«Wouldn't you miss me at all?»
A morte é dia de arrumar recordações e passados. Carimbar trajectos com o selo redutor de um sentido sobrepujante. Com crónicas de morte anunciada, a coisa é mais fácil e expedita. Syd Barrett tinha epitáfio escrito há décadas, e os escribas da morgue só esperavam indiferentes que o senhor se dignasse a entregar o corpo à encomenda antecipada. "Génio" e "louco". Ou o "génio louco"? Pequenas efabulações, de fontes ignotas, eram impressas de vez em quando, a forçar a imagética da clausura quotidiana de um alienado, a dar consistência à classificação pré-formatada. Absolutismos e reducionismos para demarcar bem o campo: houve Pink Floyd sem Barrett? Houve Barrett sem Pink Foyd? O entretém dos exegetas da distinção auditiva.
O que me atinge como a maior singularidade de ouvir Barrett ainda hoje, principalmente hoje, é que provavelmente é da música mais despida de cálculo que já nos assaltou. Em tempos em que, provavelmente com justeza, a genuinidade das intenções, o cinismo de um arranjo, são esquadrinhados para dizer da entrega segura dos nossos amparos a uma voz, ouvir Barrett é uma espécie de ablução. Nos momentos mais libertos do que se conceba como produção, soa como se nada fosse pensado para ter um efeito determinado, concebido e antecipado para extrair uma reacção ao auditor. Criação descomprometida do que num cérebro ciranda. Que o cérebro fosse aquele, claro, é o que o salva da confrangedora redundância. Como se uma criança (daquelas inocentes, se ainda há disso) cantasse despudoradamente da fantasia que experiencia em corpo adulto. É isso que o torna tão desequilibrado. É isso que o torna tão desarmante.
Lembro-me de assistir, jovenzito, à conversa de dois would-be melómanos, em que, començando um a entoar o «Astronomy Domine», o outro o interpela escarninho «ainda ouves isso?!». Em vez da defensiva justificação, o trauteador deveria claramente retorquir no tom equiparado «Tu não?!». «Astronomy Domine» é não só uma canção bela até ao espanto, é não só uma canção perfeita em tempos de dissolução formal, é provavelmente a canção-farol que congrega fulgurante e absoluta num só corpo todos idiomas musicais que se acoitaram sob o que em diferentes espaços-tempos se convencionou chamar psicadélico. E se com os Pink Floyd a música de Barrett envergava fulgor formal, não quer dizer que no vagabundo trejeito em que emergem os seus resquícios musicais a solo o universo de candura ensandecida (como é doloroso ouvir o desespero começar a ensombrecer a ideia de um país das maravilhas) fosse outro...
Há uma canção que, sabe-se lá porquê (embora pudesse saber), ora por vez me vem à mente, chamada «The Gnome», pura descrição de fantasia terrestre descomprometida de intenções.
Agora que penso nisso (é obscena a actualização contabilística da memória acorrentada às campas) trauteá-la pode ter sido dos poucos prazeres impolutos que conheci.
Agora que penso nisso (é obscena a actualização contabilística da memória acorrentada às campas) trauteá-la pode ter sido dos poucos prazeres impolutos que conheci.
E agora vou limpar da face o requintado projéctil salivar que Barrett, felino mais visionário que todos os redutores de real, louco mais sabido que as presunções populares de proto-psiquiatrias, antecipadamente lançou a quem pretendesse fixar-lhe epitáfio:
Deixa-me um irreprimível sorriso nos lábios a ideia de um morto nos levar a melhor.
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