos séculos e espaços, se manteve, e provavelmente se manterá, num espaço secundário de produção musical erudita, em paralelo com o seu extenso papel lúdico (e impulsionador da história da música popular) de pôr taralhocos a pretenderem ser génios musicais por saberem arranhar três acordes e por seu intermédio galarem as miúdas do bairro no parque da cidade, pois que os vãos de escada já eram (e o mais bizarro é terem, de facto, assim surgido uns poucos génios, mas isso é noutras conversas, e francamente duvidamos que se trate do mesmo instrumento). E se é verdade que (vejam-se os nomes que vão surgindo a bom ritmo nas edições de guitarra da Naxos) começa a parecer haver alguma massa crítica de instrumentistas com capacidades técnicas suficientemente apetecíveis para arregaçar as mangas e dar vida a uma ampliação da literatura musical outorgada ao instrumento por uns poucos, benfazejos, compositores, a renovação do repertório guitarrístico é de uma lentidão exasperante. Edições sobre edições das mesmas obras são regurgitadas sobre os escaparates, num exercício autofágico de redundância instrumental. Tamanha a redundância, que não só os mesmos compositores são recorrentemente re-gravados, como são apenas específicas obras do seu repertório que ressurgem. Do compositor sobre o qual aqui nos debruçamos, e falando apenas de concertos para (uma) guitarra, por exemplo, apenas nos recordamos de uma gravação do seu Concierto Para Una Fiesta, pelo bendito David Russell. É óbvio que há uma selecção natural do repertório que o instrumento vai agregando, mas exercida ao limite leva à extinção, pelo que cautelas na estratégia editorial que tem marcado a história do instrumento seria aconselhável para garantir a sua sobrevivência em meio onde os restantes instrumentos clássicos conhecem maior abundância, visibilidade e qualidade de produção.

E, no entanto, é de uma re-gravação de aqui falamos, e logo de campeões de re-gravações: Rodrigo e os seus Concertos para Guitarra, o de Aranjuez em primeiríssima linha, e a Fantasia Para un Gentilhombre.E se falamos desta re-gravação, é porque também as há que valham a pena, quando as versões que estão disponíveis são, essas sim, propriamente, reedições, dos guitarristas canónicos do “ressurgimento” da guitarra no século XX, mas que, francamente, face à extraordinária, conquanto muito subterrânea, renovação da técnica guitarrística nas últimas décadas do século (caso singular que expressa o quanto, e em quantas vertentes, o instrumento depende da disposição corporal do instrumentista, na sua extrema “fisicalidade”, dada a precaridade extrema da produção e projecção do som) de canónicos, actualmente, não têm (ou não deviam ter) assim tanto (resguardada, obviamente, a sua vital importância histórica, da qual, no limite, este texto dependerá, tal é a contingência da existência pública do instrumento). O facto, fenómeno provavelmente inaudito no reino instrumental, é que boa parte das aproximações instrumentais ao repertório canónico da guitarra estão hoje consideravelmente datadas, quer pelo monstro-sagrado-acima-de-todos-e-ai-de-quem-lhe-toque Segovia, quer pelos seus discípulos, como os monstros-sagrados-mas-não-tanto Julian Bream e John Williams, que até se desligarem da sua estrita influência também produziram gravações hoje algo daninhas para o tímpano (e referimo-nos explicitamente a coisas como o absoluto abuso, quer em quantidade quer em qualidade, de timbres metálicos, que, se teoricamente fazem todo o sentido na complexificação interpretativa da dinâmica musical, eram reproduzidos num estridente, insensato, desproporcionado e discricionário assalto aos sentidos).
Assim sendo, de novos guitarristas canónicos se carece, para darem a frescura, apuro e esmero assisado que o repertório do instrumento, há tanto re-gravado, merece. Ora, pequeno problema, guitarristas canónicos (o mesmo é dizer GRANDES guitarristas), não há provavelmente nem meia dúzia hoje (pelo menos, por enquanto). Pelo que é sempre de saudar a revisitação que esses poucos façam deste repertório, para criar novas gravações de referência para gerações futuras.
O cubano Manuel Barrueco é, diríamos, o guitarrista por excelência da perfeição canónica. Tocando numa guitarra que certamente deve ter as cordas numa tensão impossível que quase nos deixa incrédulos quanto à possibilidade de ainda fazerem vibrar as notas, Barrueco é o guitarrista que mais respira técnica no seu toque. As suas gravações são exercícios irreprensíveis de restituição fiel das possilidades estritas desenhadas por uma pauta. Ou seja, se na generalidade, para milagres interpretativos que apelam mais à transcendência que à demasiadamente humana produção de som guitarrístico, os santos da casa são mais um escocês chamado David (Russell), e dois brasileiros chamados Sérgio e Odair (Assad), no seu auge; para a constituição de um cânone (que implica a possibilidade de reconhecer na interpretação as possibilidades de uma pauta – pedagogia instrumental), Barrueco é capaz de ser o nosso homem. Não se retire daqui que a criatura é um robô instrumental que, em fabulosa técnica mas despida interpretação, regurgita pautas. As suas leituras são sempre do mais justo e adequado que uma pauta oferece. Não são portanto leituras que tenham por fito alcandorar-se a “excessos” interpretativos que “borrem” aquilo que uma composição, nos seus estritos limites, pressuponha. Não é pecado, é estilo musical. Há quem reze por um, há quem reze por outro, nós rezamos pelos dois, conquanto os fantasmas do virtuosismo estéril e do romantismo trapalhão estejam exorcizados. Nestes maravilhosos quatro, estão-no.
