Space Jazz With Me
« Está assente que o Carlos Barretto é dos contrabaixistas com c grande que dispensam mais adjectivos, por isso já poupámos umas linhas. A partir do trabalho prolixo que tem vindo a desenvolver em parceria com os nada menos estimáveis Mário Delgado e José Salgueiro, têm emergido alguns dos registos mais estimulantes do jazz recente em Portugal, e este agrupamento mais expandido e plural, In Loko, com Bernardo Sassetti, João Moreira e Hugo Meneses, pretende estender esse entusiasmo por mais instrumentistas e tantas outras vias expressivas.
De ambição sincrética no cruzamento de estilísticas, a genealogia do projecto aparece pela linhagem do jazz-rock, mais, diríamos, do que da fusion. Pelo menos, sendo esta entendida como lavra de virtuosismo tantas vezes estéril. Em certo sentido, há muito mais um entendimento musical do trabalho sobre o material e o puro som que está mais próximo da ambiência genésica de “Bitches Brew”. Particularmente assim é, et pour cause, no trompete de João Moreira (em certo sentido, o músico que ali se levou a si próprio mais a sério), num estilo subsumido, algo distanciado, e sim, a dar para o cool, que não deixa de evocar o timbre de Miles Davis. Contudo, num ensemble mais democrático, as equivalências cerceiam o mimetismo, e antes de mais, este In Loko impõe-se, bem mais musculado, como uma máquina danada de groove, desde logo alimentada pela secção rítmica firme de Salgueiro e a variação tímbrica das percussões de Menezes (com o feel das congas a não faltar). As síncopes e sentido de adesão rítmica (típicas das malhas sempre irrepreensíveis de Barretto) tomam as rédeas dos temas, apesar de no seu desenvolvimento a voracidade dar azo a reverberação rock (que só dispensavam a denúncia pelo kitsch das luzes epilépticas), emanações psicadélicas e investigação atmosférica. Curioso, aqui, o scherzo cósmico entre Sassetti no Fender Rhodes e Mário Delgado na guitarra tratada, numa palpável constelação de blips.
Nesse domínio de exploração tímbrica, se não pudemos apreciar plenamente a arte de Sassetti, muito longe da sua contenção recente, foi indubitavelmente lúdico assistir ao prazer visivelmente juvenil com que abraçou a novidade de explorar o teclado futurista e lisérgico do Fender Rhodes, em jeito ora de frenesim harmónico, ora de impressionismo esotérico.
Também nessa sede exploratória, deparamo-nos com a incorporação de tratamentos electrónicos das vozes instrumentais, multiplicando fontes de reverberação e surpresa. A novidade resulta indecisa no juízo: por vezes, o tratamento, pelo menos ao vivo, pode arriscar interferir com a fruição do fraseado, como ocorreu ocasionalmente com a guitarra de Delgado (para nossa particular frustração). Quando é incorporado num desígnio estético peculiar, contudo, os resultados podem ser muito felizes, como quando Barretto (ainda que tendo que compensar a quase interrupção do andamento para ligar ruidosamente o pedal), ampliando em eco a vibração do instrumento, e combinando no uso do arco legatos e staccattos percutidos, transformou literalmente o contrabaixo numa máquina lírica de breakbeats.
Parece razoável, no entanto, antecipar um cuidar mais atento do organicismo da exploração, que não deixa aqui e ali de abraçar estranhamente certas convenções (solo de bateria incluso), e não ligar plenamente o fluir das transições, criando, a espaços, um certo clima de indecisão, que sendo prazeiroso no gozo com que os músicos manuseiam os instrumentos, nem sempre favorecerá a textura da interacção (daí porventura a necessidade ressentida de manter canónicos compassos de improvisação solista), e pode não ser propriamente o patamar de identificação estética com que se querem comprometer. No fim de contas, o cliché cumpre bem o que se oferece dizer: a coisa promete.»
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