Subversão cultural (2) - a ironia serve-se aos pacotes
Delineam-se estratégias ao milímetro para romper as convenções estabelecidas de práticas sociais aceitáveis em recintos culturalmente marcados e... antecipam-se a nós. Ou quase.
Recapitulemos ida estória em nova ocasião: Cinema de mega-centro-comercial. Sessão da meia-noite. Jarmusch no cilindro. Entro na sala e a esperada solidão é logo desenganada por uma casal amoroso. Horror: pacote de pipocas! Um casal a ver Jarmusch armado de pipocas. Lá se foi (pensava eu) o meu brilhante programa revolucionário de ver no cinema um Oliveira e comer pipocas (ainda que o gesto não seja o mesmo com Oliveira e o Jarmusch, mas era próximo q.b.). Sento-me à distância possível entre conservar a centralidade do ecrã e evitar o mascar baboso daqueles atentados sonoros.
Logo entra um grupo de adolescentes daqueles que ainda não deviam ter idade para serem como tal classificados e que deviam estar a ver pela segunda vez o King Kong. Espanto. Horror multiplicado: sentam-se ao meu lado! Horror repetido: mais pacotes de pipocas! Um juvenil planta-se exactamente na cadeira ao lado da minha e começa impudicamente a violar-me os ouvidos com os movimentos obscenos do maxilar a trabalhar o milho estropiado. Lamento. Todos traçamos a linha algures. Pipocas a trespassar-me o canal auditivo transfiguram-me. Adeus polida aparência de ser polido. Levanto-me. Vou sentar-me no fundo mais fundo e isolado da sala. Não tão isolado quanto isso.
Começa o filme. O casal amoroso? As pipocas são o menos. Passados minutos continuam a falar tão alto quanto falavam antes de as luzes se apagarem. Brincam entre eles e com as pipocas como se estivessem no sofá em casa. Aposto que iam para este filme na esperança de se apanharem sozinhos e trepar na sala (fraca transgressão...). Espero mais cinco minutos para confirmar a certeza antecipada de que se não vão calar e para preparar uma frase brilhante e indisputável para que no cristalino mundo da retórica eu saia a ganhar alguma coisa mesmo que continuem a falar depois da minha admoestação. Já chega (já decorei a frase). Levanto-me. Coloco-me, paternalista, no interstício das suas cadeiras a fazer aperceber a minha cabeça pela abertura, com os braços simpaticamente ameaçadores envolvendo as cabeceiras das poltronas gigantes. Inicio a brilhante récita: «Oh meus amigos...» - e ah!, sou brutalmente interrompido pelas suas falas extemporâneas «ah, sim, sim, desculpe». Bestas (a melhor frase que nunca direi jogada no lixo... conteste quem quiser...). Se se quisessem mesmo desculpar ouviam a palestra até ao fim e DEPOIS desculpavam-se. Era a mínima penitência aceitável. Camelos. A vossa pretensa solicitude não me engana...
Os outros descendentes de primatas vão fazendo os seus barulhos, mas na arquitectura da sala estou minimamente protegido por um canto para não ter que fazer a missão civilizadora de os mandar calar (civilizadora precisamente porque de antemão sabida inoperante - a reiteração da regra, não da conformação à mesma).
Passado uns minutos, o casal amoroso levanta-se e vai postar-se umas quantas filas à frente. Não se deviam conseguir conter. Há gente que não vai mesmo ao cinema para ver cinema (uma demarcação socio-espacial não regula todas as práticas e utilizações que dela se usam).
Assim se pranta o panorama para ver a hora de filme que me resta, com a porra da luz de saída a espetar-se na periferia da minha retina direita. Animais.
Quedou-se-me desta provação a manutenção da validade específica do meu programa de subversão cultural: esta gente veio ao engano (dessa intenção), e as pipocas não eram o instrumento revolucionário mas o marco de denúncia do seu equívoco: o casal sai da sala meia-hora antes do fim (se tivesse acabado o meu discurso censório ao seu palranço poderia presumir terem ficado insuportavelmente cobertos de vergonha até cederem ao peso do meu olhar reprovador atrás de si instalado, mas não foi o caso...). Os demasiado pré-adolescentes aguentam até ao fim (valentes, ou como eu querem ter their money's worth, seja lá o que for, tal como eu aturei as 3 horas do Kong). Mas o alívio da minha previsão cultural vem sob a forma de comentário jocoso: «oh sim, este vai mesmo para os Óscares». Ah, grunho demasiado seguro de ti, por uma vez a tua incontinência verbal prestou serviço ao mundo. Mas para quê testarem a minha pachorra para chegarem à conclusão que eu previa quando os vi envergando os pacotes? Eu podia tê-los avisado... É no que dá brincar aos elitistas de pacotilha na periferia. Mas no cerco incontornável da previsão não há manobra para a mudança e a iluminação (que eu sei, que tive também por vias travessas). Por isso, num fundo muito recanto recôndito da mente, suponho que não faço questão de ter a sala da meia-noite só para mim (a racionalidade quase só nos outorga tormentos).
6 comentários:
Arrepiante meu caro Júlio! Compreendo o teu sofrimento e imagino-te irritado, já desconcentrado do filme, angustiado nos silêncios à espera do próximo crunch na pipoca ou cometário em voz alta. Quanto às conversas nada mais há fazer para além do que tentaste (pelo menos sem teres problemas com a justiça)(tb odeio quando as pessoas se desculpam de forma delicada, bem educada e desarmante de um acto de má educação. Se é para serem grunhos, sejam coerentes). Quanto às pipocas, compreendo-te bem. Por estas bandas é mais do que normal. Como tb não passam filmes de grande qualidade e não posso vencê-los, junto-me a eles, de saco salgado à frente (eu lembro-me dos meus discursos, mas estou em Roma e prefiro ser romana do que abdicar do cinema, e quando crancho nas pipocas, não oiço os crunchs alheios). Como para ti esta estratégia será demasiado violenta, podes sempre experimentar sentar-te na cadeira com um saco de diospiros, ou melhor que isso, maças verdes. Podes não ver o filme, mas certamente conseguirás irritar mais os outros do que eles a ti.
Humm, o sorver javardo do diospiro e o derramar javardo dos sucos era capaz de ser bastante eficaz. Claro que para empregar tais estratégias tinha que desistir de conseguir ver o filme na mesma. Dilemas, dilemas.
Qual derramar javardos sucos??? Já viste o javardo barulho do trincar de uma maçã verde quando está tudo em silêncio? É a verdadeira vingança, porque incomoda toda a gente, com excepção de quem se lambuza. Estudei durante muitos anos ao pé da minha irmã e sei o quando isso pode irritar um ser concentrado e em silêncio. Comer maçãs só em hora marcada e em simultâneo, a menos que seja uma provocação de guerra.
Pois, eu não suporto ouvir gente a mascar seja o que for por isso essa diferenciação não me é particular sensível. Às o mais subtil até pode ser o mais irritante. E não gosto de maçãs verdes. Pelo que... pelo que... pois.
Esquisitinho!
You said it!
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