Outras evidências inquestionadas
Será provavelmente sintomático das relações entre ciência e sociedade que o discurso e representação das ciências (duras, au) por si próprias pareça por vezes ter incorporado pouco da turbulência que a vivência dos seus efeitos sobre o real historicamente vem gerando. Foi dado à leitura, há dias (porventura 5), um escrito interessante do Vasco M. Barreto sobre a investigação biológica no domínio da causalidade da homossexualidade e as reacções sociais avessas à prossecução de semelhante inquirição. Deve dizer-se aliás que o mapeamento que faz dos argumentos e inquietações que presidem à euforia e à preocupação com essa possibilidade explicativa da homossexualidade, dos dois lados do espectro homofóbico, é certeiro. O que torna mais descoroçoante o facto de daí não extrair ilações, como se grafar as movimentações sociais em torno de um objecto de polémica possa apenas ser expediente para mais cabalmente as ignorar.
É também bastante curioso como resulta amiúde irónico (e é por isso que a blogosfera de vez em quando até tem graça) que ao empacotar num texto referências en passant se deixe passar ao lado o potencial subversivo que essa referência tem para as próprias proposições das quais a fazemos sustentáculo (ou estacazita). Por entre os factores sociais que são evocados para explicar o porquê dessa polémica na face da estranheza intelectual que lhe suscita, aparece a influência social de Michel Foucault, com a sua concepção de que a homossexualidade seria uma "construção social". É possível que o tio Michel desse uns pulos à Bubka sem precisar de vara ao ouvir falar de construção social a propósito da sua teoria (por razões que não tenho também espaço para não explicar), mas para post, a coisa faz-se entender. E conviria talvez deixar mais explícito que quando se diz que para Foucault a homossexualidade é uma invenção histórica recente, fala-se da constituição da categoria social da homossexualidade, enquanto forma de classificar os indivíduos em função das suas práticas sexuais, e não, obviamente, das práticas propriamente ditas, isto no contexto da governamentalidade que estendeu a partir do século XIX as malhas da apreensão e classificação disciplinar da realidade como forma de regulação social (a ciência moderna nunca servindo só, ou sequer primeiramente, para "conhecer"). De alguma forma, é verdade que Foucault esvazia a questão de uma causalidade biológica para a homossexualidade. Mas, como em qualquer ciência (menos para quem tenha a pretensão ao mito da unicidade de uma Grã-Ciência), fá-lo para poder colocar outras questões (de outra ciência, ou perspectiva analítica) ao fenómeno: não está propriamente investido em negar directamente as pretensões de ontologização de uma classificação histórica, vertida em senso-comum, dos indivíduos em função das suas práticas sexuais. Antes, olhando de fora dos esquemas explicativos das disciplinas que o pretenderam fazer (e fizeram, e fazem), examina como é que determinadas práticas sociais e sexuais "ganharam" "direito" a serem escrutinadas e, em consequência, epitomizando disciplinarmente os seus actores sociais como constituindo um tipo ontológico particular.
O que Foucault perguntava ou sugeria não é qualquer avanço sobre o que é a homossexualidade, mas porque é que social e disciplinarmente se cria a necessidade de categorizar os indivíduos enquanto tal, sendo que, pela própria operação das disciplinas, a categorização dos sujeitos concorre com a sua identificação com tal categoria (seja para aceitá-la, seja para debatê-la, mas inevitavelmente constrangidos por ela). É também esse o pressuposto porventura não devidamente explicitado na busca de uma explicação biológica da homossexualidade: o de que existe uma ontologia homossexual à espera de ser explicada. Ora, começa aqui a ironia de se presumir directamente que a perspectiva de Foucault concorre hoje com a contestação da investigação biologizante da homossexualidade. Sejam quais forem os efeitos políticos de uma naturalização científica da homossexualidade, o problema com qualquer explicação biológica para realidades comportamentalmente indiciadas, é o de deduzirem de certas práticas ou formas de auto-identificação em parte auto-induzidas pela classificação disciplinar (antes da "invenção" da categoria "homossexual" ninguém se pode identificar como tal) uma realidade objectiva a ser estudada. Ora a perspectiva de Foucault está na verdade a montante dessa questão, a inquirir como é que se cria o pressuposto de que há na homossexualidade uma realidade a carecer explicação (como o não há, na heterossexualidade). Ou seja, de alguma forma, from the grave, antecipa-se à estranheza do Vasco M. Barreto, explicando porque é que para ele a homossexualidade constitui um objecto inquestionável de estudo para, por exemplo, a biologia (sendo que na perspectiva de Foucault, todas lá iriam ou foram parar, como a sociologia, antropologia, psiquiatria, ainda que cada qual com suas consequências) - isto para além do argumento saco-sem-fundo do "saber pelo saber", porque a questão é o que nos aparece, da infinidade inaprisionável de hipóteses explicativas do real, como algo "a saber", e não a concorrer para a prateleira de laureados de IgNóbeis.
