terça-feira, 30 de janeiro de 2007

Danos colaterais

Este novo blogger associado ao google tem umas conversas mansas de que há uns privilegiados a quem "concede" especialmente o favor de os deixar mudar para a nova e melhorada versão do dito cujo, mas o que me apareceu anteontem à entrada do login foi algo mais do género, "já só voltas a entrar se mudares para o novo blogger". Pelo que me parece ter visto de experiências outras, a coisa podia ter sido bem pior. Ainda assim, mesmo sendo credor de porra nenhuma neste reino da borla, também não sou devedor de "privilégio" algum. Portanto: o novo blogger, operando a partir da obrigatoriedade de uma conta google, em geral associada à selecta palerma de um gmail, cheira-me funcionar desde logo nesse cruzamento de valências e dados como um panópticozinho de merda (fico já à espera de um acalentado shutdown). Tendo necessariamente feito a mudança, ainda que com apoio moral e experiencial a vazar a tentação da termination, constato danos. Há caracteres destrambelhados na barra de links. Dou-me também conta que as caixas de comentários anularam algumas identificações. Tento alterar o template e acabo por apagar o antigo, sendo que o novo não é tão directamente manejável, anulando possibilidades de arranjo pessoal. Retrabalho a barra de links e a coisa resolve-se minimamente. As caixas de comentários não se movem aos meus esforços. Sendo, simbolicamente e não só, constitutivo o que nelas se passou para o exercício desta empresa blogueira (a minha), o dano é um desconsolo e uma machadada pública (pá...). Aparentemente, quedaram-se os danos pelas mais recentes, mas deu para invocar uma noção periclitante do que vamos agregando em suportes contingentes à porção simbólica do nosso património pessoal. Conquanto a retenção de um sentido de presença vivida no escoar implacável do tempo se atenha a essa esquiva materialidade dos gestos e sua interpenetração, será caso para atentar, preventiva e mais genericamente, como os danos colaterais podem mesmo levar tudo.

