sábado, 16 de setembro de 2006

Humm... gaja boa


«Geralmente, neste quarto álbum dos Caravan, são diagnosticados os sinais do seu declínio (na verdade, o seguinte “For girls who grow plump in the night”, na sua relativa regressividade estilística, pode ser, ele sim, descoroçoante), ao escaparem a uma suposta matriz mais pop, da qual, de facto, eram os representantes cimeiros no jazzistico universo progressivo de Canterbury nos anos de 1970’s, enquanto o lado mais profundamente enraízado no jazz ficou entregue, com bastante mais radicalidade e relevância, aos Soft Machine, desde o incontornável e incomparável monólito “Third”.
Contudo, e não é só pelo gosto de recuperar discos menos amados que a história deixou meio tombados em caixotes indignos que o dizemos, este álbum é na verdade um representante não propriamente menosprezável da versão Canterbury dos Caravan, e não cuidamos que seja propriamente inferior ao seu incensado “In the Land of Pink and Grey”.
Aquilo que muitos desdenham como um desvio para o jazz, dadas as mudanças de formação que levaram à incorporação de Steve Miller (antes nos Delivery) no piano eléctrico, substituindo os teclados mais encorpados de Dave Sinclair (atraído por Robert Wyatt para a sumamente heterodoxa empresa dos Matching Mole), é um desvio bem conseguido, enriquecendo de forma plenamente integrada os mimoseios pop de Pye Hastings, e o remanescente mais devedor da veia tradicional dos Caravan está a um nível nada desmerecedor. Um aceno à heterodoxia da própria escola pode ser intuído até em algumas intervenções dos sopros, ou de guitarra wah wah, que dão um sabor quase funky a certos espaços (escrito soa mal mas, surpresa, resulta), a acrescer à rítmica cativante da fluidez do disco.
A abertura com a faixa título exibe a manutenção do programa lúdico da particular versão de Canterbury dos Caravan, quer no tom, quer nos jogos rítmicos e harmónicos bem sucedidos, como no intermezzo que dará lugar à secção de improvisação. A longa faixa que se segue, «Nothing at All», seria a que denunciaria a suposta daninha influência de Miller nos destinos da banda, mas é na verdade um excelente naco de jazz-rock, não particularmente ambicioso, mas nada possidónio, contendo aliás uma das mais suculentas malhas de baixo que a história (não) registou. Aqui se confirma, desde logo, um dado curioso para um álbum menosprezado: o reputadíssimo Richard Sinclair, pelo seu peso na diversidade de formações que compuseram a paisagem sonora canterburiana, tem neste suposto registo menor uma das suas melhores prestações instrumentais. O baixo neste registo está num swing admirável, imparável e contagioso de fio a pavio, sobressaindo glorioso e reinante na mistura final, swinging all the way no aliciar dos quadris renitentes.
As três pequenas cançonetas, a parte menor do repertório tradicional dos Caravan, têm, é verdade, como habitual, um registo carregado de sacarina, pelo que serão um acquired taste (francamente, it’s not my cup of tea), face ao qual as derivas jazzisticas de Miller são no mínimo benvindas pelo acréscimo de estímulo sonoro que lhes outorgam. “Aristocracy” é a mais saborosa, em parte, mais uma vez, também pelo espaço para o swing de Sinclair.
Já a suite a la Caravan, “The Love In Your Eye”, que representa a mais forte ligação com a tradição sonora do agrupamento, é de facto uma digna sucessora. Os cândidos temas entrelaçados, em plena sucessão dinâmica entre secções de improvisação, são irrepreensíveis, conseguindo conceder à peça toda uma continuidade mais que escorreita; mas, no cantinho do melómano, guardamos um assento especial para ouvir o soberbo solo do grande Jimmy Hastings na flauta. Instrumentista central de Canterbury, ainda que geralmente subsumido em colaborações (recorrentes: a malta do burgo sabia que mais-valia ele era) nos sopros de empresas alheias (praticamente todas as que saíram desta escola), este senhor também praticamente rouba a centralidade do disco com esta sua prestação: a dinâmica, a fluidez, a imaginação melódica e o sentido de propósito musical configuram uma prestação que merecia igualmente o seu lugar nos anais.
A reedição disponível em CD deste álbum contém alguns extras que, ao contrário de muitas reedições a incluírem a malta a esforçar piadas e descontracção, a fumar um cigarro ou a praticar as deixas de assédio sexual no ambiente do estúdio, valem a pena, com algumas maquetes de Hastings só a guitarra a quase beneficiarem da redução instrumental em que se quedaram por nunca terem sido gravadas para integrarem o álbum, excepto a final que, com plena produção, não desmerece da linha deste momento dos Caravan, podendo ter com proveito integrado a selecção final do que de facto apareceu no álbum à época, ao invés de uma ou duas das canções que lá chegaram (a última, confessemos, chega a fazer ranger os dentes – mas confiamos que já ouviram falar da função program). Para quem se queira iniciar nas sonoridades canterburianas, pode este ser adequado ponto de partida, embora indubitavelmente o material esteticamente mais sério, desafiante e portentoso se deva procurar em outros lugares, pelo que os aventurosos talvez se possam atirar logo a tais vôos. Mas para muitos ouvidos, um pouco de suave pedagogia nunca fez mal, e um pouco de sensibilidade pop ainda menos. E para esses, há aqui material que pode suscitar o hábito auditivo que alimente novas buscas do que de mais extraordinário saiu dessa sedutora cena de Canterbury.
(pedimos desculpa pelo muito que gostamos de dizer Canterbury)
(Canterbury)
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