A tragédia moderna do indivíduo enquanto compositor - pelo centenário de Shostakovich
«A ideia de vanguarda pode, em termos lógicos, dar-se mal com a pós-modernidade. Mas no receituário histórico que até a esse pôr de pantanas guiou os presumíveis destinos da humanidade, quem do seu beneplácito abandalhado não colheu segue com legado atolado nas presuntivas vias ascendentes de progresso.
Contudo, os criadores podem embarcar com outra fatalidade contemporânea que é a dos juízos morais absolutos (note-se, absolutos) sobre a acção individual em contextos históricos particulares na sensibilidade política hodierna (convocando quase inevitavelmente um anacronismo não só epistemica como moralmente desajustado).
Contudo, os criadores podem embarcar com outra fatalidade contemporânea que é a dos juízos morais absolutos (note-se, absolutos) sobre a acção individual em contextos históricos particulares na sensibilidade política hodierna (convocando quase inevitavelmente um anacronismo não só epistemica como moralmente desajustado).
Shostakovich, na comemoração do seu centenário, é claramente enquadrado
nesse duplo viés largamente constitutivo dos
cânones estéticos. Tal torna-o precisamente um exemplo de charneira dos bloqueamentos e contradições intestinas do juízo estético na edificação do cânone, concepção que pós-modernamente, não nos equivoquemos, segue fulcral na condução da memória historificada.
O que parece ser notório nesse caso, é como o fincar do juízo estético nesses dois patamares críticos sucede em falhar aquilo que faz a singularidade estética de uma voz. Como se situá-la numa matriz de justificação fosse a operação de entendimento estético supremo, a despeito da compreensão da sua matriz de criação, condição daquela singularidade.
A voz de Shostakovich tem, nesses dois planos, sido porventura a mais profundamente polémica. No plano da estética teleológica, não se lhe reconhecendo abordagens da lógica composicional desafiantes do mapa já cartografado pela herança, nas suas criações de maior visibilidade, do sinfonismo romântico, e nem sequer aprofundando novas correntes "disponíveis" a partir das primeiras décadas do século XX, como o dodecafonismo e o serialismo. Dir-se-ia quase, ao ler muitos comentários que se têm produzido a propósito da efeméride, “quem não é atonal, não brinca”. No entanto, fora casos notórios, raros se negam a atribuir fulgor impressivo e original a vários opus da sua produção. A ideia construída de "obra" e de "criador", enquanto entidades homogeneizadas capazes de criar um ícone para a sequenciação de uma linhagem teleológica parece pois ser uma lacuna para a tranquila "reabilitação" de um legado musical.
Contudo, curiosamente, esse facto pode em larga medida ser precisamente lido em articulação com os juízos morais produzidos a propósito da vivência e posicionamento de Shostakovich no contexto histórico da URSS (e é sintomático tal surgir finda a anterior e bem mais translúcida, o que não obstou ser bem zarolha em muitos casos, condenação mais ou menos simbólico, incluindo alguns saneamentos germânicos, dos colaboradores musicais com o nazismo – alguém tergiversou no lamento recente de Schwarzkopf à conta do cartão do partido nacional-socialista?). Denota-se o quanto o juízo moral do indivíduo enquanto criador se torna em casos constitutivamente equívocos matéria de validação de todo o seu legado, não nos termos do quanto o contexto é o húmus de entendimento da criação, mas nos termos conotativos de a criação, independentemente da sua lógica criativa, ser manchada pela absoluta classificação moral do indivíduo. Ora, precisamente Shostakovich representa das mais absolutas negações dessa operação, porquanto o indivíduo se desvela irredutível, na opacidade do contexto que condiciona a sua acção e ao entendimento pretensamente depurado do que seja a sua “vera” subjectividade, à taxonomia geralmente dicotómica do colaborante-opositor. A discussão contemporânea desse posicionamento de Shostakovich enquanto compositor oficial do regime soviético partilha involuntariamente do absurdo gogoliano, no qual, aliás, se banhou. Um pouco de senso weberiano, de entendimento da compreensão enquanto pensar a racionalidade dos indivíduos in situ, bastaria para perceber que uma pretensa essencialidade subjectiva de Shostakovich no enquadramento do regime soviético não poderá ser apreendida – em matéria de facto tanto se lhe conhecem os mais declarados fretes musicais e humilhações públicas (e a integração no aparelho ideológico e até simbolicamente burocrático do regime), como os gestos estéticos temerários, por vezes com claro (até tornado real nas suas consequências) risco político.
