segunda-feira, 17 de abril de 2006

Absoluto Relativo Da Carne

Tudo é relativo, os nossos corpos apenas podem um tanto. Sabemo-lo, desgostamo-lo, a espaços, à exaustão, excepto se o confortável cinismo já nos atapetou o chão. Mas para quem reteve nas entranhas a porta aberta para o espanto, certas experiências subjectivas que nos devolvam os cumes de outras percepções tomam um carácter de vontade de dizer absoluto e espoletam expressões que reclamam da objectividade que na edificação de uma subjectividade se funda (e se pode entender e crer partilhado: o absoluto não pode ser enunciado sem cautelas epistémicas mesmo com toda a carne investida na sua dicção).
Precisamente desse patamar, objectivo e desautinado, que reúne e transcende tais contrários, hoje, uma semana depois, ainda titubeante, vos digo: não se viveu sem se ter assistido in the flesh a recital a solo do Hammill. Três condições enunciadas, note-se bem (quatro, na verdade - é preciso tê-lo incorporado até às estruturas subatómicas para se perceber a dimensão disto, apercebi-me, quando alguém se riu numa fila atrás de mim do excesso que necessariamente envolve o estrépito gelado para o mistério da existência corporizado num vibrato agonizante).
Para esta experiência não há substitutos nem sucedâneos (bootlegs, DVDs ou CDs ao vivo - e isto não tem nada a ver - tendo tudo a ver - com uma das carreiras discográficas mais complexas que já se viu: isto, do que tentamos organizar umas palavras agora, respeita à carne absoluta). É escusado buscá-los, o cinismo iria larvar (acreditem em quem absolutamente vo-lo diz, quase cinicamente preparado que ia para um encontro simbólico com quem cria já ter incorporado nas suas possibilidades expressivas ao limite. Grato equívoco, grata dúvida, grata dedicação: mesmo a decair, fui - isto é uma lição).
Nada se lhe compara, no que é. Ninguém tem na voz cada nervo do ser e o faz ecoar; ninguém deposita a precisão de uma emoção em cada momento em que a enuncia; ninguém reinventa a cada segundo (isto é literal) o dizer de uma canção, que julgávamos já perfeitamente lapidada, de acordo com o ressentir absolutamente presente do seu âmago; ninguém transtornou a voz à expressão lancinante (no desespero, inquietude, resignação ou pacificação) de cada movimento da carne que sente. Só este homem. Só cara a cara. Só um piano. Só uma guitarra. Este homem, perturbante até na frágil compleição, na face da devastadora tempestade que incorpora e solta nos limites (porque há vários, do urro ao sussurro) do suportável pelo arcaboiço do corpo.
Este pedaço de cínico (eu) de uma só barbacã vo-lo testemunha e confessa, ainda desarmado, no que se chame espírito, pela mão inesperável do inaudito. Salve essa brecha. À cautela de categorias incomensuráveis, ou por réstia de pudor, só digo que não se descreve o que significa poder, por um instante (a latejar-me no corpo, na recorrência de novas formas, tudo o que tornava irracional essa esperançosa ideia), dar pleno sentido às palavras que ecoaram numa das poucas canções que eram menos meu património (preciosa ironia), e cuja memória, mesmo na constância da mesma danada conjuntura, na lonjura do tempo ainda me impele a reavivar:
no, I'll never find a better time to be alive than now.

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