O caso deste disco é um pouco mais complicado, porque para concertos de guitarra o guitarrista não se basta: esse facto podendo explicar como é que a aproximação de David Russell aos concertos de Rodrigo resultou numa desilusão, quando a orquestra que o suporta é remetida para um desvanecido pano de fundo, fazendo desaparecer as dinâmicas de integração da guitarra com as intervenções orquestrais, que é a base de um concerto – pedir a um instrumento, e logo a guitarra, que aguente sozinho um concerto às costas é um absurdo interpretativo que estragou uma gravação de um guitarrista que merecia o melhor. Ora, surpresa nossa quando aquilo que se parece configurar como as irritantes operações de charme editoriais de juntar artistas (e nem estávamos a pensar nos três tenores, mas calham bem), neste caso emparelhando Barrueco com o famigerado Placido Domingo, resulta, mais uma vez (o homem não falha, nem acompanhado) na melhor gravação do Concierto de Aranjuez e da Fantasia Para Un Gentilhombre que conhecemos. De facto, surpresa absoluta, a julgar por esta gravação, Domingo, no papel de maestro, revela-se de uma sageza e justeza imprevistas. As dinâmicas emparelhadas da guitarra e da orquestra estão no ponto certo, e se por vezes suspeitamos que a guitarra podia estar um pouquinho mais alta na mistura (problema quase insolúvel num concerto para este instrumento), a verdade é que a respiração da dinâmica orquestral praticamente justifica que a guitarra não seja exposta a uma presença demasiado óbvia nessa dinâmica, tendo o seu brilho justamente resguardado em secções determinadas, onde Barrueco é estonteante como sempre, até nos pormenores: vibrato como aquele que adorna a última nota que em pausa prepara a escala que levará ao final do andamento Canarios da Fantasia, é uma raridade preciosa (ouçam o vibrato e também percebem que “canarios”, aqui, pode ser tomada mais à letra que como citação de dança popular).
Guitarrista e orquestra (e maestro) complementaram-se pois perfeitamente nesta gravação, de ambas as peças, e, para fazer charme, complementaram-se também guitarrista e tenor em quatro canções adaptadas para guitarra e voz, em que Domingo pôde explanar um pouco o seu charme de tenor (há que fazer pela vida e pela sedução...). Canções que a guitarra de Barrueco, mais uma vez, sustenta com gabarito impecável, num registo instrumental que não é comum, mas que até tem bons pergaminhos. Neste caso, são canções reminiscentes da veia mais popular de Rodrigo, quer no tom quer na lírica, de encanto melancólico, a exprimir as cruezas e evasões que neste tipo de lirismo popular desenham um universo de esperanças e fatalidades.
Para exprimir também em pleno a singularidade do guitarrista, temos o bónus de duas peças para guitarra solo de Rodrigo, também muito pouco gravadas (é mesmo a única gravação que delas conhecemos). A evocativa e simples Zarabanda Lejana, a primeira peça do compositor para guitarra, a descortinar na sua transparência alguns dos procedimentos tonais que sustentariam igualmente alguma da sua obra mais complexa. E nesta se inclui a tipicamente à Rodrigo Un Tiempo Fue Itálica Famosa, com as suas escalas impossíveis a rasgar a lacónica exposição temática que lhe dá o seu chamariz recôndito e sedutor, em figuras repetidas em tensão e crescendo de melífluos ligados e inquietos staccatos, que abrem para uma secção intermédia em que os breves rasgueados, se conferem solar exposição ao ouvinte, são por Barrueco inteligentemente matizados na luz nostálgica de «um tempo que passou», conferindo-lhe tanto a carnalidade da rememoração como a consciência da distância da Itálica que un tiempo fue. Um belo exemplo do universo pictórico de contrastes de habita a tensa música de um compositor que, se se afirma como melodista numa postura algo neo-clássica nos seus concertos para guitarra, não deixa de se afirmar como homem do seu tempo, quer na inserção estratégica de algumas dissonâncias no discurso mais romântico (uma nota “errada” pintalgada aqui e ali para quebrar a clássica perfeição harmónica), como nestes concertos, quer na composição de peças cujas ressonâncias convocam universos composicionais e sonoros de diversa proveniência, desde um certo impressionismo, em certa obra pianística, como recursos evocativos do duende do flamenco na técnica das suas singulares obras para guitarra solo, e motivos populares e da tradição musical espanhola, como no caso da Fantasia Para Un Gentilhombre, as citações seiscentistas dos livros de danças populares de Gaspar Sanz (que partilha a honra de Gentilhombre dedicado do concerto com Segovia).
Por isso, por favor, quando virem nas secções instrumentais de guitarra a enésima reedição do Concierto de Aranjuez pelo Narciso Yepes, fujam a sete pés e procurem, peçam, exijam esta edição (bem como qualquer outra do senhor Barrueco – é infalível, e parte delas já estão a preços simpáticos, ainda que não saibamos se esta também – Placido oblige). E se julgarem que não faz diferença, vão depois à biblioteca municipal cravar uma edição à Yepes, e se a vossa opinião se mantiver, e nós nos tornarmos bilionários, devolvemos a diferença ao primeiro leitor que se queixar (sendo que, provavelmente, ó absurdo, as edições à Yepes nem sequer estão mais baratas que esta – se for o caso, é só ganhar).»

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