A única coisa que se torna óbvia, precisamente em termos estéticos, é que a sua obra brota nas formas díspares que se lhe conhecem (em género e qualidade) em profunda imbricação com as solicitações, possibilidades e condicionamentos do contexto social em que opera. Toda a sua estética não é uma crónica desse contexto mas a crónica das possibilidades e viés expressivos de um compositor nesse contexto. Ora, tal matriz social de composição é aquilo que faz a singularidade e a "anormalidade" do seu corpo de obra, e torna qualquer juízo teleológico do que deveria ou poderia ser um caminho esteticamente inovador inerentemente contraditório, pois pressupõe a taxonomia individualista do génio capacitado para organizar uma nova expressão a partir dos idiomas instalados. O "formalismo burguês" de que foi acusado pelo poder soviético, juntamente com outros compositores contemporâneos, na sua subjugação à funcionalidade da propaganda ideológica, é a ilustração eloquente dos limites constitutivos da sua voz.
Quer pelas teleologias estéticas, quer pelas avalizações morais de um indivíduo, é frustrante perceber o quanto se conforma um quadro que por duas vias deixa escapar precisamente a singularidade de uma obra enquanto criação individual necessariamente situada. Não particularmente quando essa localização lhe impõe uma lógica instrumental (seja para contrariar ou servir um condicionamento: e as encomendas de regime podem, no seu claro primarismo contrastante com as possibilidades de composição que outras obras outorgam ao criador, no mesmo gesto, ironicamente, cumprir aquela dupla lógica, de acatar e ironizar a subjugação política), mas nos espaços de liberdade que pôde conceber ou apenas sugerir no mais íntimo reflexo do subjectivo que é a criação (e torna os seus constrangimentos explícitos algo do domínio da violentação íntima): ouvindo, por exemplo, o terceiro quarteto de cordas, desde o primeiro compasso que nos assalta a ponto de dilaceração normalizada (forma de sobrevivência subjectiva à plena opressão social), por vezes num esgar rasgado, um retrato de uma verdadeira tragédia moderna do indivíduo: não a tragédia imprevista ou ominosa dos Antigos encharcada em sentido; não a tragédia simbólica dos povos às costas da redenção colectiva; mas a mais terrível tragédia moderna do homem criado na clausura fechada uma ordem absoluta que destila da sua omnipresença a necessidade constante do cálculo dos gestos e das palavras quando se consegue olhá-la à distância no seu interior, a tragédia normalizada da ordem disciplinar a regular na distância inacessível do poder a vida dos homens indiferenciados. O panorama subjectivo desta criação é de uma obsidiante caminhada, inelutável, para um dramatismo sem pausa, apenas mais marcado ou distendido, em que os adagios são a degustação dos passados lacerados ou dos futuros negados, e os allegros anunciações grotescas do estiolar de qualquer grata emoção humana, numa só constante agonia que não se concede picos ou acalmias, e é sim o descritor do quanto um corpo pode nesse estado vislumbrar o único horizonte em que lhe é dado conceber habitar a vida. Ressalta pois sintomático da condição de criação singular de semelhante obra, o veicular desta agonia como a condição ordinária da vida, ressaltando tão claramente o seu drama, sem a construção narrativa do drama: não se trata de conhecer o drama numa vida, enfrentá-lo, superá-lo ou sucumbir; trata-se de o drama cobrir como névoa perene tudo o que conhecemos, e devir a atmosfera em que persistimos.