sexta-feira, 19 de janeiro de 2007

Subterranean Homesick Blues

«Após o abandono dos Soft Machine, o génio criativo de Robert Wyatt, entre diversas direcções, apontou para a convocação de várias das luminárias que pululavam pela efervescente cena de Canterbury nos princípios de 1970’s para formar os Matching Mole. Tomando como designação, humorística, uma corruptela britânica de sentido relativamente homófona da tradução francesa do nome da sua prévia empresa colectiva (ou seja, concretizando a sequência nominal: Soft Machine - Machine Molle – Matching Mole), os esforços de Wyatt nesta nova agremiação, se inclusos no cânone canterburiano, cumprem papel fulcral na validação da vitalidade criativa dessa cena, contribuindo, na sua curta carreira de dois álbuns, para sublinhar os seus potenciais singulares no multifacetado (ao contrário do que o simplismo crítico gosta de supôr) movimento progressivo britânico nessa época de ouro.
De alguma forma, já no insuperável monumento que fôra “Third” dos Soft Machine se desenhavam as matrizes estilísticas que Wyatt por um lado, e os Soft Machine por outro, explorariam enquanto figuras cimeiras da cena, sendo as de Wyatt confirmadas logo de seguida serem demasiado heterodoxas para os cânones até dos Soft Machine, não obstante a excelência que em vários passos estes ainda manteriam, enquanto não ficavam exangues dos seus seminais protagonistas, e entregues à exclusiva batuta dos teclados fuzz de Mike Ratledge (Wyatt só se manteria, exclusivamente como baterista, até ao próximo álbum, “Fourth”, distanciando-se de uma abordagem jazzística assente em movimentos relativamente crípticos de ensimesmamento temático, tendo deixado impressa a sua marca indelével, a chave de metal ignoto de tão precioso, na epifânica “Moon in June”).
Efectivamente a heterodoxia de Wyatt já havia tido o seu primeiro assomo radical no seu primeiro álbum a solo, “The End Of An Ear”, jazz em fragmentação e divagação cacófonas, com Wyatt a maestro anarca usando a boca (como o próprio escreve) como instrumento de pura emissão de som (processo reavivado noutros registos, como neste, e a solo, não só como decalque de scat, como com os seus idiossincráticos solos de “trompete” vocal). Das suas fortes afinidades nesse contexto canterburiano deriva aliás o mote para o título de um dos temas deste “Matching Mole”, mais uma vez em jogo de palavras, “Dedicated to Hugh, but you weren’t listening”, decalque homófono do título da canção “Dedicated to you, but you weren’t listening”, do fulcral baixista Hugh Hopper, a quem devém pois dedicado o tema de Wyatt, rememorando os tempos de parceria de ambos ainda nos Soft Machine (tendo, para além disso, a composição de Hopper dado também o título de um álbum, fabuloso, no qual Wyatt também fez uma perninha, do heterodoxo pianista de jazz Keith Tippet - parceiro de algumas aventuras dos King Crimson – no qual, curiosamente, a recriação daquele tema ocupa apenas cerca de 48 segundos – estranhas vias do emblemático...).
Arrumada a sempre caótica divagação pelas genealogias canterburianas (da plêiade de bandas mais ou menos duradouras que surgiram naquela cena, em movimentos de troca musical e de músicos tipicamente jazzísticos, tal como a inspiração central da música a que na generalidade se dedicavam), este homónimo álbum de estreia dos Matching Mole representa uma mais processual, conquanto radical, experimentação em torno das sonoridades e particularmente das estruturas jazzísticas de Canterbury, bem como da ideia e possibilidade de canção nesse contexto expressivo. De alguma forma, o álbum flui num portentoso movimento desconstrucionista das âncoras perceptivas que marcavam essa cena musical, para nesse processo de delapidação auto-referenciada nos deixar com o desvelar das possibilidades musicais que jazem sob as várias estruturas auditivas que nos vão organizando a resposta ao estímulo sonoro.
Veja-se: o álbum inicia-se com uma canção de Wyatt de tom cândido, emanando da periclitante doçura requebrada da sua voz, para logo se diluir num interlúdio de jazz dissolvido numa malha de baixo como estreita ponte para os nossos passos, enevoada pelos espectros instrumentais convocados pelo assombro da boca de Wyatt em espasmos de divagação inquisitiva. Ora, esse movimento jazzístico, que compõe a larga superfície do corpo do álbum, vai precisamente oscilando entre esguias emanações ou notas perceptíveis, entre eflúvios sonoros ou arquitecturas rítmica ou harmónica minimamente discerníveis.
Tal articulação entre estruturas com matizes de reconhecimento, e interlúdios de dissolução sugestiva, conforma a genial configuração deste processo musical, inclusive perceptível na repetição de certas nomenclaturas nos títulos dos temas (de “Instant Pussy” a “Instant Kitten”; de “Signed Curtain” a “Immediate Curtain”), novamente num certo típico jogo linguístico que seria levado a outros extremos sígnicos no seguinte álbum “Matching Mole’s Little Red Record”. Aí o investimento de Wyatt centrar-se-á já não na constituição composicional da obra, como aqui (só dois temas não são exclusivamente escritos por Wyatt), mas na lírica, em abordagens culturais mais amplas do universo musical, numa das mais incisivas incursões dessa arte pela sátira ou comentário social, logo expressos nos brilhantes título e capa do disco (a satirizar as suas próprias aproximações do maoísmo).
Voltando a “Matching Mole”, é curioso verificar como o passo mais explicitamente desconstrucionista do processo musical sobre o qual o disco discorre, e ao passo do qual os instrumentos irão submergindo para ressoarem cada vez mais como ecos de um universo em submersão, está contido nos próprios exemplares (dois, sitos na primeira parte do disco, enquanto a dissolução não é plena – e sê-lo-á...) que resguarda do que ainda se pudesse conceber como ser canção. Se a primeira, a que já aludimos, “O Caroline” ainda pode soar ingénua, no enunciar na letra da canção o amor por Caroline, indo à mistura literalmente elencando os músicos e os instrumentos que a estão a tocar, chegados a “Signed Curtain” a pretensa ingenuidade espertalhona desvela-se cru e declarado génio conceptual e sensitivo. Precisamente, num gesto mui pós-moderno, que começa por parecer de estéril cartilha, a letra vai pela voz de Wyatt literalmente descrevendo os passos musicais que vai seguindo a canção, decalcando linguísticamente a sua estrutura (ou seja, literalmente cantando na melodia a estrutura da canção (“This is the first verse/and this is the chorus”), ainda que logo sugerindo a incerteza que permeia a racionalização descritiva (“or perhaps it’s a bridge/or just another part of the song that I am singing”), replicando estrutura e intenção da canção no passo simultâneo da sua produção e da sua audição. Contudo, cedo vai anunciando a insustentabilidade dessa estiolada auto-referencialidade, na face do arbítrio emocional que necessariamente a tem que suster (“This is the second verse/and it may be the last verse”), e aí sim, a clausura eventual da cartilha se estilhaça, numa mudança de tom desconcertante, precisamente no momento em que anuncia “or just another key change”, e toca essa abrupta e lacerada key change (precisamente a chave da canção num acorde, no preciso change) que recobre de comoção a aparente esterilidade ou gratuitidade daquela operação expressiva programática, ao Wyatt enunciar nesse passo de transtorno a fuga da canção das suas mãos e a falha de por ela alcançar os seus intentos expressivos: “never mind/it doesn’t hurt/it only means that I/lost faith in this song/‘cause it won’t help me reach you”. O que, claro, não é o caso, já que os seus intentos expressivos não eram os enunciados, mas permaneciam subsumidos na aparente transparência da canção auto-transparente (assim mesmo). Um dos momentos mais brilhantes e (o fundamental) belos de desconstrucionismo produtivo, ou de como uma canção pode ser escancarada no seu arcaboiço, para nessa triste figura exibir os seus gloriosos poderes de sedução humana, sempre inevitavelmente humana, e a mais crua desconstrução implicar sempre no mesmo passo a reconstrução de um novo mistério. Por trás das estruturas, por mais explícitas e desnudadas que se queiram, é a persistência inescrutável do mistério da criação que uma canção destas desvela. Momento inigualável, fundacional, da história da semelhante forma musical. E poucos mais que Wyatt seriam capazes de resgatar do cinismo absoluto de tal operação a luz do que persiste para lá dos nossos mais esgazeados atentados ao que só no espaço do silêncio se comunha.
Nesse movimento desconstrucionista segue pois esta obra secreta e portentosa (raríssima combinação), até “Immediate Curtain”, o assombroso culminar desta corrente chegada ao breu dos sentidos perdidos. Aí se desagua finalmente nos eflúvios subterrâneos do que escapa à desconstrução de todos os nossos referentes. No entanto, precisamente por essa via de progressivo e absoluto despojamento, o remanescente que se descobre é aquilo que perdura como eco essencial do indizível e que anima, imperceptível, o que nas estruturas organizamos e fazemos fluir na confortável previsibilidade. Conseguir resgatar essa última fímbria após dissolver as marcas pré-fabricadas do real humano na presença constitutiva do som, que só nessa dissolução podemos perceber não conseguir eludir, é o deslumbre final de génio, que Wyatt manifesta e desvela nesse rastro espectral insinuado à percepção pelo insidiosa irrupção dilacerante do mellotron (do que já haviam ecoado augúrios em “Instant Kitten”). O mais belo e discretamente perturbante (nunca foi preciso carregar no volume para tal), na conclusão evanescente e visceral (outro paradoxo, claro está) de uma obra maior da inquirição sonora radical que se deu a conhecer na música popular (chamemos-lhe assim), e que o popular (e não só) não reconheceu (et pour cause).
É contudo a vantagem e generosidade constitutiva da manifestação do génio: dá-nos mais tempo que o que merecemos para lhe reconhecermos a face e prestar tributo. Foi em 1972, mas não se inquietem demasiado. Sob aquele ponto de vista, ainda vão a tempo, se a vontade de indizíveis e a dedicação que nos acometa ao risco de os contemplar estiverem na dianteira.»