Mas há outro paradoxo curioso, directamente emanado da perspectiva foucaultiana da explicação disciplinar, na "evidência" de estudar a homossexualidade, para o caso, numa perspectiva biológica. É que lhe parece estrangeiro que a sexualidade humana seja objecto de reflexividade e invenção naquilo que é a sua vivência pelos sujeitos, e abordá-la disciplinarmente, classificá-la, explicá-la, implica largamente fabricar uma nova realidade para se adequar aos mecanismos e hipóteses da explicação. Neste caso, antes de se definir disciplinarmente os indivíduos como homossexuais, de se fixá-los ontologicamente numa nomenclatura, um pluralidade de efeitos da sua auto e hetero-identificação como tal não poderiam emergir como tal. É nesse sentido que a homossexualidade pode ser dita uma "invenção recente". E com a hipótese biológica, aquilo que se criaria seria, de facto, independentemente de outras conjecturas futurológicas da instrumentalidade desse conhecimento, the ultimate invention of homossexuality, com a certificação biológica de quem é homossexual, e quem não é, no sentido da arregimentação dessa coisa que parecemos (por vezes com efeitos lamentáveis) ainda não perceber ser tão avessa a espartilhos, que é a sexualidade humana (para lá da falácia reprodutiva, tão regurgitada, sintomaticamente, nos comentários ao texto), com homossexuais, heterossexuais e foot-fetichists cada quais arrumados cientificamente em suas inexpurgáveis fileiras (sim, eu sei que não são categorias mutuamente exclusivas, cientifização oblige, mas também se poderia dizer que os foot-fetichists só se andam a enganar - um bom pé não tem sexo). Ou em dialecto, um homem (é o meu viés, perdão) já não pode partir bilha impunemente. Pode, claro, argumentar-se que o comportamento social e sexual permanece intrinsecamente livre, mas ignorar que os decretos disciplinares de existência são constitutivos das condições de experiência e percepção de existência, é descartar evidência antropológica.
De facto, qualquer pretensão de explicação biológica da acção humana (logo, potencialmente reflexiva, não mecanicista) é polémica (particularmente quando respeita à identificação ontológica dos indivíduos) porque absolutiza a determinação dos objectos explicados (mesmo com todas as cautelas à falácia determinista comummente associada à genética, a que o Vasco M. Barreto alude), e encerra os indivíduos nas verdades que se dizem descobrir sobre eles (que podem ser avessas às suas verdades subjectivas de si). A homossexualidade ser determinada uma realidade categórica torna-a uma compulsão social, algo que, na face dos indícios de se "ser", requer como termo lógico tornar-se condição de vida específica (algo intuível, por exemplo, na reprovação conceptual generalizada dessa coisa não "devidamente" determinada que é a bissexualidade, encarada, por exemplo, como frescura de homossexuais who are just kidding themselves).
Ora, não deixa de ser irónico que a postura de distanciação cientista de Foucault seja pedagógica igualmente para a questão candente(?) de saber se tal linha de pesquisa deveria ser prosseguida ou não. Basicamente, o que nos diz é que o conhecimento que produzimos e proferimos fala mais sobre o que pensamos que aquilo que temos em mente. Não é preciso voltar a Weber para percebermos que as questões que colocamos e o que procuramos explicar não é inocente, just plain fun ou just plain research. Aquilo sobre que uma sociedade se interroga é função das estruturas de pensamento em que assenta, e que balizam o seu campo de cogitação. Se nos perguntamos qual a causa da homossexualidade, é porque concebemos esse como um facto carente de explicação. Ora, entre os receios eugenistas e as legitimações absolutas biologistas, o campo político de apropriação de qualquer decreto biológico de explicação da homossexualidade é na verdade largamente indeterminado - mas poderá passar instrumentalmente a configurar hipóteses muitíssimo mais acirradas de determinação. E tal como a ciência e a política partilham leitos dizendo que não se conhecem, concebo que seja por conceberem politicamente essa determinação como um risco à defesa ampla de não discriminação sexual que vozes no campo da homossexualidade se manifestam contra essa investigação, apesar da sua potencial indeterminação intrínseca (não o perceber é persistir nessa tragédia muda ou adiada de julgar que o laboratório é realmente estanque do mundo exterior).
