terça-feira, 14 de março de 2006

Guita(rgh)mania

«Concertos de guitarra clássica são dos espécimes musicais mais rarefeitos cá da praça, pelo que esta série de concertos organizados em Festival Internacional e Concurso de Guitarra Clássica pelo Instituto Piaget em colaboração com o CCB foram um presente mais que bem-vindo a esses desvalidos audiófilos da guitarra. Os nomes apresentados não foram os da primeiríssima linha do instrumento, mas prometiam-se bem apreciáveis. Vejamos pois o que nos tiveram a oferecer nestas noites.

O grego Costas Cotsiolis inaugurou os concertos no CCB, com um programa bastante contemporâneo, mas já firmado no universo da guitarra. Aparentemente senhor de reputada potência técnica, Cotsiolis parece infelizmente reservá-la para exibir dotes musicalmente espúrios de velocista. De um programa sedutor, resultou um panorama desequilibrado principalmente devido aos espaços que Cotsiolis buscava incessantemente para dar azo aos seus desvarios: uma qualquer escala parecia suscitar-lhe uma incontrolável pulsão para o virtuosismo, resultando na generalidade das peças num descalabro dos tempos, quando não da própria inteligibilidade da peça. A espaços, deixa de se ouvir notas para se aperceber apenas movimento amorfo. O segundo andamento do Elogio de la Danza de Brouwer, com a sua cativante persuasão rítmica, ficou descaracterizado, as peças de Piazzolla (Campero, Milonga del Angel e La Muerte del Angel – a segunda na transcrição de Baltazar Benitez, e a última na de Brouwer, facto lamentavelmente não registado no programa nem na folha do concerto, tanto mais lamentável quanto são transcrições com muito de apropriação autorística das mutantes formas em que ao longo da carreira Piazzolla moldou os seus temas) resultaram trôpegas na má gestão da sua idiossincrática amálgama (por vezes uníssona) de ímpeto e lirismo.Nas peças de linguagem mais contemporânea, foi onde a estratégia de Cotsiolis teve menos possibilidades de fazer estragos, quanto mais não seja porque o seu imediatismo no receptor é menor para se aperceber dos danos à fluidez do discurso musical. Os quatro fragmentos de “Epitáfios” de Theodorakis e a endiabrada “Sonata op. 47” de Ginastera terão sido o mais conseguido da performance. Incompreensível, até para um presumível tecnicista, a opção, no último andamento da belíssima “Koyunbaba” de Domeniconi (que no seu fechamento compositivo e técnico estava a sobreviver aos atentados de velocidade de Cotsiolis), de arruinar a filigrana finamente urdida dos rasgueados por um terramoto indiferenciado de ruído no emprego dessa técnica, a destruir por completo os ressaltos melódicos e rítmicos que faziam o seu sortilégio. Um final desiludido para um concerto interpretativamente equívoco. O pretenso virtuosismo velocista continua a fazer estragos.