A epifania da canção

Em quem se descobre habitar uma canção, há muitas vezes um só momento nesse processo que será cume irrepetível.
Há primeiro a sequência sedutora de lhe irmos conhecendo os contornos, os fragmentos que cerceiam o défice de atenção, as palavras que desenham um sentido para o ressentido que nunca havíamos formulado.
E há depois o habitar uma canção como a casa que nos acolhe o corpo cansado, dolente, carente, agitado, cujos recantos são mapa cravado na orientação de seguir vivendo.
Mas no entrementes, muitas vezes, há uma audição, só uma, em que, distraídos, sem aviso ou preparação, a canção nos surge, desnuda, feita matéria sensível toda nova e completa num raiar de inaudito esplendor, dizendo-nos finalmente, plenamente, as defesas descaídas, a arquitectura palmilhada, de uma existência doravante mutuamente constitutiva.
E depois, as epifanias, tal como se não prevêem ou se forçam (quantas canções assim são perdidas), e se não pedem ou anunciam, acolhidas apenas na ressonância instantânea de quem lhes reconhece o advento nas arcadas do ser, também não se repetem, quando o seu reino foi instaurado, a nossa condição decretada, a vida iluminada (por vezes mesmo na luz negra do silêncio e escuridão).
And THAT'S how you sing Amazing Grace.

