Obviamente, deslinko-o
Aparentemente, o Da Literatura terá granjeado leitores com desatinos algo bizarros, como apontarem o facto de no seu blogroll (aprendam) não constarem alguns notáveis da primeira liga de blogues (as fronteiras parecem ainda não estar perfeitamente muradas, mas não entrem em pânico, estamos a trabalhar com afinco nesse sentido). Até aí, tudo bem mal. O naco de harmonia mundi que faltava é que, pela resposta, o Da Literatura parece fazer por corresponder aos desatinos desses seus leitores with a vengeance.
Nem concebia que a desautorização desse postulado de uma elite comummente identificada e correlativo imperativo de a entronizar incólume na sua estratificação de evidência imanente em todo e cada blogroll, ou pelo menos nos dos correlegionários de casta, tivesse de se justificar com mais que a saudável pluralidade de afinidades intelectuais, temáticas, e outras, que, dentre todo o espectro de saudável coabitação silente do meio (caramba, não há gangbang capaz de tornar o amor blogosférico, ou outro, democrático), seleccione ou sinalize alguns pináculos ou interlocutores com os quais a sua identidade retórica produtivamente se construa publicamente (e gostaria de crer que poucos desdenharão democraticamente com tanto desafogo tanta parte da blogosfera quanto eu). Mas não; Eduardo Pitta desfia, com o aprumo com que se recita uma lição há muito canónica nos manuais, o devido processo que conduz ao reconhecimento inter pares devidamente dependurado nos links da prache, com inatacável e desempoeirada honestidade (faça-se inteira justiça) que resgata do subentendido, tão partilhado quanto não assumido (porque somos todos adoráveis, evidente), algumas das políticas e dinâmicas sociais de estratificação blogosférica que a parecem fazer regida por lei consuetudinária da Cosa Nostra.
Partindo do pressuposto de que uma lista de links ainda cumpra um papel de associação e recomendação simbólica de interlocutores que, pelos mais diversos e livres critérios que formatam um perfil de blog, se entenda destacar de um campo razoável de possíveis, é certo que a meritocracia abstracta (essa ou outra), em qualquer sistema, é um mito de boas consciências; mas daí a ratificar-lhe os enviesamentos (entre a incorporação ou proposição subjectiva e a sedimentação "institucional") há um salto axiológico que não apenas a mera pragmática de saber ascender ao quadro de honra.
Assim, ao que, para quem não soubesse, consta, não para ter, mas para começar por merecer reconhecimento, qualquer newcomer com ambições deve começar por prestar vassalagem aos senhores da terra e ofertar-lhe o que a tradição convencionou ser um link. Por certo que quem não tenha redes estabelecidas (externas e/ou internas) de passa-palavra para se permitir o distanciamento do sujo mercantilismo dos links (situação de não retorno que já não choca esta política de reciprocidade estratificada, porque não constitui uma omissão electiva, mas como se não sinalizasse já um reconhecimento adquirido refastelado à espera do que lhe é devido) dificilmente poderá dispensar tal etapa para se publicar com propósito, isto se dispensar o distanciamento de recurso de não escrever para ser lido. Mas, tendo-se o bloguista estabelecido com seu respectivo grau de notoriedade (logo, ultrapassada a mera lógica de retorno na produção do seu leitorado e apelo reticular), na lógica que esta política reitera, o seu reconhecimento continua, quando muito, recatado na coluna dos favorites do computador pessoal, se o acto inaugural da vassalagem não tiver sido performado. Ou seja, para lá da mera necessidade de alguém se dar a ser lido para ser conhecido, aqui a manifestação da afinidade é função dependente da reciprocidade, tal como o mecanismo de reconhecimento público opera não pela dádiva mas pela dívida: a dívida original de cada noviço para com os antepassados reinantes, que a não ser redimida pelo beija-mão iniciático, tornará qualquer manifestação autónoma de respeito cativa da disposição instituída do despeito. Coisa que, combinada com a ebriedade do poder, de primeira liga, de enunciação e entronização dos seguidores, passa para a paranóia de politburo (qualquer referência política é inteiramente gratuita, esclareça-se), em que a ausência de vassalagem primeira se interpreta como um acto consciente de dissidência e quase contestação da liderança bloguística no trono («rasura», é o termo). Escolhas que cada um faz, coisa com a qual, naturalmente, ninguém tem nada a ver, já que a indiferença aplicada nem é o controlo dos meios de violência do pedaço. Qual independência de espírito, qual juízo desempoeirado da apreciação desinteressada: qual lei científica da gravitação blogosférica, reitera-se, «não havendo reciprocidade, nada justifica o elo». Gravitação de um mundo onde a meritocracia (se quisermos usar a palavra...) desejavelmente concebível não fosse precisamente uma manifestação plural, descoincidente, de interesses e lógicas diversos, mas apenas a legitimação unitarista em segunda mão de um mecanismo estatutário primordial, centrado antes de mais em controlar a reprodução social de um status quo (ou se preferirem a imortal formulação dos clássicos: "és dos meus, és fixe").
Ora, compreenda-se, se isto fosse um arremesso de sociologia espontânea sobre a mecânica de notoriedade blogosférica, seria uma descrição provavelmente assaz certeira. Todavia, o que aqui se produz não é um juízo de facto, mas um juízo de valor. O que aqui se descreve não é uma inevitabilidade pragmática, mas uma proposição normativa, um avé a uma versão particularmente estratificada da realpolitik de um sistema de castas blogosférico. Tanto o é, que o momento auto-irónico do ano é o seu distanciamento da noção de blogues de primeira divisão: é fácil de ver que, não fosse todo este um raciocínio de primeira divisão, e a política do Da Literatura fosse enunciada para todo o bloguista seguir, se calcula que a "autoridade" de links que lhe será ora outorgada, certamente exponenciadíssima face ao número de links do seu blogroll, descambaria por aí abaixo - sendo ainda mais certo que o Da Literatura não tem culpa que os seus leitores-linkadores unidireccionais (como eu) sejam tansos, para mais quando até tem a ombridade de os alertar para o facto.
Portanto, mesmo com a inércia de não partir a cabeça lançando-me contra factos consumados, não é indiferente não deixar grafada a concepção de possibilidade de outros modos, para lá da circularidade anquilosante, de produzir discurso e reconhecimento reticulares neste meio (é democrático, e também ninguém tem nada com isso, a caixinha de areia dos inconsequentes); pelo que, da inestimável posição de nada ter a perder ou ganhar, deixo apenas registado que o Da Literatura e a política feudal que aqui abnegadamente simboliza e diligentemente reitera deixam, com cordata discordância, de estar na lista de comendações que pelas inefáveis diversas razões me calha assinalar, (des)reconhecimento notwithstanding, nesta promessa cada vez mais truncada de esfera pública.
Gesto, poderíeis argumentar, materialmente injusto considerando a amplitude não denodadamente assumida desta política pelo resto da blogosfera. É certo, mas a sua potência é aqui meramente simbólica, na face de uma oportunidade enunciativa cuja lógica, e não cujo autor que por tal se não vê molestado, é visada. Nada obstará mesmo a que possa reincidir na sua leitura episódica no mesmo recanto ensombrado de um cibercafé remoto, para não deixar vestígios cibernéticos, em que o Da Literatura consultará (ou não) os seus notáveis não-linkados; essoutra, quem sabe mais límpida, forma de recomendação (abrutpus dixit ad exhaustiore(?)). Felizmente, nada há que temer na Bastilha (o mundo real é tão reassuring): hoje somos apenas um, mas amanhã continuaremos a sê-lo.