"Jews with horns"
«À saída, alguém resmoneava “claro, tiveram que americanizar a coisa”. Em abono da verdade, o descontente tinha razão, mas também as expectativas erradas, porque um projecto purista de música klezmer é coisa que não está na identidade dos Klezmatics. Aliás, ao contrário do que prometia o programa da Culturgest (a acicatar porventura mais os eventuais resmungos de tal estirpe), o combo nem aquiesceu ao pedido da organização para tocarem um programa exclusivamente dedicado à música klezmer, em função do ciclo de concertos que a organização inaugurou, denominado “Os Filhos de Abraão”. Bem pelo contrário, debitaram com o à-vontade de bastos anos de estrada, a sua versão dessa música (da já de si sincrética identidade judaica) socializada na realidade socio-cultural peculiar de judeus nados na América. Envolvidos num ambiente plural e contraditório, a música dos Klezmatics resolve as potenciais tensões dessa multivocalidade de tradições e reinvenções musicais da história americana num, por uma vez efectivo, melting-pot, onde se a demarcação klezmer da aproximação a diversas matérias musicais permanece o ponto de ancoragem, abre igualmente alguns pontos de fuga, mais ou menos significativos.
Serão precisamente esses pontos de fuga que farão que o beneplácito dos puristas se submeta à vontade de conversão do corpo que quebrou a polidez da sala da Culturgest com uma pequena mão-cheia de desinibidos a fazerem a festa, ao final, de pé junto ao palco. Serão também esses pontos de fuga, porventura, aliás inerentes à própria abertura dos Klezmatics à diversificação instrumental, que podem justificar a nem sempre perfeitamente coesa teia de agregação dos seus protagonistas. Para o caso, o saxofone e clarinete de Matt Darriau soou-nos como o mais forte pólo de atracção da ocasional dispersão instrumental. Problema que se não coloca quando a depuração, efectiva ou ilusória (quando os agudos de Lorin Sklamberg abafam ao som à volta – o mesmo não se podendo dizer dos seus graves...), governa as suas aproximações a ambiências litúrgicas, mesmo com espaço para a experimentação – fabulosa lembrança, Frank London a soprar o trompete para as cordas do piano, transformando-o em fantasmática caixa de ressonância.
Concedamos, contudo, que o resmoneio, afastadas as falsas expectativas, não deixa de ser um diagnóstico relativamente acertado. A força dos Klezmatics é centralmente devedora das figuras de estilo klezmer, e se alguma heterodoxia dilata com proveito as fronteiras do seu apelo, nem sempre ela puxa para o lado certo. As ligeiras abertas ao jazz, por vezes inclusive com chamadas a uma intervenção de matizado noise (função essencialmente do trompete de London), funcionam mais estimulantes que, por exemplo, a opção por quase um sonho de integração com o cancioneiro americano. Nessa ideia de ecoar uma América plural, faz, de facto, todo o sentido, por exemplo, recorrerem ao cancioneiro icónico (concedendo leitmotif cultural, social e político) de Woody Guthrie, musicando-lhe escritos inéditos. Estranhamente, “Gonna get through this world” e “Holy Ground” até resultaram. Mas as aproximações menos mediadas a uma ideia de canção americana, vogando entre estereótipos urbanos e quase country, sem chegar a subvertê-los, transcendê-los ou encarná-los, deixa-os algo entalados numa matriz quase caricatural daqueles arquétipos, não sucedendo em criar uma distância criativa que lhes delineie um rosto próprio. Por isso mesmo (sejamos cínicos), não admira que se vejam deliciados (e o comuniquem ao público) com nomeações para Grammys (ficamos pois a saber que há quem dê valor a isso).
No entanto, quando mantêm as declinações klezmer norteando as suas explorações, para lhes testarem os limites (sucedendo numa dialéctica de integração externalizante e dispersão internalista – comunicando mais amplamente, no fundo), os Klezmatics sacam um inteligente e estimulante desafio às formas do género, agregando rasgos celebratórios, vontade de alguns riscos, e apego a vagas cristalizações simbólicas de um prolixa identidade judaica situada. A sua música sincrética não é senão o reflexo voluntarista da socialização sincrética que necessariamente enforma a sua experiência vivida dessa identidade. Literalmente, aquele híbrido sonoro diz: “isto é o que nós somos”. E são-no, de facto. Quando tal respira imediatez, soa muito bem; quando devém programa, força a barra. Ainda que, teoricamente, faça sentido. Mas nestas coisas (a moçada irrequieta na Culturest soube-o bem) o corpo manda mais.»