quarta-feira, 10 de dezembro de 2014

We have no more beginnings: the eighteen hundred year itch

«exibia uma beleza perfeita num corpo nu e completamente despido, a não ser por um pequeno véu de seda que lhe sombreava a púbis admirável. Aliás, um ventito curioso bafejava-a, por vezes, com amorosa lascívia, afastando o véu para deixar à vista a flor da sua tenra idade»

O burro de ouro, Apuleio (trad. Delfim Leão)
 


quarta-feira, 29 de outubro de 2014

We have no more beginnings: Trash talk

«Antes o Simeonte fluirá às arrecuas e o Ida se perfilará
sem folhagem, e a Aqueia prometerá auxílio a Tróia,
do que, caso a minha inteligência cesse de zelar por vós,
a esperteza do bronco Ájax trará proveito aos Dánaos.»

 Metamorfoses, Ovídio (trad. Paulo Farmhouse Alberto)

Copycat



We have no more beginnings: No pun intended

«O rei Latino, já envelhecendo,
governava umas terras e cidades
que longuíssima paz adormecera.
Nascera ele de Fauno e de Maricas,
a ninfa laurentina, sendo Fauno
um dos filhos de Pico, o que dizia
que era mesmo Saturno o deus seu pai.»

Eneida, Virgílio (trad. Agostinho da Silva)

Copycat



domingo, 12 de outubro de 2014

We have no more beginnings: Peace out

«(...) Omi, perdida de admiração por aquele homem, austero entre todos, cochichou com a sua voz aguda, tão alto que todos podiam ouvi-la:
-É ele! É ele!
E, não se importando com o embaraço das mulheres, declamou alto e bom som:

Barca perdida no mar
À mercê das ondas
Diz-me em que porto
Pensas atracar
Para eu te ir buscar

"Barca que vai e vem e volta sempre para a mesma dama! que mau gosto!"
Intrigado, Yugiri pensou quem poderia ser aquela dama que se expressava ali de forma tão crua e, divertido, ao perceber que devia ser a jovem de quem lhe tinham falado, respondeu:

Mesmo balouçado
Ao sabor dos ventos
O bateleiro indeciso
Decerto não passará
Por costas indesejáveis

Dizem que estas palavras a calaram.»

 
O Romance do Genji, Murasaki Shikibu (trad.Carlos Correia Monteiro de Oliveira)

Copycat



sábado, 11 de outubro de 2014

We have no more beginnings: Masterchef Roma

«Assim aumente eu em riqueza – não de peso! – como tudo isso o meu cozinheiro o fez de um porco. Não pode haver homem de mais valia. Basta quereres, e ele de uma barriga de porca fará um peixe, de um toucinho um pombo, de um pernil uma rola, de uma almôndega uma galinha. De forma que, graças à minha carola, foi-lhe dado um nome todo janota; na verdade, chama-se Dédalo. E como tem boa catadura, trouxe-lhe de Roma, como presente, umas facas de ferro da Nórica.»

Satyricon, Petrónio (trad. Delfim F. Leão)

Copycat



We have no more beginnings: Enhanced interrogation

"Agora é a melhor altura para interrogar os estrangeiros,
perguntando quem são, uma vez que já se deleitaram com comida.
Ó estrangeiros, quem sois? (...)"

Odisseia, Homero (trad. Frederico Lourenço)

Copycat



We have no more beginnings: Slapstick

«Ora quando estava prestes a chegar aos prémios,
Foi então que Ajáx escorregou (pois Atena o prejudicara)
no local onde estava o esterco dos bois de fortes mugidos,
que em honra de Pátroclo matara Aquiles de pés velozes.
E com o esterco dos bois ficou cheia sua boca e narinas.
Assim sendo, o sofredor e divino Ulisses pegou na bacia,
visto que chegara primeiro; e o glorioso Ajáx ficou com o boi.
De pé a segurar com as mãos o chifre do boi campestre,
cuspiu o esterco e assim disse no meio dos Argivos:

"Ah, foi a deusa que me prejudicou os pés, ela que sempre
está ao lado de Ulisses como uma mãe a ajudá-lo."

Assim falou; e aprazivelmente todos se riram dele.»


