sexta-feira, 7 de março de 2008

Nous n'avons jamais (pas) étés modernes

Como é, por razões a desconhecer, imperativo, já vou tarde, mas não tarde demais. Parecerá igualmente que o André Dias está a ficar com uma quota fixa no citation index do pedaço, mas garanto que não ando a trocar favores de natureza dúbia senão com todas as outras pessoas com quem ando a trocar favores de natureza dúbia. É que o cavalheiro, após ter reiterado, com o ciclo dedicado à dita Nova Escola de Berlim, a valência dramática da excisão da ostentação dramática, de que este excerto é a evocação mais eloquente, lançou mãos a novo empreendimento de programação, com sentido de oportunidade e dedo aprumados, apontando a um dos ainda e cada vez mais (há quanto tempo não digo que o tio Michel é o maior?) temas candentes do pensamento social contemporâneo (whatever) - a biopolítica. Intitula-se o ciclo "Figuras da Autópsia" e abriu ontem, na cinemateca, com o Primate do Wiseman. Estais bem a ver, certo? Um portento absolutamente impressionante (em todos os impressionantes sentidos) de trabalho sobre a matéria documental, de radical materialidade, capaz de lhe extrair pela razão expressiva uma lucidez conceptual de abstracção fulgurante (sim, isto não quer dizer nada, mas tenta).
Ao debruçar-se sobre os modos de organização da pesquisa de cientistas sobre primatas num centro de investigação, e os modos de relação estabelecidos entre esses dois corpos de agentes no processo da sua interrelação finalista, está-se veramente a fazer uma aproximação eloquentíssima aos modos socialmente consagrados de acesso à "verdade", integrando na factualidade nua da sua via metodológica todas as imponderações que foram socialmente externalizadas para os recintos privados da produção científica, ao mesmo tempo que externaliza da sua abordagem a produção de juízos morais explícitos sobre as processualidades documentadas.
Essa capacidade de resgatar limpidamente todo o agonismo subsumido no paroxismo na acção (humana) será, aliás, porventura a sua maior força. Porque, como efectivamente se reitera nas várias leituras do filme, se ao primeiro olhar, armado pelas grelhas espontâneas em que fomos socialmente criados, há um quadro dicotómico de agentes e possíveis cristalizações axiológicas em seu torno na narrativização estrutural deste processo, aquilo que se explicitará crescentemente é, de alguma forma, a organicidade indivisível de todos esses elementos sistémicos.
Numa estrutura relativamente cíclica, aquilo que vai sendo explicitado numa cadência impiedosa é um processo integrado de objectificação da vida em nome da produção de saber, da pesquisa comportamental à vivissecção, e essa é a primeira iluminação da película: o extremar de pólos sensíveis de relação com os símios entre as manifestações de afecto vivo no início e a dissolução metódica dos seus corpos no final, não demonstra de todo a sua oposição, mas faz discorrer a sua absoluta continuidade. Aquilo que isoladamente são apreensíveis como opostos morais, são neste espectro processual reconduzidos a diferentes etapas de um mesmo processo de objectificação, que pelo poder da sua institucionalização, foi incorporado pacificamente pelos seus actores humanos (muito curiosa, e sintomática para quem se familiarize com a literatura de etnografias de laboratório (de que isto é quase uma adaptação ao cinema... ('Hollywood' não pode ver nada...)), a emergência da expressão estética dos cientistas como primeira reacção ao visionamento microscópico das lamelas de secções de um cérebro após a vivisecção (ainda que aqui a continuidade fílmica reforce a associação dos dois momentos)).
A ironia do título "primata", recobre igualmente a elisão, dir-se-ia, quase latoureana, de qualquer pressuposto de diferenciação entre os primatas em presença, humanos e símios, na sua apreensão documental. Essa distanciação analítica de um dado base da consciência humana, o da sua especificidade (e superioridade) é, aliás, reiterado simbolicamente na captação dos corpos, com sequências, não óbvias mas suficientemente legíveis, de grandes planos dos rostos, quer dos cientistas (alguns, juraríamos que não inocentemente, com puros gestos semioticamente carregados, neste contexto, como a cofiar ou coçar a barba, ao que a política pilosa da época dava amplo terreno), quer dos símios, e captações de sofrimento animal (que nem são as mais "inteligivelmente" chocantes) que configuram perfeitas pietàs zoológicas em nome próprio.