O que é de facto luminoso, e a ironia maior, é verificarmos que, na colocação da hipótese causalista biológica da homossexualidade, se está de facto a prosseguir na invenção da homossexualidade. Se ao presumir a realidade objectiva da categoria, a ciência reproduz as condições de ratificação e comprovação da sua existência, daí resulta esse curioso paradoxo final: na verdade, se há contestação da hipótese de ontologização disciplinar (biológica) da homossexualidade, é precisamente como emanação histórica da fixação disciplinar de um tipo humano, homossexual, como uma realidade objectiva, a explicar, e seus efeitos na transformação da percepção, clasificação e identificação dos indivíduos. Esses homossexuais recalcitrantes à explicação biológica de quem assumem que são, são pois os filhos (pródigos) directos da invenção disciplinar (biting her in the ass) da sua condição. Um truísmo rebuscado? Talvez. Mas muito instrutivo.
Nota: sustentar uma crítica de um parágrafo a Foucault (mais uma menção e tenho palavras para um altar...) é exercício curioso mas dificilmente plausível com a sugestão de a mesma ser propensa a tão debilmente ser afanicada com um texto internético (sem querer esnobar...) de um «historiador» (pelo que vi tinha formação em filosofia, but whatever) que, com base numa (e só uma) fonte documental, de uma só época histórica (o argumento de Foucault cobre, mesmo com buracos, uns poucos séculos), pretendesse perigar seriamente (ainda que também aqui toda a dissensão e crítica empírica e analítica seja benvinda) um argumento incluso numa obra muito mais ampla, em três volumes (a «História da Sexualidade»), sustentada em extensa e finíssima (carpaccio-like) análise documental (para quem possa ter ficado com a ideia leviana que, ao contrário dos "historiadores", as imbricadas analíticas de Foucault são veleidades, conquanto eruditas, do seu livre esprit, sem sequer mímica de ancoragem empírica), é um bocadinho audaz demais. Aliás, segundo me lembro (aqui posso estar mesmo errado), embora se possa pretender induzir isso, Foucault não andou propriamente a conceber a homossexualidade como uma forma de categorizar a atracção sexual, entre outra possíveis como classe social, côr do cabelo, bla bla bla. Quanto mais não fôra, a dissolução categorial e vale-tudos nunca foram propriamente estratégia da sua autoria.
Até para quem não leu a fonte documental (a partir da qual se pretende discutir a tese foucaultiana de que as formas de classificação de práticas ditas homossexuais produzidas disciplinarmente no século XIX, não se compaginam com classificações prévias, como seja na Grécia Antiga), se constata que (já que em matéria de minúcias essas hermenêuticas se jogam), apesar de na estrutura do discurso do texto de Aristófanes (a dita fonte) se definir a possibilidade de uma relação homossexual tal como a concebemos hoje (estável, entre dois homens adultos e livres, para simplificar) e não nos termos de regulação que a cultura grega apunha às práticas homossexuais (como tal, sugerindo uma homologia mais forte entre a suposta diversidade histórica de classificação de actos homossexuais), descartar o facto (reconhecido) de não se encontrar nessa cultura, referência a uma categoria linguística que nomeie esses sujeitos ou a condição de que seriam protagonistas como realidade determinada (ou seja, palavra para a homossexualidade enquanto categoria relacional e ontológica ou identitária), é uma leviandade tendo em conta a centralidade linguística no desenho das formas de entendimento do real: algo para que se não tem uma palavra, é algo de existência não-evidente (não é o mesmo que não-existente, bem entendido). E aí cairá novamente o busílis da questão para a contemporaneidade.
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