Já a prestação do Duo Kontaxakis-Ivanovich primou essencialmente pela segurança da performance: não é por acaso o reputado dito de Chopin de porventura só duas guitarras soarem melhor que uma – duas ancoram a audição de forma a matizar as debilidades sonoras intrínsecas do instrumento. Apostados numa divisão de repertório entre o clássico/barroco e o contemporâneo, diríamos que foi no primeiro que as virtudes do duo melhor se espraiaram, nomeadamente numa musicalidade que, conquanto apaziguada, nesse registo se degusta com prazer, justa fluidez e articulação. As sonatas de Scarlatti acabaram por soar bem seguras e urdidas, como o material merecia, embora a transcrição ou interpretação tenha abusado de certos floreados, como trilos excessivamente longos que quebravam a continuidade do tempo, dano notório na primeira sonata. A Suite de Händel ressoou em registo contido, contrabalançado pelo “Les Deux Amis” de Fernando Sor, que na típica escrita floreada para o repertório guitarrístico da época resulta bastante bem em concerto, certamente mais do que para ser escutada em casa. Os assomos de virtuoso, em Sor e em geral, foram cumpridos sem excessos, em plena integração na musicalidade da peça, com requinte tímbrico e interpretativo assinalável, resultando num belo exemplo da música de entretenimento que muita dela pretendia ser. A segunda parte do programa, conquanto não quebrando o profissionalismo (nada dispiciendo), não foi tão cativante, pelo próprio programa. De assinalar a coragem de se atirarem à excitante “Tonadilla” de Rodrigo, imortalizada (como sempre) na interpretação de Sérgio e Odair Assad, para a qual (facto assinalável) tiveram unhas q.b., em contexto de concerto, mas que, talvez numa tentativa de distanciação interpretativa daquele referente inultrapassável, sofreu de algumas escolhas dispensáveis: a gestão dos tempos no “Minueto Pomposo”, andamento menos exigente, foi algo infeliz, com uma gestão questionável dos rubatos e dos efeitos de destacamento sonoro, como um emprego desavisado do staccato em certos trechos mais distendidos, e a sua ausência em trechos mais precisos. Aliás, as questões que, por efeito de contexto, mais se evidenciaram na “Tonadilla” de Rodrigo, são algo que toda a performance em geral emanou, embora sem ruína da sua segurança persuasiva. O evitamento de ímpetos na dinâmica do som, criou a espaços uma ameaça de insipidez, mais uma vez evidente na “Tonadilla”: o tema inicial do “Allegro Vivace” carecia de mais sonoridade para que o delicioso contraste sucessivo com o mesmo padrão rítmico em pizzicato surtisse o seu efeito, que largamente se perdeu. Já no “Minueto”, o leito do suave rasgueado na secção central não conseguiu insuflar o contraste tímbrico e épico que a sua escrita convoca, quedando-se meio pardacento e descoroçoante, a pedir outro sopro. Quando o duo se empregue mais na sua existência musical como tal, entrosando a primazia da interpretação como um organismo pleno, cremos que os relevos que por vezes lhes faltaram possam ser desenvolvidos e fazer jus à desenvoltura e segurança técnica que já têm no seu subsolo para fazer crescer musicalmente. Uma mui agradável surpresa, como a paradoxal minudência do nosso comentário a questões interpretativas pode deixar perceber ao olho avisado.

Embora nenhum concerto do programa tenha sido deslumbrante, o de Darko Petrinjak foi o menos bem sucedido. Desde a audácia algo incauta de se atirar de cabeça, a abrir, à transcrição da “4ª Suite para Violoncelo” de Bach, que as debilidades do concerto ficaram expostas, com uma relativa insegurança técnica a pautar praticamente sem disfarce toda a prestação, embora a sua justa leitura do repertório não o tornasse fatalmente penoso. No programa contemporâneo, a que se dedicou na segunda parte, as debilidades amainaram, e deram para ouvir com algum gosto, por exemplo, uma peça de Nuno Guedes de Campos, “Clair - Obscur”, a empregar com alguma galhardia técnicas jazzísticas, como nas suas sucessões de acordes. Contudo, toda a toada do concerto ficaria até tolhida pela relativa debilidade da própria projecção do som e do timbre da guitarra, demasiado indiferenciado e metálico, provavelmente até devido a uma questão de – perdoe-se o tecnicismo... – mau trato da unha. Terá sido efeito do axioma de Segovia de se não poder servir dois amos (Petrinjak é também, ou primeiramente, contrabaixista)? Acomodação de quem, com carreira feita, já se dedica mais ao ensino que à prática instrumental propriamente dita? O nervosismo de que este instrumento é o mais implacável delator? Mistério...