segunda-feira, 8 de janeiro de 2007

Como a monção que lava as cores e escoa as dores do mundo



Chubby's guide to grandma's goodies

Considerando os seus potenciais efeitos corpóreos numa sociedade violentamente estetizada, é capaz de não ser muito desadequado conceber a amorosa insistência crónica de certa figura tradicional de avó em enfardar de comida os netinhos, por estarem "tão magrinhos", como the ultimate form of tough love contemporânea.

On the rebound

Primeiro sumiu o Arte.
Depois o Canal Brasil que, para além de servir de fac-símile, entre arremedo de guilty pleasure (ou nem tanto...) e desopilante válvula de escape, do bizarríssimo caso sociológico das convenções eróticas e morais do cinema brasileiro mainstream (será?) em época(s) de ditadura (convém lembrar), ainda espremeu um ou dois clássicos e um ou dois ovnis (como o Júlio Bressane, de quem o languiano favorito do burgo sublinhou um dos títulos "esquecidos" - que são todos) de uma cinematografia que pura e simplesmente cá não chega (logicamente, não sei se com proveito, mas gostaria de enformar meu próprio juízo, e pelo menos fazia muita falta ver o Glauber, e recordo com saudade uma retrospectiva na RTP2, ainda antes do já de si saudoso Cinco Noites, Cinco Filmes, do Nélson Pereira dos Santos com pelo menos duas pérolas e um dos títulos - o título mesmo - mais hilariantes e sardónicos já grafados «Como era gostoso o meu Francês» - gostoso à refeição, sem metáfora, bem entendido).
Consta que o sumido GNT era aprazível para certa população. Só vi umas vezes, com gosto, o Jô Soares.
Agora, com o inqualificável término da minha dosagem audiovisual de benzodiazepinas via SIC Comédia, essa indigente recolecção de inanidades televisivas que dá pelo nome de TVCabo está segura na lista de pagamentos fixos mensais por um fio. O fio, já o havia dito, mas ainda não era o último reduto, que nas frias madrugadas se prodigaliza sigilosamente (como se não conviesse a gente dar por isso) a passagem, supõe-se que incauta, de preciosidades maiores e menores que a feliz estultícia da venda a grosso deve deixar escorrer dos back catalogues dos estúdios clássicos, com tais que Wilders, Rays, Minnellis, Fords, Walshs, Tourneurs, Manns (hora de parar com os plurais), juntamente com as pepineiras das últimas duas décadas que fazem os prime times do otherwise algo exasperante e repetitivo Coiso Hollywood. Porque sou fraco e enfezado e não tenho forças para a toda a hora me deslocar à Barata Salgueiro (consta), embora ironicamente, para iniciado nas lides com as noites secretas (fica pra outro dia) da RTP2, já estou tão spoiled que mal consigo ver filmes em pequeno ecrã, e não compro DVD's, estas prebendas que tenho que esgravatar na programação vão segurando a assinatura. Venha o mês em que a fonte seque por pleno, e o badameco pode ser que finalmente se revolte (nem que seja mudar para a Cabovisão just to fuck with their minds) contra esta lenta provocação claramente em jeito de estudo de psicologia experimental. Cuidem-se. Essas coisas nunca deram bons resultados.

Semiologia à queima-roupa 6

Relia-se, e o que se reflectia era obeso, desajustado, incontinente, disforme, grotesco, macerado, séptico, disfuncional, espojado, despejado, lacerado, descartado, fugidio, espasmado, espasmódico, letárgico, sincopado, tendo como último reduto no equilíbrio do fio de prumo simular a transcendência do expresso pela assunção da sua ostensiva precaridade. Ao contrário do que reza a previsão do mundo, é terrível quando as coisas batem certo.