Ilíada, Entidade indeterminada convencionado chamar Homero (trad. Frederico Lourenço (ou entidade determinada convencionado... mas não vamos por aí))

segunda-feira, 1 de setembro de 2014

sábado, 30 de agosto de 2014

I did not see this coming

A única interpretação que me ocorre para a existência deste mais inesperado dos artefactos culturais é que, na veia suicidária da indústria discográfica - que inclui episódios tão auto-destrutivos, na dissipação do meu voluntarismo em continuar a comprar discos, como fazerem reedições (e.g. a edição do Mingus Ah Um que comprei, de todas as coisas, para substituir uma cópia do exemplar disponível na biblioteca municipal do pedaço) em que para do mais básico a ser provido pelo invólucro de um disco, como seja a informação do personnel (excepção feita se estivéssemos a falar dos Residents há uns anos atrás), me mandam, de todas as coisas, ir ver à internet, onde, se era para isto


, mais valia ter-me abastecido de tudo; ou fazerem edições especiais recheadas com bonus tracks de um disco 6 meses depois de ter saído, colando uma etiqueta retrospectiva de "Special otário edition" no exemplar de quem o comprou logo quando saiu -, isto só pode ser uma nova estratégia editorial constituída como uma espécie de instância auditiva do antigo passatempo do Late Night with Conan O'Brien intitulado "If they mated", exemplificação abaixo

 
, sendo que, no caso em análise, o equivalente gráfico do acasalamento sónico dos dois espécimes seria este:


(caso não estejam ainda a rir a bandeiras despregadas, deixem-me explicar-vos que isto é na realidade uma piada visual altamente sofisticada: esta imagem é da cara do Roedelius; portanto, eu estar a dizer que o resultado do acasalamento do Lloyd com o Hans-Joachim resulta em progénie composta apenas do material genético do Hans-Joachim equivale a dizer que o papel do Lloyd foi tão fecundo quanto uma orgia de grinding vaginas (embora, suspeito, não tão lúdico))

Piadas visuais altamente sofisticadas aside, fico excitadíssimo por ver o que mais sairá desta senda editorial. A minha sugestão para o próximo acasalamento? Leonard Cohen-Yngwie Malmsteem. Selected headbangers Vol. 1. Right on.

Les beaux esprits...


