sexta-feira, 17 de fevereiro de 2006

Aquém e além do choques de civilizações

Há poucos dias, no Público, numa recolha de declarações a propósito da crise supostamente dos cartoons, logo na 2ª página do jornal, aparece, fotografado e tudo, o eminente filósofo Fernando Gil, a perorar sobre os termos da "alma muçulmana", conceito altamente preciso e rigoroso que obviamente era o que faltava para explicar cabalmente todos os problemas sociais ou geopolíticos ou o diabo-a-quatro que se têm erguido sob a fachada de uma diferença civilizacional.
O que escapa a todos os cavalheiros que empregam estes raciocínios, neste caso epitomizados ao ridículo pelos dislates típicos de certa tradição filosófica portuguesa, é que se a sua lógica faz algo é irmaná-los no mesmo reducionismo colectivista e generalizante que os ditos muçulmanos que de várias formas protestam contra a publicação dos cartoons empregam para culpabilizar todo o "Ocidente" ou a Dinamarca em particular (por exemplo, através do boicote de produtos). Os termos comunitaristas viciosos desse raciocínio estão bem criticados para o lado muçulmano (não nos vão tomar por ocidentalófobos...) aqui.

O que não parece fazer a sanha civilizacional destes ocidentais épicos tão daninha é a efectiva diferença histórica no weberiano controlo legítimo dos meios de violência, parcialmente mais significativo no estado dito ocidental, e na fertilização activa mútua da razão de Estado com a "razão" religiosa.
Contudo, lembremos que inúmeras manifestações da "sensibilidade" católica se expressaram no nosso próprio querido país e alhures (o exemplo mais recente é capaz de ser este), com intencionalidades estritamente censórias no apelo ou condicionamento da acção governamental(com sucessos assinaláveis) e da própria ordenação jurídica da relação da forma laica do Estado com os cidadãos (olá, questões fracturantes). Portanto, não é por se tratar agora de geopolítica e de muçulmanos que a situação é nova nos termos da liberdade de expressão, que têm sido os privilegiados na discussão. A única diferenciação do impacto da religião nessas manifestações e nessa formatação, é que supostamente no nosso caso elas não comprometem constitucionalmente o Estado (muito menos o instrumentalizam já activamente), mas no entanto condicionam-no, ainda que sob a coberta do lastro histórico; e que, mais uma vez, em geral a natureza dessas manifestações não ameaça tanto a quebra ou abuso do controlo legítimo dos meios de violência (mas não esqueçamos que também nesse plano não é tudo pêras doces cá no burgo ocidental - vejam-se os "atentados" a clínicas de abortos nos EUA, só como um exemplo).
Mas não é esse o fulcro do problema: quando a barraca principalmente abana é quando os principais detentores desse controlo legítimo dos meios de violência, em ambos os casos os Estados, decidem empregá-lo. Claro que esse controlo é articulado de forma diferente com as apropriações não estatais dos meios de violência, nomeadamente no terrorismo: no caso islâmico, por vezes, com o apoio subreptício (digamos) de certos estados contra outros estados. No caso ocidental (também cá há terrorismo, lembram-se?), geralmente dentro dos estados, contra os estados, e as imposições históricas (pelo controlo da violência) da sua forma política a circunscrições étnicas não conformes a essa forma de territorialização. Diferença não dispicienda. Mas considerando que a lógica de raciocínio parece ser bastamente partilhada entre "ocidentais" e "muçulmanos", numa lógica sistémica, ainda que os rastilhos pareçam ser acesos e de forma mais incontrolável do lado muçulmano (coisa também absolutamente não dispicienda, independentemente de rastilhos ocidentais se porem a jeito, que também não é o fulcro da questão, e pelo que nenhum governo se deve "desculpar"), a propensão para o espoletar de um choque civilizacional parece tornar-se bastante partilhada, num fechamento estratégico que não faz grande honra à abertura e razoabilidade genérica dos princípios que andamos (quase) todos para aqui a defender.

Ou seja, às vezes o veneno contra os nossos belos (sim, belos) princípios abstractos (sim, abstractos, e isto não é nenhum "mas" à defesa da liberdade de expressão, é apenas sublinhar que um princípio abstracto não se confunde nunca com aas suas condições e termos de aplicação concreta, sublinhar esse, necessário para a optimização da sustentação efectiva da aplicação desse princípio - vejam-se aqui, e meio a despropósito mas a jeito aqui, tópicos quasi-inexplorados em tanto paleio sobre liberdade de expressão; aliás, em nome do princípio da liberdade de expressão seria interessante aproveitarmos a ocasião para lembrar que há vários limites instituídos nas ordens políticas de estados ocidentais à dita cuja), vem de dentro.
Fernando Gil, na sua retórica fundamentalista (ah pois, há lá coisa mais fundamentalista que agregar a uma colectividade de geometria variável uma alma inescapável? - e não me venham dizer que ele quer dizer outra coisa como "civilização" ou "cultura", vocábulos que estou certo, apesar do absolutismo conceptual, não desconhece, e preteriu conscientemente) notwithstanding pró-ocidental, emprega a sua liberdade de expressão para lhe dar o pior emprego possível na suposta defesa o mais ampla possível dessa mesma liberdade, que parece excluir "animicamente" uma bela porção "irrecuperável" da humanidade. Uma bela contradição nos termos. Ou seja, este episódio também tem sido instrumentalizado do "lado ocidental" para falar encapotadamente de algo mais do que a defesa da liberdade de expressão e alimentar a pretensão de um choque de civilizações, aliás, perdão, de almas. Ou seja, nem tanto ao Gil, nem tanto ao Freitas.
Reforçar a argumentália aprioristica das civilizações, enquanto tal, é criar o húmus propício para que estratégias estatais e políticas identificáveis germinem fenómenos que efectivamente cada vez mais se expandam desse referente ideológico e táctico específico para uma legitimação civilizacional toda-abrangente. A isso, em parte, se chama profecias que se cumprem a si mesmas.

Pela minha parte, se, depois de ler estas coisas de almas e tal, virar taliban, em memória do meu querido antigo self já sabem quem é que podem pôr em tribunal.

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