Essa elisão do primado do humano nesta configuração social não é, aliás, mais que a manifestação mais provocante do paradoxo maior e mais genial deste verdadeiro método documental. É que, em larga medida, o que Wiseman faz é quase replicar sobre a documentarização de um processo de objectivação científica, um olhar objectivista (mas, etica e esteticamente, auto-consciente) sobre esse processo e os seus actores; e o poder que essa objectivização tem na transformação da legibilidade da acção de agentes humanos desprovidos de retórica justificativa no exercício de poder objectivista sobre agentes primatas desprovidos de qualquer expressidade legitimada (porque existe, apesar de tudo, um discurso inerente a toda a paralinguagem animal que é, pelos agentes humanos, inteiramente elidido pela incorporação destes objectos vivos numa finalidade absolutamente instrumental) é devastadora. E se, à superfície do olhar, tal pode transparecer como uma violência discursiva exercida sobre os cientistas ao replicar a violência (ainda que tida por neutra, ainda que tida por necessária) muda exercida sobre os símios, essa é uma consequência lógica (não "retórica", porque não propositivamente condenatória, como a inserção de vários fragmentos "auto-explicativos" da pesquisa ilustra, do mais detalhado ao mais carta branca (a "utilidade da inutilidade")) do isomorfismo ontológico que emerge do postulado de continuidade e indiferenciação na fixação da "evidência" documental. O único excerto sob a forma de explícito depoimento justificativo funciona, na verdade, como outra detonação irónica, na medida em que sugere a impotência desse discurso normalizado em poder substituir-se à legibilidade da lógica sistémica e processual que move e integra, numa espécie de igualitarismo radical, os agentes em presença: é nesse sentido, também, que se impõe a abstracção do processo de produção de saber como matéria fílmica, e não o juízo sobre os agentes em questão, ou sequer a sua actividade concreta.
Seria, de qualquer forma, insustentável (por definição) arguir da isenção de um ponto de vista na organização expressiva do material documental; é aliás nótoria, na sua própria ciclicidade e crescendo, uma descida dantesca pelos círculos vários de uma contínua objectivação daquelas formas de vida. Contudo, o facto é que esse ponto de vista, podendo parecer evidente (mas não o é para toda a gente e suas razões, e funcionará, idealmente, como ponto de partida para o restart consciente dos nossos raisonnements), não emerge de uma qualquer exploitation ou retórica moral, mas é, mais uma vez quase em lógica de experimento, o resultado experimental de uma aproximação metodológica a um campo do real, organizada expressivamente. E a sequência mais poderosa de explicitação dessa capacidade de recuperar a unicidade de contrários que estão subsumidos em todos os dados adquiridos que fizeram a "normalidade" deste processo instituído, a cuja visibilitação "indevida" somos atirados, está na sequência pós-vivissecção de um pequeno macaco, quando a sua cabeça decepada, com o cérebro exposto, é colocada num viço, e é alternadamente captada de cima, com a centralidade superior da razão científica focada inteiramente no cérebro, na secção objectivada que lhe fundamenta a acção, e depois num ângulo de baixo, onde ainda está exposto o facies como vestígio simbólico ineludível daquilo que há poucos minutos incorporava uma manifestação de vida.
Por estranho que possa parecer a quem visualize a imagem, isto não é manipulação emocional, mas é o confronto nu, e experimental, da nossa percepção, com campos ópticos/perceptivos que se convencionou manter separados. As consequências de adjudicação social do juízo produzidas pela sua unificação documental são, de alguma forma, a consequência experimental da exposição total da nossa sensibilidade e razão a essa unidade complexa de sentido. Sim, de alguma forma, quem assiste a este filme não é menos parte do seu experimento perceptivo, com o mesmo estatuto ontológico dos agentes que foram fixados no ecrã (com a violenta dissociação e recombinação complexa de reconhecimento com seres, biologica e socialmente, postulados como diferentes que isso implica), e isso faz dele uma experiência ética, política, estética e cognitiva que confere o mais potente sentido à expressão "dar a ver".
Porque são as implicações perceptivas da partição visual da especialização do saber e da prática modernas que são aqui desafiadas como pré-condições socialmente desonestas para a manutenção de modos de vida a expensas da consciência de todos subentendidos necessários à sua reprodução. Facto com o qual, politicamente, se pode querer activamente viver em paz: e serão provavelmente muito poucos os voluntaristas ou temerários capazes de teoricamente (muito provavelmente, o cadeidoscópio segmentado das práticas modernas tê-lo-á também já tornado virtualmente impossível) querer habitar essa plena apropriação consequente das implicações do seu modo de vida. Mas nesse sentido, nesta política da imagem, contra os hábitos inconscientes de selectividade (própria ou instituída) da (in)visibilidade do real, não podemos escapar à assumpção honesta e consequente de que, para aqui, só não olha quem não quer ver; e esse é apenas o primeiro passo para pensar, e não reagir - sendo a replicação behaviorista pelos espectadores de uma univocidade significante lida na película, o resultado experimental falhado deste tipo de método fílmico, que assim contém metodologicamente também a chave da sua própria invalidação.
Para os (depois disto, ainda) interessados, o curto ciclo ainda decorre na Cinemateca, incluindo o monumental (é que não parece haver outro adjectivo) Shoah, este sábado, e incorpora também um ciclo de conferências na Culturgest, de que ainda restam uma ou outra sessão.