sexta-feira, 15 de agosto de 2014

sábado, 17 de maio de 2014

History repeats itself


Quando assentou a poeira da comoção Dylan goes electric Judas, esse tornou-se o caso em torno do qual se foi blindando argumentativamente a guinada bem-pensante da coisa pop no sentido da desconsideração da chamada canção de intervenção (ou outra merda qualquer), e que, como o geral das guinadas, pouco mais fez que redireccionar o derrape da imbecilidade.
Haverá argumentos sociológicos para a valia social desse "formato" enquanto mecanismo de ampliação e dinamização de qualquer coisa assimilável a uma consciência política na coisa pública: se há um desequilíbrio colossal entre as agremiações que produzem e disseminam essas formas de expressão e as agremiações a quem a sua menção causa choques anafiláticos; ou, dito de outra forma, se a canção de intervenção tem historicamente versado mais sobre a paz, o pão, habitação, saúde, educação, do que sobre os amanhãs que cantam da trickle-down economics, não é necessariamente por haver sempre um lado certo da história para se cantar, mas por o cantar ser dos poucos veículos expressivos certos para quem está do lado desapossado da história. Contudo, não seria por esses argumentos que, por exemplo, avançaria como mais-valia da arte do imenso Fausto o «Venha cá sr. burguês». Pela mesma ordem de razões, mesmo que possamos sociologicamente ponderar o vilipêndio da canção de intervenção como forma musical como uma decorrência estética de um posicionamento socio-ideológico, justifica-se atermo-nos à discussão do seu argumentário como gozando de uma autonomia crítica. Contudo, rodopiando em torno da invocação dos limites constitutivos da instrumentalidade social do formato, esse argumentário sai furado do redondel.
Argui-se a simplificação estética que essa instrumentalidade demanda - desde logo, como se isso a distinguisse da matriz genética da música pop(ular) em geral e a malta fosse toda empinados do prog - mas depois basta cotejarmos as merdas que se têm inimputavelmente nas prateleiras (eu sei) com o filão cujo iniciático proselitismo político de esgravatar a música tradicional produziu, de longe, a maioria do que de melhor, mais singular e complexo (if need be) se criou musicalmente neste território, de José Afonso (cuja sujeição a um reducionismo político na sua apreciação é das mais lamentáveis miopias culturais deste país) aos Gaiteiros de Lisboa. Mesmo que o quantitativo dos acidentes de percurso desse filão largamente excedesse as suas excelsas recompensas, um raciocínio crítico cuja lógica se cingisse à ponderação probabilística do rácio de boa música que pode emergir de um dado formato ou temática desembocaria logo na constatação - por virtude da singularidade cósmica aleatória na ordem das coisas de terem existido os Van der Graaf Generator - de que as canções sobre faroleiros (independentemente de serem a melhor ocupação do mundo (relembre-se às autoridades competentes e seus simpatizantes a minha perenemente continuada candidatura a qualquer vaga que possa surgir nesse meio)) seriam o hottest topic para escrever grande faixas aí na cena musical.
Argui-se igualmente que a sua instrumentalidade torna essas canções intrinsecamente datadas às circunstâncias sociais que as espoletam, o que leva a presumir que os proponentes de tal proposição, com o final de cada relação amorosa, tendem a carpir ao som de toda e qualquer heartbreak song, para logo as abjurar como espécie musical no momento em que descolam nova pita e assim ciclotimicamente sucessivamente. Na verdade, ao que a canção de intervenção é propícia é à dificuldade de destilar a datação derivada da incapacidade estética de algumas canções ecoar para lá da sua circunstancialidade, da datação histórica e social dos seus receptores, incapazes de se desimplicarem do enjeu daquela circunstancialidade, e facilmente revertendo para a valia estética da obra esses seus (legítimos) limites perceptivos - pode certamente compreender-se que à generalidade das almas latifundiárias uma certa porção da produção cançonetista do PREC não seja particularmente querida, independentemente do nosso afecto pela Lei Barreto. Contudo, isso revela precisamente a visão equivocada, nestas discussões, do que faz a instrumentalidade de uma canção; visão, aliás, partilhada pelos mais voluntaristas dos dois lados da barricada do que convencionam, para os respectivos bem e mal, ser canções de intervenção. Por mais que um artista de máquina de matar fascistas de seis cordas a tiracolo se invista programaticamente em fazer da cantiga uma arma (no que a figura da topical song pode ser descritivamente mais útil), a efectiva instrumentalidade do seu percussor é sempre uma figura da sua apropriação social. Isso implica que não só a datação circunstancial não é constitutiva de uma canção de intervenção, como a abstracção dos seus referentes as torna mais apropriáveis para diferentes mobilizações; que é como quem diz, canções de protesto, são as que o Homem quiser. Lição cuja manifestação mais fina foi inevitavelmente providenciada pelo Robert Wyatt, num álbum programático de canções de, pois, intervenção, emparelhando picos de circunstancialidade política como «Stalin wasn't stallin'», com o «At last I am free», das Chic (um dos factóides mais satisfatórios da História, a todos os níveis).
Mas mesmo que concedêssemos que a circunstancialidade pudesse carimbar o prazo de validade de qualquer canção investida no presente, e pô-la na prateleira dos bens estéticos mais perecíveis, a data de hoje, of all days, chega, ao final do cronómetro, como o contra-argumento mais feroz para uma visão da história que decreta uma crença na perecibilidade das circunstâncias que fazem, em dado momento, uma canção ser de protesto, alimentando a sobrevida discreta das circunstâncias, sobre a carcaça das canções. Que é como quem diz que, no reverso da rêverie desesperada de que lá não tivesse aterrado em 1977, o FMI nunca terá é descolado da Portela, e a reserva do José Mário Branco em continuar a interpretar o seu impossivelmente catártico (e (mesmo descontextualizadamente) genial) «FMI» para lá de uma certa distância temporal da sua circunstancialidade, constitui, para além de um acto pessoal da mais razoável preservação psicológica, um acto micro-histórico de uma ironia spengleriana lacerante. Que é como quem diz:



Has it been that long?

 
Обломов, c'est moi.