quinta-feira, 3 de novembro de 2005

Mulher de Chico

«Sou Ana do dique e das docas / Da compra, da venda, da troca das pernas / Dos braços, das bocas, do lixo, dos bichos, das fichas / Sou Ana das loucas /Até amanhã /
Sou Ana, da cama / Da cana, fulana, bacana / Sou Ana de Amsterdam»


Concordava em caixa de comentário passada que Ana de Amesterdam seria provavelmente, das vitrines de Chico (Buarque, para quem desconheça o seu exclusivo identitário no uso público estrito do primeiro nome), o retrato de mulher com mais impacto. Por razões que dizem respeito a mim e à vida comprovada que tomam as pessoas personagens, como Ana, hoje, 3 de Novembro, é o dia em que me faz sentido relembrar essa singularidade poética.

Nunca fui particular adepto de uma tese, bastante veiculada nos meios brasileiros, que defende como uma central característica de Chico o conhecimento profundo do sentir feminino. Não só por não sustentar qualquer universalismo sobre o que raio seja um sentir feminino, como por a própria abordagem, frequente é certo, mas não mais que outras, do feminino na imaculada obra do imaculado autor não sustentar um tal universalismo.
O dado interessante que faz a citada singularidade de Ana de Amesterdam, é que as mulheres de Chico, nominais ou não, são geralmente mulheres situadas. Ou seja, aquilo que Chico desvela, e é apreendido nas generalizações vulgares como uma especificidade do feminino, são condições situadas do ser feminino, tal como é apreensível numa dada realidade. E das mulheres em situação que se retiram os traços da sua caracterização e condição, com os quais o contexto da canção se articula em dialéctica, desvelando naquela perfeita decantação sua mútua constituição.

Porque será então Ana de Amesterdam o retrato mais impactante de mulher de Chico? Porque Ana é Ana. «Sou Ana, obrigada». Ana não se define em situação. Ana incorpora a situação num ser que desenha o seu fim de percurso. Ana é Ana. Sou eu, estou aqui, assim me fiz, acabou.
Ana retrata-se e apresenta-se, implacável, nos termos do seu ser. Ana é o que se fez, tem história, mas essa história cristalizou-a no retrato, implacável e dito irreparável, da crua condição.
«Sou Ana dos dentes rangendo / E dos olhos enxutos»
Ana é o choque, a cicatriz na cara, a carne demasiada, o excesso do real humano. Nada é, no seu presente, tão radical como este retrato, entre as mulheres de Chico. O que implica que a geralmente presente tematização emancipatória (ugh) em Chico, neste retrato segue uma possibilidade diferente.
Este retrato relata o passado para se fechar no presente. Relata-o no sarcasmo, sarro, da ruga do saber pútrido que escarnece. E no entanto, a redenção (palavra, é vero, insensata, como palavra, mas não como possibilidade, neste contexto) jaz no que o presente nega. Ana recita-se como hoje encerrado, orgulhoso de raivosa e resoluta resignação de personagem estragada. Cinismo ácido contra a própria face. Desprezo por um olhar de compaixão, reflectido no escarnecer do percurso da sua própria antecessora (que outro nome portaria, porque só agora esta é Ana de Amesterdam).
«Eu cruzei um oceano / Na esperança de casar / Fiz mil bocas pra Solano / Fui beijada por Gaspar»
E, no entanto, no sentido desse retrato está a esperançosa acção que nesse percurso a depositou. O orgulho do horror só nasce em contraponto: a linhagem da esperança no esplendor.
«Arrisquei muita braçada / Na esperança de outro mar / Hoje sou carta marcada / Hoje sou jogo de azar»
O discurso sempre foi um instrumento da nossa própria denúncia. Dificilmente as nossas palavras já nos salvaguardam, elas falam mais que o que polimos na sua superfície. No que na crua ferida se escancara é a carne que outrora a reunia. A ferida só acaba quando é oculto o seu queimar. Mas o que arde se geme, queixa ou rememora. Neste retrato final de existência morta de esperança outra, a esperança outra que nela culminou é invocada para a ratificar defunta, para traçar a linha do não retorno.
Mas o que se enuncia é que o passado é mais infeccioso que as chagas «da brasa dos brutos na coxa / que apaga charutos». O que se enuncia é que nada termina final quando o começo ainda é memória. O que se enuncia é que Ana tombou toda a ladeira e se queda na espera negada, de quem na lama entranhada vislumbre luz cerrada, e no mais opaco dos poços consiga um outro despertar.
Nada disto é sugerido, per se, evidentemente. Mas é a sua possibilidade estrutural. Quanto maior a queda relembrada, mais alta a redenção, calada, para não nos dilacerar insuportável a esperança proporcional de alcançar. E no fundo do último reduto, Ana anuncia não querer a sua, como a mais invisível carta onde ocultar o apelo. O que se enuncia, é que não haja fins em vida absolutos. Não seria humano o seu escutar.
Ana ainda canta por trás do seu escarrar. Haja quem saiba escutar.
E poucos mais que Chico, quem saiba cantá-la também, mesmo quando no dique das docas, na cama, nas Índias, nas barcas.
Nas marcas, nas marcas.

6 comentários:

Anónimo disse...

Querido, o que posso dizer? Estou com os olhos úmidos. Porque Ana de Amsterdam tem os olhos enxutos quando confrontada com a miséria, o escárnio e o abandono que são parte intrínsica da sua vida, mas com certeza choraria diante de tamanha delicadeza.

Anónimo disse...

Ahhh, chega mais, vá. Deixa eu enxugar, do jeito humano de enxugar, nã de secar a fonte.

Anónimo disse...

Julinho...!!!! Boa!

Anónimo disse...

Pô, pk?!!! ;-))

Anónimo disse...

Que raio é que se passou aqui?!
Começo a não perceber o que se passa nestas caixas de comentários... Mas enfim, estejam à vontade.

Anónimo disse...

Hehehehe, Julinho, faz sentido...! É um blog democrático. Força! :)...