Os juízos estéticos fora deste quadro humano são de considerável cegueira histórica (e a estética é também uma categoria histórica).
Os juízos morais imponderadamente distanciados da compreensão do que é um corpo socializado no medo e ameaça entranhados de todos os dias de todos os olhares comuns são de considerável arrogância humana.
Sem consagrações mecanicistas, mas também sem a crítica (no fundo) acrítica atreita ao juízo desincorporado emanando de equívoca necessidade de absolutos ideológicos, talvez seja tempo de celebrar Shostakovich, ouvindo na circunstância histórica da estética da sua voz um singularmente expressivo feito humano.»
O que parece ser notório nesse caso, é como o fincar do juízo estético nesses dois patamares críticos sucede em falhar aquilo que faz a singularidade estética de uma voz. Como se situá-la numa matriz de justificação fosse a operação de entendimento estético supremo, a despeito da compreensão da sua matriz de criação, condição daquela singularidade.
A voz de Shostakovich tem, nesses dois planos, sido porventura a mais profundamente polémica. No plano da estética teleológica, não se lhe reconhecendo abordagens da lógica composicional desafiantes do mapa já cartografado pela herança, nas suas criações de maior visibilidade, do sinfonismo romântico, e nem sequer aprofundando novas correntes "disponíveis" a partir das primeiras décadas do século XX, como o dodecafonismo e o serialismo. Dir-se-ia quase, ao ler muitos comentários que se têm produzido a propósito da efeméride, “quem não é atonal, não brinca”. No entanto, fora casos notórios, raros se negam a atribuir fulgor impressivo e original a vários opus da sua produção. A ideia construída de "obra" e de "criador", enquanto entidades homogeneizadas capazes de criar um ícone para a sequenciação de uma linhagem teleológica parece pois ser uma lacuna para a tranquila "reabilitação" de um legado musical.
Contudo, curiosamente, esse facto pode em larga medida ser precisamente lido em articulação com os juízos morais produzidos a propósito da vivência e posicionamento de Shostakovich no contexto histórico da URSS (e é sintomático tal surgir finda a anterior e bem mais translúcida, o que não obstou ser bem zarolha em muitos casos, condenação mais ou menos simbólico, incluindo alguns saneamentos germânicos, dos colaboradores musicais com o nazismo – alguém tergiversou no lamento recente de Schwarzkopf à conta do cartão do partido nacional-socialista?). Denota-se o quanto o juízo moral do indivíduo enquanto criador se torna em casos constitutivamente equívocos matéria de validação de todo o seu legado, não nos termos do quanto o contexto é o húmus de entendimento da criação, mas nos termos conotativos de a criação, independentemente da sua lógica criativa, ser manchada pela absoluta classificação moral do indivíduo. Ora, precisamente Shostakovich representa das mais absolutas negações dessa operação, porquanto o indivíduo se desvela irredutível, na opacidade do contexto que condiciona a sua acção e ao entendimento pretensamente depurado do que seja a sua “vera” subjectividade, à taxonomia geralmente dicotómica do colaborante-opositor. A discussão contemporânea desse posicionamento de Shostakovich enquanto compositor oficial do regime soviético partilha involuntariamente do absurdo gogoliano, no qual, aliás, se banhou. Um pouco de senso weberiano, de entendimento da compreensão enquanto pensar a racionalidade dos indivíduos in situ, bastaria para perceber que uma pretensa essencialidade subjectiva de Shostakovich no enquadramento do regime soviético não poderá ser apreendida – em matéria de facto tanto se lhe conhecem os mais declarados fretes musicais e humilhações públicas (e a integração no aparelho ideológico e até simbolicamente burocrático do regime), como os gestos estéticos temerários, por vezes com claro (até tornado real nas suas consequências) risco político.
