Vira o disco and it's Village People all over again
É também um dado científico que parece ainda não ter entrado no senso comum, ou sequer científico, que a ciência e a técnica que os homens fazem se constrói, não aparece assim feitinha. E é o que se denota quando todo o mundo abocanha essa coisa do "homossexual", e tem na prática consciência do carácter problemático do que semelhante conceito social designa (quando se desce aos critérios definitórios, francamente ainda não sei bem quem é que sabe o que, ou quem, é homossexual), mas emprega a categoria para a sua magia e evidência estatística como se designasse uma realidade translúcida, rigorosa e inquestionável. Vem isto a propósito do debate sobre a exclusão de homossexuais, por entre outros critérios (de causalidade directa ou extrapolação "heurística"), para a doação de sangue, que me surgiu, na minha misantropia selectiva, pela prosa do Vasco Barreto (em modo de subliminar autoridade científica encimada pela pulga de Hooke) novamente (sorry, e garanto, parece que convirá esclarecer, não ser ad homo, perdão, ad hominem), mas a ciranda passa por aqui, acolá, acoli, e outros links nesses links, que eu estou cansado...
O que particularmente me encanita (porque do resto f. já se encarregou mais que cabalmente), é a pretensão de brandir argumentos científicos e técnicos, com o efeito colateral ou direccionado de exclusão automatista (acento no automatista) de quaisquer outras considerações "mundanas", quando, curiosamente, essa argumentália parece não se interrogar sobre o rigor e validade dos pressupostos e fundamentos em que assenta.
Pessoalmente, não posso deixar de achar irónico que se pretenda determinar com uma razoabilidade técnica a ponto de autoridade, sem consideração de qualquer ponto problemático, um determinante de exclusão de presumíveis indivíduos homossexuais da doação de sangue, a partir de dados estatísticos comparativos de prevalência da infecção por HIV entre essa presumível população e a população heterossexual, se levarmos em consideração que esses cálculos de proporções dependem de meras estimativas dos universos respectivos, mesmo alargando-se os patamares de significância estatística.
Dentro da ainda mais irónica ingenuidade conceptual de tomar a homossexualidade como categoria inequívoca (at face value?) de classificação dos indivíduos, acho ainda mais piada que se considere que, na ainda ausência de testes genético ou coisa que o valha para identificação de homossexuais (damn!) para os pôr finalmente devidamente etiquetados no lugar (enfim, com umas lantejoulas para se entreterem, somos humanistas, caramba), se considere que a exclusão pelo critério da homossexualidade, tendo que ser auto-declarada (não conheço outra maneira, a menos que os técnicos de selecção estejam orientados para a busca a maneirismos, que claro TODOS os homossexuais portarão, juntamente com o sangue contaminado) seja uma forma proficiente de minimizar a entrada no sistema de indivíduos com reais riscos de transmissão de doenças pela doação de sangue. A questão muito simples é, obviamente, e apesar dos problemas novamente das estimativas (I'm no better), que provavelmente boa parte das pessoas que têm comportamentos homossexuais, ou deixando-nos de parvoíces, comportamentos sexuais de risco (para o caso, keeping up with the argument, com indivíduos do mesmo sexo), nem se reconhecem identitariamente (muito menos publicamente) como homossexuais (e pela natureza clandestina dessa sua porção de prática sexual, muito provavelmente se encontrarão com maior facilidade em circunstâncias de risco), e no entanto, na "verdade" das suas consciências, não são abrangidos por semelhante critério, e facilmente não se auto-excluirão - duvidoso, e único, critério desta generalizante selecção, o que deixa como real questão, que fica na polémica por considerar, o problema da eficácia das próprias lógicas de base da inquirição na pré-selecção para a doação de sangue, a que a introdução da questão da homossexualidade nada adianta.
O que ainda é mais irónico (it never ends), é que tais circunstâncias de prática sexual clandestina são favorecidas precisamente por essa coisa que nunca está em jogo nestas discussões tão elevadas, que é a discriminação (e não estou a pôr isto em termos de "direitos", atenção), contida no próprio uso da categoria homossexual. E é nas pequenas coisas que se vê o quanto a categoria, pretendida ser empregue como descritor tecnicamente a-problemático do real, não é usada de forma neutra: por exemplo, colocando-se a razoabilidade técnica de a presumível população homossexual ser excluída da doação de sangue se tiver, de forma estatisticamente significativa (let's pretend), maior prevalência de infecção com HIV, mas não se colocando sequer a hipótese inversa se a prevalência for maior na população (essa tem que se auto-declarar?) heterossexual.
Suspeito bem que mais ali atrás já se poderá estar a dizer que "o gajo (eu) está a ser capcioso", e que basta substituir, como alguns contendores já fazem, "homossexualidade" por "homens que fazem sexo com homens" (no caso dos homossexuais masculinos, claro, acho que as lésbicas ainda não estarão assim tão à frente), nos critérios de exclusão, e a questão resolve-se. Como não me apetece entrar em psicanálises da profundidade do self-denial ("se faço sexo com homens? claro que não!, sou eu que mando as trancadas às segundas no Parque Eduardo VII, não apanho!"), ou da fundamental distância entre a pragmática humana e a abstracção racionalista, a falácia continua a ser razoavelmente igual: o comportamento homossexual ser epitomizado como comportamento de risco. Se é preciso lembrar a tragédia, foram erros conceptuais da mesma estirpe, como a identificação de grupos de risco (e não comportamentos e situações sociais de risco), no início da epidemia, que favoreceram a situação presente de acréscimo de incidência da transmissão do HIV em populações que, não sendo identificadas como grupos de risco, continuaram tranquilamente a desenvolver os ditos, os propriamente da Bayer, efectivos comportamentos de risco.
Até se perceber que, conceptualmente, não é a "homossexualidade" que tem que ser chamada à partida para esta discussão, as investidas travestidas (et tu Brutus?) de tecnicistas a fomentar o debate nesses termos parecem ser tecnicamente improcedentes ou contraproducentes (apesar de toda a gente ter apenas e tão só a saúde pública no credo) e/ou enfermar de certa ingenuidade científica. Para esses casos, será talvez de considerar que, particularmente nessa chata turbulência dos fenómenos sociais, e particularmente quando se brinca às engenharias sociais, a fixação na explicação mais "evidente" (como tal, menos questionada), mais prêt-à-porter, mais simples, a la Occam's Razor, por vezes arrisca redundar apenas em simplismo. Para os casos em que se lêem coisinhas, só com aval científico e pura neutralidade enunciativa, como «a fonte fundamental de “democratização” do HIV é/foi o inter-cruzamento entre os diferentes grupos de risco originais e a restante população», oh tão inocente enunciação do mito da origem da epidemia a mascarar o facto de a democratização (relativa, calma lá) do HIV ser largamente uma inevitabilidade biológica e antropológica (excepto num mundo de assepsia sanitária e moral que nem se percebe como ainda não foi parido), percebe-se que às vezes já nem é ingenuidade, não é?...
(vá lá que desta feita não falei em Foucault - doh!)
(este testamento foi salvo da obliteração, no próprio dia em que se me apresenta a existência de semelhante feature, pelo autosave do Blogger. Pela autoridade do destino assim revelada, quaisquer contestações fiquem-se pela evidência: this post was meant to be)
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