O Realismo Leviano
O artigo de Vasco Pulido Valente no Público de sexta-feira sobre a não-ordenação de homossexuais não é propriamente exemplo do que atrás se discutia, porque me parece que o tipo de argumentação, que pode validar, de facto, proposições institucionais homofóbicas (ainda que de uma «entidade privada»), deriva mais de uma lógica analítica que caracteriza o autor, do que de uma qualquer motivação homofóbica. E motivações, não convém julgá-las ou apontá-las levianamente. Mas convém ver que possibilidades discursivas se instalam em certos argumentos. E estes interessaram-nos particularmente, porque é neste tipo de retórica realista que muitas vezes intencionalidades homofóbicas se fazem por escudar (mais uma vez, não dizemos que seja, aqui, intencionalmente o caso).
O que move VPV não é a defesa nem a condenação da decisão de Ratzinger. É o insensato da contestação “politicamente correcta” dessa decisão, face à realidade social a que se refere, relativamente à qual essa contestação estaria muito equivocada (e, conceda-se, até pode estar). Argumenta que a proibição da ordenação de padres homossexuais é apenas uma consequência lógica (ou, mais equivocadamente, «reiteração») da doutrina católica sobre a matéria; que a Igreja Católica é uma «entidade privada», como tal liberta para exercer as suas próprias regulamentações internas, como , "quem entra"; e, num tocante momento de compreensão weberiana, pergunta-se «que homossexual precisa de uma igreja que o condena e humilha?».
Quanto a estes argumentos concretos, vejamos: essa proibição não decorre linearmente da doutrina católica, dada a manutenção da castidade e celibato como condição para o exercício do sacerdócio, e dado o facto de lhe ser normativamente inédita. Como tal, essa proibição decorre de uma extensão institucional de uma concepção epistémica e ontologizante, de facto condenatória, da homossexualidade, para um campo onde até agora não se tinha manifestado, por razões precisamente de doutrina, mas provavelmente também práticas (e daí, ao contrário do que acha VPV, a questão da pedofilia, também não é, de todo, de descartar como absurda nesta decisão, já que a Igreja também sabe qualquer coisa de relações públicas: as temporalidades não são só feitas de acaso, e as condições representacionais de associação entre pedofilia e homossexualidade estão aí mais que visíveis e disponíveis, por inválidas que normativamente se diga que sejam).
Tal implica que, mesmo sendo a Igreja Católica uma entidade privada, e com um estatuto complexo de relação com a constituição política dos estados onde se insere, no mínimo, não decorre daí que deva ser imune à crítica social, seja ela qual for, nas suas temáticas e fontes de enunciação, quanto mais não seja porque é fonte de proposições culturais que afectam a construcção de imagens e representações que, neste caso, no mínimo, a quem se define/é definido, como homossexual, dizem directamente respeito. O facto de se dever diferenciar juízos de facto e de valor, em linguagem científica, nunca implicou o esvaziar da possibilidade de enquanto cidadãos os indivíduos exprimirem juízos de valor sobre o real. Estivéssemos a falar de etnocentrismo, e a conversa realista seria exactamente a inversa.
Quanto a uns certamente masoquistas homossexuais que, vá-se lá perceber, querem pertencer a uma instituição que os estigmatiza, creio que, para um cientista social como VPV, não será difícil perceber que não é só Deus who moves in mysterious ways. Tal como relativamente às mulheres, esta restrição do sacerdócio implica um problema teológico para indivíduos que se reconhecem numa fé (processo que pelas próprias dinâmicas de socialização pode não ter tanto de escolha quanto isso, anulando “eticamente”, face à instituição, o argumento relativamente aos descontentes: «eles se arranjem»), e se vêem impedidos de certas formas de exercício da mesma, principalmente se é teologicamente disputável (internamente aos próprios exegetas oficiais) a base doutrinária para tal. Como entidade privada, e como tal terrena, a Igreja também deve ser considerada como legítimo campo de contestação das suas práticas e doutrinas, ainda que daí não se derivem, ou seja legítimo derivar, outras consequências (como políticas e jurídicas: isso é outra conversa).
Daí o perigo deste tipo de análise pretensamente realista. Aquilo que VPV está essencialmente a contestar não é a natureza dos argumentos anti-discriminatórios avançados, mas o próprio acto de protestar contra o que, na sua análise, é assunto apenas da Igreja (que fica reduzida à sua hierarquia institucional – os fiéis não são tidos nem achados). No desencanto desértico que o tomou, VPV restringe o discurso social válido a um realismo truncado que estiola qualquer margem de crítica face ao que é, assumindo assim uma postura valorativa face à crítica, legitimando a sua postura com base em aparentes juízos de facto. Ora, por muito que se queira desconstruir os termos de uma contestação (e não me parece que tal fosse, nesta argumentação, conseguido), desconstruir a possibilidade dessa contestação é um passo que me parece que se vai tomando, e que conhece abismos pouco aconselháveis. É que também o realismo não se deve exercer levianamente.
1 comentário:
tens a certeza q sabes o q dizes?
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