A única coisa que se torna óbvia, precisamente em termos estéticos, é que a sua obra brota nas formas díspares que se lhe conhecem (em género e qualidade) em profunda imbricação com as solicitações, possibilidades e condicionamentos do contexto social em que opera. Toda a sua estética não é uma crónica desse contexto mas a crónica das possibilidades e viés expressivos de um compositor nesse contexto. Ora, tal matriz social de composição é aquilo que faz a singularidade e a "anormalidade" do seu corpo de obra, e torna qualquer juízo teleológico do que deveria ou poderia ser um caminho esteticamente inovador inerentemente contraditório, pois pressupõe a taxonomia individualista do génio capacitado para organizar uma nova expressão a partir dos idiomas instalados. O "formalismo burguês" de que foi acusado pelo poder soviético, juntamente com outros compositores contemporâneos, na sua subjugação à funcionalidade da propaganda ideológica, é a ilustração eloquente dos limites constitutivos da sua voz.
Quer pelas teleologias estéticas, quer pelas avalizações morais de um indivíduo, é frustrante perceber o quanto se conforma um quadro que por duas vias deixa escapar precisamente a singularidade de uma obra enquanto criação individual necessariamente situada. Não particularmente quando essa localização lhe impõe uma lógica instrumental (seja para contrariar ou servir um condicionamento: e as encomendas de regime podem, no seu claro primarismo contrastante com as possibilidades de composição que outras obras outorgam ao criador, no mesmo gesto, ironicamente, cumprir aquela dupla lógica, de acatar e ironizar a subjugação política), mas nos espaços de liberdade que pôde conceber ou apenas sugerir no mais íntimo reflexo do subjectivo que é a criação (e torna os seus constrangimentos explícitos algo do domínio da violentação íntima): ouvindo, por exemplo, o terceiro quarteto de cordas, desde o primeiro compasso que nos assalta a ponto de dilaceração normalizada (forma de sobrevivência subjectiva à plena opressão social), por vezes num esgar rasgado, um retrato de uma verdadeira tragédia moderna do indivíduo: não a tragédia imprevista ou ominosa dos Antigos encharcada em sentido; não a tragédia simbólica dos povos às costas da redenção colectiva; mas a mais terrível tragédia moderna do homem criado na clausura fechada uma ordem absoluta que destila da sua omnipresença a necessidade constante do cálculo dos gestos e das palavras quando se consegue olhá-la à distância no seu interior, a tragédia normalizada da ordem disciplinar a regular na distância inacessível do poder a vida dos homens indiferenciados. O panorama subjectivo desta criação é de uma obsidiante caminhada, inelutável, para um dramatismo sem pausa, apenas mais marcado ou distendido, em que os adagios são a degustação dos passados lacerados ou dos futuros negados, e os allegros anunciações grotescas do estiolar de qualquer grata emoção humana, numa só constante agonia que não se concede picos ou acalmias, e é sim o descritor do quanto um corpo pode nesse estado vislumbrar o único horizonte em que lhe é dado conceber habitar a vida. Ressalta pois sintomático da condição de criação singular de semelhante obra, o veicular desta agonia como a condição ordinária da vida, ressaltando tão claramente o seu drama, sem a construção narrativa do drama: não se trata de conhecer o drama numa vida, enfrentá-lo, superá-lo ou sucumbir; trata-se de o drama cobrir como névoa perene tudo o que conhecemos, e devir a atmosfera em que persistimos.
Os juízos estéticos fora deste quadro humano são de considerável cegueira histórica (e a estética é também uma categoria histórica).
Os juízos morais imponderadamente distanciados da compreensão do que é um corpo socializado no medo e ameaça entranhados de todos os dias de todos os olhares comuns são de considerável arrogância humana.
Sem consagrações mecanicistas, mas também sem a crítica (no fundo) acrítica atreita ao juízo desincorporado emanando de equívoca necessidade de absolutos ideológicos, talvez seja tempo de celebrar Shostakovich, ouvindo na circunstância histórica da estética da sua voz um singularmente expressivo feito humano.»
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