terça-feira, 12 de dezembro de 2006

O génio da esquina

Tinha há pouco, grato, redescoberto a prosa de mui prezado escriba (empreendedor em modo new beginnings), que não sendo o génio de que aqui se trata (não discutindo a sua vocação a tal, claro está), retornou também a surpreender-me como em tempos passados, quando me havia deliciado com um vídeo dos paranormais irmãos Assad a tocar em recital a Tango Suite do Piazzolla (surpreendente por não saber o que era o YouTube, e só vagamente o que era um vídeo).
A surpresa agora prodigalizada (mais epifânica, mesmo sem a surpresa matizada de já saber vagamente o que é o YouTube) - que só agora vi que desapareceu do seu blog, não posso saber porquê, mas agora tenho mesmo que desabafar isto, creio que sem prejuízo ou inconfidência (mas estamos cá para o disclaimer ou assim) - foi outro vídeo (este), de outro guitarrista, que havia surpreendido o nosso escriba dado ao guitarreio, no lógico despreendimento céptico de encontrar uma grande performance guitarrística no anonimato sub-ou-sobre-democrático do oceano YouTube, em que o instrumentista interpreta, a seu passo e arroubo muy gallardos e indiossincraticíssimos(?!), a lacrimejante «Una Limosna Por El Amor de Dios» do grande paraguaio Agustín Barrios Mangoré, rodeado de todo o amadorismo vídeo caseiro do mundo ao acesso de todos os pacóvios com desejo de janela para mais além, de que o YouTube é cada vez mais repositório (esperem, que ainda vai começar a sair dali uma distopia Wharoliana). De facto, como a recomendação rubricava, igualmente impressionado pelo virtuoso, clico a descobrir o nome do cavalheiro (ainda que presumindo o gesto improfícuo, para saber nome de lumpen-guitarrista desvalido). Estupefacto, descubro tratar-se de um dos maiores (provavelmente - adjectivo seguinte oblige) génios desconhecidos da guitarra (dentro do desconhecido generalizado de quase todos), de seu nome Baltazar Benítez.
Permita-se explicação. Bénitez, tendo tocado com Piazzolla, gravou pelos anos 80 um disco afogado de tão abaixo do radar (é vê-lo vendido pelo do it yourself desgraçado da internet, no site do próprio Benítez - fui ver, nem na cornucópia da amazon se descobre...), que é (ou deveria imperativamente ser) um objecto de culto para toda a clique guitarrística, que é (silêncio que se vai tocar o Nuevo Tango) a gravação mais singular e expressiva da obra para guitarra solo de Piazzolla. Para lá das Cinco Piezas para guitarra solo como nunca imagináveis (garantiria que nem pelo próprio Piazzolla), inclui 5 transcrições por Benítez de outras peças de Piazzolla (têm para amostra um muito débil, mas enfim, ficheiro de som, no site, da arrasadora La Muerte Del Ángel), que não têm rival (incluindo colossos como Barrueco e Brouwer - aliás, a interpretação de Bénitez, de tão ensimesmada na sua voz instrumental, não é fiel à sua própria transcrição), de tão surrealmente impressas numa expressividade idiomática que é positivamente um mistério técnico e lírico. Esse disco, de timbres sobrenaturais, técnicas esotéricas, trilos alados, espaços e sonoridades oníricos (que a, fatalmente, estranhíssima atmosfera do estúdio faz ecoar numa espacialidade temerosa, que trespassa toda a rudez da fita), a que apenas acasos da fortuna há anos me deram acesso, é uma das raras gravações de guitarra onde a inteligibilidade técnica de interpretar instrumentalmente uma composição se amalgama num sortilégio indestrinçável.
Busquei o site. Esparso espaço de promoção, verifiquei que gravou (apenas) mais 3 discos, que desconheço em absoluto, tem um DVD dos vídeos caseiros atamancados no YouTube, e desde meados de 1990's que deixou de tocar por motivos médicos.
Não sei o que custa mais, a opacidade de uma manifestação gritante de génio, ou a ignomínia da dissolução sobrevivente na indiferenciação colectiva, sem sequer um mito para vender, mas tão somente a arte a metro.
Não se arrebanha consolo, não: tão somente um violento abrir de olhos, tolhido de impotência e vontade de resgate, a constatar empiricamente que os ilustres desconhecidos, por vezes, podem mesmo ter a grandeza do mundo.

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