domingo, 25 de março de 2007

O direito do avesso

Não, agora menos a sério: anda meio mundo estupefacto com as "previsões" do resultado da votação mais palerma de sempre para o maior português de sempre, com Salazar na liderança. Francamente, o resultado da coisa ser-me-á perfeitamente indiferente, e não tenciono gastar uma linha com o facto consumado. É certo que a coisa resulta um indicador, por muito dúbio que seja (e é), das formas e motivos de mobilização social em Portugal, neste tipo de arenas pronunciativas, resguardadas de razoabilidade na sua esteira simbólica; agora, coisa muito diferente, e equívoca, é dar-lhe substância política directa, "suspendendo a descrença" na sua ficção representativa (basta ver a estrutura dos nossos padrões eleitorais).
Já quanto aos cabecilhas deste atentado à história e à ideia própria de democracia (em cheio, serviço público de televisão), a coroação salazarista seria, na verdade, o fim certeiro das suas estouvadas brincadeiras. Na sua incepção, este é o tipo de iniciativa que, na linha directa do concurso para a "Aldeia mais portuguesa de Portugal", fariam a propaganda salazarista de António Ferro corar de orgulho, com a sua epitomização e essencialização nacionalista, reduzindo toda a imensa complexidade e contradição da história dessa coisa, já de si contingente e inventada, que se chama um país, a uma só ideia simbólica absolutizada, que force um só sentido de identificação e pertença a semelhante entidade (com todos os potenciais de exclusão simbólica - só para começar - que tal implica). Nada mais adequado, pois, que a sagração da lógica ideológica que a ancora.
Do lado de quem se inscreveu neste mecanismo de perversão do espaço público, não é senão paradoxo e ironia eloquentes, ter uma agregação de portugueses a empregar o simulacro de um voto para provar que não têm juízo para (e dispensariam o direito de) o exercer.
Tudo somado, temos mais uma profecia que se cumpre a si mesma, com um epílogo surpreendente para a saga nacional-pessimista. Que tudo isto ocorra nos paços de uma democracia, é uma de tantas ilustrações de que há criações humanas que suplantam as limitações dos seus usuários. Mas já ia sendo tempo de estes lerem o modo de usar. Poderíamos começar humildemente por pensar que, se calhar, erravam as lamentações de que o país que temos é o que merecemos. Começam a avolumar-se suspeitas de que o país que temos consegue ser melhor que nós. Falta saber até quando nos conseguirá resistir, se não fizermos do espaço público mais e melhor que isto.

Nota: vozes indignaram-se com a ausência de Mário Soares na "final". Obviamente, Soares safou-se foi de boa. A ninguém de bem seria recomendável semelhante galardão.

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