segunda-feira, 7 de novembro de 2005

Lost "By" Translation

O material audiovisual é a fracção do universo da tradução nacional onde provavelmente se atingiu o grau zero da estrita competência profissional e cultural (desengane-se quem julga que são matérias separadas e que uns cursozinhos à maneira e a despachar formam o pessoal para o mister – quem neste ponto julgue que isto vai ter a ver com futebol tem um sério problema). Quem domine a língua original (expressão de cautela para o 1% da programação não lusófona que não chega em inglês) da matéria traduzida é constantemente, em cinema e televisão, esbofeteado por recorrentes erros de tradução, daqueles nem susceptíveis de divergência interpretativa, derivados de puro desconhecimento da língua em que se trabalha (ou das línguas, para abarcar em maior amplitude o problema, já que fica difícil traduzir para português quando também não se domina o português). Como é que se criam formas especializadas de aprendizagem e certificação destas competências para chegarmos a estes resultados é indicador directo da indigência da formação especializada neste país, mas é também sintoma de problemas mais profundos, que é a formal inanidade intelectual generalizada em que alegremente se deixa escorregar proporções cada vez mais amplas da população, não obstante estenderem a escolaridade obrigatória até ao pós-doutoramento. Provavelmente para que, com cada vez mais cara de pau, se vir poder a fazer o elogio das elites.
Isto vem a propósito de traduções, porquê?
Porque, recentemente, ao rever «A Última Tentação de Cristo» na televisão deparei-me com o que no domínio da hermenêutica estratosférica poderia ser discutido como uma divergência interpretativa, mas é uma opção de tradução absurda, a raiar o obsceno, a denunciar a lógica invertebrada e fragmentária a partir da qual se cada vez mais se aborda uma tradução: na frase final do filme, que, para quem não sabe, é um thriller sofisticado de espionagem com uma pitada de humor, Jesus, (re)crucificado, restaurando a condição de Cordeiro de Deus após ter sido tentado por Satanás a abandonar o sacrifício na cruz para viver o resto da vida como homem comum, profere:
«it is accomplished».
Tradução:
«Missão cumprida».

O que me lembrou o exemplo mais inconcebível de tradução desmiolada com que já me deparei. Notem como, quando o tradutor não sabe a que é que uma palavra se refere, por incompetência ou por ignorância de um patamar mínimo de cultura geral, tende a optar por duas soluções prêt-à-porter: ou por grafá-la de forma onomatopaica, quando pode ser uma palavra com tradução; ou por traduzir literalmente aquilo que é uma designação nominal ou expressão idiomática.
Por mais racionalização que se aplique, recuso-me a conceber como concebível (mas a realidade está sempre um passo à nossa frente) que num dos filmes de terror chunga que saudosamente passavam nas “Sessões da Meia-Noite” (que infelizmente não era de porno, como o nome sugere) ou coisa assim, das madrugadas da RTP1 há largos anos, numa cena em que o assassino arrastava o corpo da sua obesa vítima e resmoniava «You Moby Dick», me apareça no rodapé a legenda «Seu Moby pila».
Por uma vez, não foram as atrocidades sanguinárias da película que me deram pesadelos nessa noite.

3 comentários:

Anónimo disse...

E se aceitassemos o poder criativo do erro ou da ignorância...?

Anónimo disse...

Para reconhecer o poder criativo do erro ou da ignorância é já necessário reconhecê-lo como erro ou ignorância. Caso contrário estamos a tomar o erro não como criativo mas como imagem correcta do real.Pelo que, podemos rir-nos da incúria inventiva, quando é deste nível de picaresco, mas o desastre permanece, no picaresco e em tudo o que ele implica e nele desagua, e é mais gravoso que tal magra compensação para o riso altaneiro.

Anónimo disse...

fixe !