segunda-feira, 3 de abril de 2006

Oh, hobbits make nice music too

«Às vezes vale a pena esperar. Às vezes vale a pena deixá-los esforçarem-se, só mais um pouco, mais um bocadinho, e pode ser que cheguem lá. Não convém dar-lhes ilusões antes de lá chegarem. E como é que eles se sustentam até lá chegarem, é matéria que já nos escapa. Mas como até quem lá chega tem muitas vezes que continuar a comer papas de milho ao jantar, terá que haver outro tipo de recompensa que nos transcende.
Para estes moços, que na verdade é um e venham os mais cinco que estiverem na cercania, haverá certamente outra recompensa que no íntimo reclame. Porque andar com a carrinha com os pneus em baixo para fazer um gig num bar perdido no Texas e desesperar para marcar concertos com promotores indolentes, é só para os dedicados que se auto-sustêm. Ou seja, é verdade, Mike Sary, baixista e senhor French TV himself, chegou lá, provavelmente demorou seis discos a fazê-lo, e não lhe adiantou de nada. Nós, oportunistas com sentido de risco assisado, atiramo-nos ao sexto quase de cabeça, e ficamos a ganhar. O risco era precisamente o opus 5 do cavalheiro, que francamente nunca por nunca prometia este salto qualitativo (tanto o não prometia que cometemos o abuso de presumir que o que está para trás também não seja relevante – mas podemos estar errados, e deve-se assumir essa possibilidade). Algo se deve ter passado, e só Sary pode dizer o quê. Intestinal Fortitude (o tal 5) não aquecia, exasperava, em digressões instrumentais algo insensatas (com vocalizações ainda piores), sem grande sentido de integração composicional e tematizações trôpegas, com guinadas gratuitas cuja intenção lúdica se quedava apenas annoying, e claro, com condições de produção a condizer, como aqueles sintetizadores que deviam estar no caixote de lixo da história e do beco. Nesse sentido, o título do brilhante opus 6, “The Violence of Amateurs” até cairía bem ao opus 5, se o seu título “Intestinal Fortitude” não fosse já interpretável como demasiado gráfico quanto ao seu conteúdo (nem nós íamos tão longe... que artista tão auto-crítico é Sary...).
Como, mas como é que passa para The Violence of Amateurs é mistério que só lhe fica bem. E como é que susteve “carreira” que lhe permitisse chegar ao sexto disco é empreendedorismo que consegue ser quase dignificante dos fracos resultados que (eventualmente) até aí produziu.Factor (positivo) estranho para quem aborde à primeira distraída audição esta música, Sary é um ávido conhecedor e coleccionador de progressivo. Basta dizermos que a matriz instrumental do álbum e a sua solidez composicional e improvisativa conseguiram que só quando a dado passo se comete o give away de juntar uns acordes de sintetizador já um bocado passado pelo meio é que os censores do “eh pá, isto é progressivo” a partir do conhecimento básico (no mau sentido) dos seus clichés se apercebem do logro.
Progressivo, smchogressivo, isto é música de altíssimo gabarito. A agilidade das cambiantes rítmicas e temáticas tornou-se de um organicismo impecável. A dinâmica improvisativa desenvolve-se airosa balizada pelas irrepreensíveis, mutantes e estimulantes estruturas composicionais. A controlada diversidade de registos torna-o imune aos clássicos resmoneios aos solos derivativos.
Num álbum que, se quisermos classificar “progressivamente”, é marcado por dinâmicas vagamente canterburianas e vagamente RIO, a conciliação das duas resulta brilhante e altamente produtiva para os eventuais excessos ou fechamentos de cada uma isoladamente (se bem que tenham sido ou sejam das correntes mais produtivas e estimulantes do género). A parte RIO é a mais devedora do sentido lúdico da família dos agrupamentos de Lars Hollmer. E é curioso que o único ponto fraco do disco seja aquele onde fazem a vénia directa ao mestre, com uma cover de Joosan Lost/The Fate dos Zamla Mammas Manna, que francamente podia ter economizado 10 minutos de estética noise ou free não muito conseguida (felizmente está no final, para não assustar audições iniciáticas). Mas a inspiração indirecta faz maravilhas, agora que o lúdico e o circense se incorporam em matriz de gestão assisada evitando o grotesco e o gratuito dessas expedições. A veia canterburiana surge pela mesma sensatez controlada, e dando asas à imaginação na melhor veia da corrente que era não o descambar em solos meio FM, mas o incorporar a dinâmica instrumental naquela jazzy quirkyness temática (de perfeita imbricação rítmica, harmónica e melódica) que fazia a surpresa e frescura de Canterbury no seu melhor. Neste caso, quirkyness (é que não há tradução...) levada até territórios extra-musicais, com as incursões literárias de Sary nos livretes dos CD’s a pintar retratos sarcásticos das margens do real musical e político, fazendo uso sarcástico da sua condição de outsider de qualquer circunscrição.
A primeira faixa, parece quase uma provocação, ao pegar nos fetiches sonoros centrais mais circenses, quase a relembrar o esforço anterior dos French TV, e em 4 minutos condensá-los e fazê-los resultar sem quebras obtusas num exercício bem sucedido de musical teasing. Para que não restem dúvidas, Zappa também passou por aqui.
O humor, aliás, passa muito por aqui, mas como atitude intrínseca e escorreita, quase de bonomia, sem puxar pavlovianamente pela coisa, em inúmeros fragmentos, como a marcha inicial do segundo tema, espécie de Ponte sobre o Rio Kwai de exército prestes a descambar (e descambará) ao efeito de desbunde das brocas aspiradas na caserna. Ao que se segue inspirado e sincopado tema (aqueles sopros no ponto groovy) que dá o tom da classe deste disco que consegue não se levar a sério de forma seriamente competente.
Todo o álbum, e cada faixa, incorpora um caleidoscópio de inspirações sem esfregá-las na cara do auditor, passando pelo discreto sabor latino do início da quinta faixa, ou o subtil lounge jazz do início da quarta, sendo que cada uma jamais fica refém dessa primeira exposição temática (por isso não se assustem com a descrição, como ela parece requerer). O equilíbrio simbiótico entre temas constantemente sucedâneos e reconfigurados, irrupções inesperadas em surpreendente consonância estrutural, uma riqueza textural de apontamentos instrumentais a subtilmente estruturarem a percepção dos temas, são virtudes constantes em toda esta digressão, que merece os nossos encómios, sendo que a prodigiosa vitalidade temática e seus sabores exquisite conseguem integrar e dinamizar de forma exemplar as prolixas digressões intrumentais e improvisativas de cada faixa. E para quem os tenha visto em Gouveia em 2005, apaziguamos as reservas ao anunciar que a diversidade instrumental do álbum faz empalidecer a relativa pobreza tímbrica que os French TV em trio solitário e depauperado trouxeram cá ao vivo, não sinalizando convenientemente a densidade estrutural das composições.
Mike, podes ter massacrado a (pouca) gente que te tenha ouvido até então, e principalmente a ti próprio, e podes não ter, agora que o mereceste, mais gente a dar-te ouvidos. Mas, pela nossa parte, a esta distância dizemos-te: valeu a pena. Da próxima vez que nos calhar um disco esforçadamente mau na grafonola, prometemos, a nossa reacção será: dá-lhes tempo.»

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