Joaquín Clerch chegou, renomado, pautas à frente, nada contra, excepto quando se apercebe que são provavelmente muleta para quem não fez trabalho de casa. Com um belo som e timbre, e capacidades técnicas a condizer, não se percebe como, também ele a iniciar as hostilidades com Bach, a “Segunda Partita para Violino”, vão aparecendo as inseguranças, as pequenas falhas e, aí sim menos desculpável, as hesitações e os quasi-recomeços. Para quem faz do mister profissão, não é compreensível que se conduza um concerto sem pleno domínio do seu programa, o que parece ter sido manifestamente o caso. Por muito que a espaços a interpretação prometa, o imediatismo da hesitação interrompe a coerência. Já no plano mais picuínhas, mas consequente, é também relativamente bizarro que a este nível se empregue libertinagens do gesto artístico como afinar repetidamente o instrumento a meio de uma peça (por vezes, praticamente no seu término), ou não controlar o bater (sonoro) do pé no chão durante a performance. Para quem desconheça os pergaminhos do cavalheiro, houve demasiado odor amador.De qualquer forma, a segunda parte largamente redimiu-o, seguro, quer nas suas próprias composições (não espanta), quer com interpretações bastante consistentes e finalmente entusiasmantes da bela “Sonata” de António José e a clássica “La Catedral de Barrios”, em cujo prelúdio, Clerch pôde finalmente comprovar proficiência lírica. Um grande concerto a lamentar não ter acontecido.

Infelizmente não pudemos assistir ao último concerto de Dejan Ivanovic com o quarteto de cordas Lyra. De qualquer forma, os méritos do artista já estavam bem firmados com a sua prestação no duo com Kontaxakis, e o programa, fora o curioso (e raríssimo para semelhante formação) Quinteto de Castelnuovo-Tedesco, também não primava, a priori, pelo interesse. De ressaltar igualmente, embora o contexto demasiado informal do auditório do Instituto Piaget onde decorreu não tenha permitido condições humanas adequadas ao desfrute e avaliação condigna da sua prestação (com criaturas a mandar mensagens de telemóvel ao meu lado), a Orquestra de Guitarras dirigida por Christopher Bochmann, que para agrupamento tão singular conseguiu agregar repertório atraente, desde as fatais transcrições “classicistas” (Vivaldi, Händel e Tchaikovsky), nas quais resultou uma certa eficácia insuspeita na tradução da densidade de obras orquestrais para um naipe instrumental de um só timbre; até experiências de agregação solista sedutoras, como a transcrição de algumas das Canções Espanholas de Falla com soprano, e duas adaptações de peças de Pedro Caldeira Cabral (uma sobre o eterno motivo dos Verdes Anos de Carlos Paredes, a outra o “Baile dos Carêtos”), com o próprio em guitarra portuguesa. Com um pouco mais de trabalho na diversificação dos espaços interpretativos dessa uniformidade tímbrica (bem mais exigente do que num agrupamento de diversidade instrumental), e a reunião de repertório direccionado para explorar as possibilidades exigentes que outorgar música adaptada a tão curiosa formação implica, que neste caso ficou essencialmente restrita à peça original para orquestra de guitarras de Leo Brouwer, “Acerca del Cielo”, essencialmente dedicada a uma exploração das suas possibilidades tímbricas (como tal, pelo menos, um bom ponto de partida analítico), pode esta indubitavelmente ser uma experiência musicalmente produtiva, a prosseguir, tentando ultrapassar o estatuto pressuposto de mera curiosidade.

De assinalar igualmente a boa qualidade das prestações dos guitarristas concorrentes na sessão final do concurso de guitarra incluído no festival, de seus nomes Tomislav Vuksic (o vencedor), Tal Hurwitz, Kresimir Bedek, Konstantinos Bouropoulos e Pedro Rodrigues.Somos capazes de vir a ouvir falar dos moços. Todos com variações de qualidade no som, na técnica, na segurança e na interpretação, também todos apresentaram méritos que tornaram a sua audição uma experiência prazenteira de moto próprio, com a qual algumas prestações atrás comentadas bem podiam aprender qualquer coisa, embora também alguns vícios (como os tecnicistas) que amolgaram a prestação dos concertistas também já estivessem em alguns concorrentes bem germinados (não por acaso, júri assisado, foram penalizados por tal). Não é só na formação e em concurso que se tem que fazer valer o currículo.Nada mais a dizer. Excelente e refrescante iniciativa no estagnado panorama da guitarra clássica em Portugal, com o estiolar dos já de si tristemente longínquos festivais, como em Santo Tirso e na Trofa, que em tempos cá trouxeram a nata da nata do instrumento. Venha o próximo.»

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