terça-feira, 3 de abril de 2007

A estratégia da aranha

Pode ter a sua graça, mas não lhe tenho achado piada nenhum. Entre várias razões, incluindo a vaga chama de acontecimento público com que alguns ciclos da Cinemateca se têm apresentado (ou a profecia da multiplicação de espectadores de Langlois vertida em maldição individual), tenho vindo a não conseguir assistir a alguns tomos centrais de certas obras. Papei bastante do recente ciclo do Murnau, mas precisamente o Nosferatu escapou-se-me por entre as mãos. Andei imerso em Rossellini, mas o Roma Cittá Aperta, está quieto, e por duas tentativas. Curiosamente (temos que consolar-nos com algo até a carência perder sentido), tornou-se-me mais claro ser um exercício fascinante, abordar uma obra a partir das suas margens, em que a processualidade e/ou a tentativa desequilibrada deixam entrever com maior clareza a especificidade do seu dialecto.
Há algo de estranhamente galvanizante em assistir a uma estética a lavrar ao arrepio de ditames de encomenda propagandística.
Há algo de luminoso em descobrir mais desabridamente em capítulos de estilística atípica (como as "comédias" - apesar da relativa ironia de alguém lhes chamar, mesmo com os chamamentos simbólicos e programáticos a tal, comédias) as mais sintomáticas incepções idiomáticas de uma visão do mundo, como lugares hermenêuticos privilegiados em que essa visão e a linguagem que constitutivamente a alberga têm que divisar sintaxes para se veicular ao arrepio da comodidade formal.
Ou encontrar numa das suas revisitações do contexto italiano da 2ª Guerra Mundial, no seu período mais desconsiderado (entre a Bergman e o projecto pedagógico televisivo, fora os filmes sob o fascismo), uma desconcertante transposição formal, para a experiência de um filme, da expressão que se quer dar da vida representada. Se o meu senso comum para generalizações abusivas ainda estiver operacional, presumo que serão poucos os espectadores inocentes do filme, cujo título omito (quem quiser saber pouco tem que pesquisar) para não ser ironicamente acusado de spoiler, que não presumirão, ao cabo de uma hora e tal de filme, com a morte de um protagonista, e o fim do huis clos invertido que concentra a narrativa, que o filme estará a terminar. Mas não finda. Dura, e dura, e durará talvez mais uma hora e meia (tempo para outro filme), arrastando-se talvez (e precisamente) ao exaspero, esvaíndo-se (ironicamente, ao mesmo tempo que se abre) a narrativa das pessoas que a ancoravam e dos mundos que albergavam e sua perspectiva, até que ao final, com o sinal do término da guerra, o que fica a quem resta, por entre a encenação colectiva de libertação e euforia, e a quem olhava e se descobre em estranha alquimia transpondo a distância emocional e intelectual (importante) do projectado no ecrã (salvas todas as distâncias...), é, longe de qualquer gáudio, alívio ou satisfação, mais que um nó na garganta, mas fruto desta durée exangue (na história como no celulóide), um insanável vazio na alma.
Eu sei que isto deveria pelo menos ter o arremedo de uma punch-line qualquer para os requisitos primários de apresentabilidade, mas, sob o signo da santa improcedência, hoje não me apetece falhar o esforço.

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