Não é show da Xuxa
É difícil pensar num disco mais urgente em tempos de memória recente, que de discos urgentes, é de desconfiar, se verá cada vez mais amontoada, à medida que degrau a degrau o sentimento de um ocidental se vê cada vez mais alegremente a descer uma ilusória escala de evolução civilizacional e entrando num bizarro world onde o Fukuyama tivesse antes escrito O (Re)início da História. Mas assim como assim, como não haveríamos de crer panglossianamente ser já este o melhor dos mundos possíveis, quando até as juras de ódio figadal inscritas no equilíbrio natural dos ecossistemas se vêem melosamente esquecidas a cada vídeo de adorável cafuné entre chitas e gazelas de thomson, e demais animal frenemies, no tutubas.
Há já alguns apreciáveis anos que a turma da nova vanguarda paulista, dos imparáveis Metá Metá a múltiplos outros projectos individuais e colectivos de geometria variável (aquela dinâmica social esteticamente insaciável que faz uma cena musical), anda a fazer proliferar a (tanto quanto me consta) mais vital e admirável música do Brasil contemporâneo; mas a sua junção geracional com a veterana Elza Soares, sob os auspícios de Guilherme Kastrup, foi um achado tão improvável quanto genial.
Embora lastimavelmente pareça escapar à maioria dos que exercem o métier, a condição de intérprete, implicando a dependência autorística de terceiros para exprimir uma experiência particular do mundo, também alberga, na mesma medida, uma liberdade imensa para a descoberta e expansão subjectivas a partir de ópticas alheias. A mulher do fim do mundo, precisamente nada tendo a perder, compreendeu-o perfeita e quase inauditamente, a contrário de muitos e mais (relativamente...) novos compagnons de route, e ao entregar-se plenamente à excelência da agremiação em torno dela reunida, que não deixou os seus pergaminhos arrevesados em mão alheia, transportou-a para um novo patamar, culminar ímpar (tanto quanto a memória me assiste), de tão serôdio quanto absoluto, de uma longuíssima carreira.
"Dura na queda", como já o Chico Buarque, talvez tão premonitoria quanto retropectivamente, mesmo já em tardia idade, a tinha saudado, Elza foi-se lentamente convertendo, com a prolongada biografia, numa figura particular no panorama artístico brasileiro, tão sacrificial quanto resistente, assumindo as cicatrizes de uma existência socialmente desafiada e, correspondentemente, pessoalmente conturbada. O primeiro disco que deste improvável consórcio resultou incorporava, pois, ao primeiro debitar daquela voz castigada, um carácter simultaneamente elegíaco e feroz, fazendo justiça a esta figura tanto no seu debatido passado quanto na sua ousadia presente em persistentemente confrontar, na sua carne viva, o que desse passado subsiste, na reprodução de vivências socialmente violentadas. Na exacta medida do seu absolutamente surpreendente conseguimento e justeza, seria difícil antecipar que um tal projecto, quase uma espécie de cenotáfio em vida, pudesse borrifar-se para a rigidez do monumento e ter seguimento. Mas teve-o e, com quase já não surpreendente surpresa (fool me once...), com não menos justeza e inteligência para distribuir. Se A mulher do fim do mundo estabeleceu e cronicou perfeitamente o vulto no seu centro, Deus é mulher ocupa-se de tudo o que resta, que é lançá-lo novamente sobre o mundo e a sua regressível imperfeição. Se não fosse Elza, talvez este disco (cujo título, logo com toda a honestidade, não engana ninguém) fosse uma vítima mais fácil de menorizar ideologicamente como ingressando programaticamente no domínio da política identitária (possivelmente não por acaso, a voz por excelência desta vanguarda paulista, Juçara Marçal, nunca se atirou propriamente assim, de cabeça, para estes terrenos), sendo mais difícil relativizar musicalmente a sua burilada acutilância. Contudo, cantada por Elza, cada palavra ganha um peso ontológico particular (no espectro mais lúdico, por exemplo, faz toda a diferença ter uma octogenária a cantar "eu quero dar p'ra você, mas eu não quero dizer, você precisa saber ler", e explicar o bê-a-bá da sedução a toda uma juvenilia (se não mais a uma senioridade viagrada) com as hormonas aos pulos e os neurónios em falência), na assumpção combativa do que tem para dizer a partir de uma experiência viva, não de uma abstracção teórica. É precisamente na medida em que liberta as palavras da rigidez programada de uma lição, dando-lhes a perspectiva de uma vida própria - que reclamam, sim, mas tão legitimamente quanto qualquer outra - que este disco conjuga autoridade moral com autoridade estética, sem as confundir, pela mesmíssima razão, com autoritarismo retórico. É disso que democraticamente se trata ("de falar e de ouvir também"), para lá de qualquer sufrágio, a que nenhum Estado de Direito se resume, conviria cada vez mais lembrar.
Começa a ser quase demasiado desencorajante a perspectiva de acordar e constatar que discos deste calibre ainda ou já não têm o país que merecem. A única boa notícia é que, enquanto não regredirmos todos a hominídeos adoradores de monólitos que resolvem tudo à ossada, a melhor resposta para isso será continuar a fazerem-se mais, e mais, e mais. À falta de a Mónica se começar a dedicar ao agitprop, com a turma da Elza, pelo menos, parece que podemos ainda contar. Benza-a Exú.
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