Trasmontander
Não sei porque é que está tanta intelectualidade xôxa a arrancar cabelos com o concurso (diz-se bem) «Grandes Portugueses». Cá eu, desde que vi num cartaz de rua que o grande slogan é «Só há lugar para um», estou em pulgas para assistir domingo aos cadáveres exumados (por certo que, desta feita, para este mui nobre fim, a Ministra da Cultura não se há-de importar) a irem ao pêlo uns dos outros (com o fascínio acrescido de o pêlo crescer depois do esticanço, logo, mais material para a cat-fight). Parece-me, não obstante, que a RTP1 não foi honesta. Se tivessem desde logo informado os portugueses (isto é um púlpito à minha frente?) que a decisão final ia ser Highlander-style, de empalanço em empalanço, certamente que os finalistas não seriam estes. Não nego que vai ser giro ver o Pessoa vazar o outro olho do Camões, o Vasco da Gama a fazer o Infante Henrique chorar apodando-o de marinheiro de água doce, o Salazar e o Cunhal making out em rituais SM até o presidente do conselho desonestamente mandar vir a PIDE para um gangbang safando-se por uma nesga do final natural de ser man-handled pela foice e martelo, o Aristides a apanhar por tabela a tentar safar o desvalido Camões da refrega (o Pessoa revelando-se verdadeiramente uma nasty bitch), e o João II a tentar livrar-se anacronicamente desse Sebastião Melo, futuro arrivista dos poderes da coroa, convencendo o Afonso Henriques que se fizer pontaria para Sul do Equador o poder da esfuziante peruca pombalina será neutralizado. Mas pela regra do espadeirão, parece-me óbvio que nem com os manipuladores que há no baralho, a força bruta do Afonso Henriques poderá ser derrotada, o que não seria necessariamente o caso se o Salgueiro Maia lá estivesse para lhe estacionar a chaimite no focinho. Concede-se, claro, que o Salazar deve ter algum truque na manga, para ter conseguido ser ditador, por décadas, de uns poucos milhões, em época onde democracia já era uma palavra minimamente soletrável, com vozinha canora, e ainda hoje persistir arrulhando no seus corações. Mesmo assim, a menos que o programa admita batota, esse é o problema histórico dos ditadores modernos: a sua dependência de um aparelho administrativo-burocrático de sustentação do poder, com controlo dos meios de violência incluso. Continuando weberianos, há uma décalage histórica insanável entre a legitimação carismática do Afonso Henriques, que teria que sovar directamente muita gente para legitimar a coroa, e a legitimação administrativa do Salazar, com a virilidade enxovalhada no corpo afirmada sublimadamente na cavalice troglodita e assanhada dos esbirros de Estado. E se, à imagem do Highlander, até pode haver elementos modernos a concurso, como arremesso de câmaras de televisão ou, se tivermos sorte, da Maria Elisa, a dinâmica de jogo parece-me permanecer resolutamente medieval, a menos que chamem a PIDE outra vez, o que também não seria justo. De qualquer forma, para quem se queixe que assim o jogo está falho de equidade nas hipóteses regulamentares de cada concorrente, ou que será triste medir pelo espadeirar de Afonso Henriques os pusilânimes que fizeram a nossa triste história, vê-se logo que não sabem o que faz um bom show pedagógico de televisão de serviço público. Ai, só eu sei o que aprendo e me está a gustar a história do meu país.
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