"No problemo" (it's just «a matter of life and death»)
Assinalou-se dia 2 de Dezembro a milésima execução legal de um ser humano nos Estados Unidos da América (não obstante a honrosa excepção de 12 estados - somente - que não contemplam essa pena no seu sistema legal), desde que a pena de morte foi reinstaurada em 1976.
Ao mesmo tempo, chegava à minha caixa de correio uma mensagem de corrente emanada originalmente da secção portuguesa da Amnistia Internacional, com uma carta pré-formatada, para pedir ao governador da California (Schwarzeneger lui-même) clemência (reparem como no mesmo acto se combina a possibilidade de apelo consequente à salvação da carne, e a necessidade de um acto de suposta excepcionalidade benigna e toda-poderosa por parte da autoridade personificada: they do play God) em face da agendada execução de Stanley Williams.
Williams, referido como tendo um percurso de redenção pessoal particularmente meritório em intervenção social pós-encarceramento, é apresentado como um dos casos mais abonatórios para a contestação de tal forma final (eliminando consequentemente a possibilidade do tão "cristão" arrependimento e de minimização e compensação pelos crimes, que por aquém que sejam de todo o acto criminoso, sempre são mais do que o irreparável, infértil, e potencialmente equívoco ceifar de uma vida) de punição (sendo que a percepção da possibilidade dessas "excepcionalidades" à justeza da aplicação da pena de morte poderá nas boas consciências ser matizada pela possibilidade referida e perversa da clemência pessoal do governador).
Não literalmente pelo senhor em si, mas, ainda que de forma relativa, tomando-o como sujeito a forma de punição que rejeito, enquanto ser humano, confrontado com a aceitabilidade social feita realidade política e judicial de seres humanos se confrontarem com ela, lá reenviei, violentando a minha relutância subjectiva e imobilidade corporal a agregações, o mail pré-formatado para o endereço do governador (ainda que, na minha relutância a estes processos de agregação informática, duvidando do sentido disto).
Eis que no dia seguinte me deparo com duas respostas na volta do correio: uma primeira, resposta pré-formatada do gabinete do governador a todos os mails que entram, a agradecer a correspondência e a avisar que a resposta podia demorar... E uma segunda, certamente igualmente pré-formatada, "assinada" pela secretária para os assuntos legais do governador, a informar do processo, dos trâmites legais envolvidos na ordem execução e pedido de clemência, e agradecendo muito polidamente a correspondência, garantindo que o governador iria tê-la em conta na tomada de uma decisão.
Passado o espanto da eficácia informacional (e não comunicacional) da governação por aquelas bandas, me apercebi de como assim, trocando documentos pré-formatados, polidos e sensatos, se vai esvaindo a discussão da vida e da morte dos homens, de a quem cabe (se a alguém cabe) decidi-la, em que circunstâncias, porque meios (a obscena tecnocracia da morte no seu esplendor).
Suponho pois que essa polidez organizada (à qual o realismo organizacional obriga a agregar-se esta estratégia da própria Amnistia Internacional) seja mais uma das vias pelas quais se elabora e mantém a delicada e suave tessitura da civilização, e o estiolar da crítica no realismo político (quando em nomes de outros "valores" "civilizacionais" outros realismos vão sendo alegremente descartados).
Pois, na face da civilização, e não rejeitando necessariamente a ideia dela, mas fazendo-a outra, ainda que em comparativamente impotente discurso, só me resta escrever, para me relembrar, que na engrenagem da civilização desses senhores, a pena de morte é, persiste, um pilar de barbárie. Esta sua ornamentação, talvez cumpra importante função social, mas de momento, nestes momentos, só me pode suscitar repulsa.
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