History repeats itself
Quando assentou a poeira da comoção Dylan goes electric Judas, esse tornou-se o caso em torno do qual se foi blindando argumentativamente a guinada bem-pensante da coisa pop no sentido da desconsideração da chamada canção de intervenção (ou outra merda qualquer), e que, como o geral das guinadas, pouco mais fez que redireccionar o derrape da imbecilidade.
Haverá argumentos sociológicos para a valia social desse "formato" enquanto mecanismo de ampliação e dinamização de qualquer coisa assimilável a uma consciência política na coisa pública: se há um desequilíbrio colossal entre as agremiações que produzem e disseminam essas formas de expressão e as agremiações a quem a sua menção causa choques anafiláticos; ou, dito de outra forma, se a canção de intervenção tem historicamente versado mais sobre a paz, o pão, habitação, saúde, educação, do que sobre os amanhãs que cantam da trickle-down economics, não é necessariamente por haver sempre um lado certo da história para se cantar, mas por o cantar ser dos poucos veículos expressivos certos para quem está do lado desapossado da história. Contudo, não seria por esses argumentos que, por exemplo, avançaria como mais-valia da arte do imenso Fausto o «Venha cá sr. burguês». Pela mesma ordem de razões, mesmo que possamos sociologicamente ponderar o vilipêndio da canção de intervenção como forma musical como uma decorrência estética de um posicionamento socio-ideológico, justifica-se atermo-nos à discussão do seu argumentário como gozando de uma autonomia crítica. Contudo, rodopiando em torno da invocação dos limites constitutivos da instrumentalidade social do formato, esse argumentário sai furado do redondel.
Argui-se a simplificação estética que essa instrumentalidade demanda - desde logo, como se isso a distinguisse da matriz genética da música pop(ular) em geral e a malta fosse toda empinados do prog - mas depois basta cotejarmos as merdas que se têm inimputavelmente nas prateleiras (eu sei) com o filão cujo iniciático proselitismo político de esgravatar a música tradicional produziu, de longe, a maioria do que de melhor, mais singular e complexo (if need be) se criou musicalmente neste território, de José Afonso (cuja sujeição a um reducionismo político na sua apreciação é das mais lamentáveis miopias culturais deste país) aos Gaiteiros de Lisboa. Mesmo que o quantitativo dos acidentes de percurso desse filão largamente excedesse as suas excelsas recompensas, um raciocínio crítico cuja lógica se cingisse à ponderação probabilística do rácio de boa música que pode emergir de um dado formato ou temática desembocaria logo na constatação - por virtude da singularidade cósmica aleatória na ordem das coisas de terem existido os Van der Graaf Generator - de que as canções sobre faroleiros (independentemente de serem a melhor ocupação do mundo (relembre-se às autoridades competentes e seus simpatizantes a minha perenemente continuada candidatura a qualquer vaga que possa surgir nesse meio)) seriam o hottest topic para escrever grande faixas aí na cena musical.
Argui-se igualmente que a sua instrumentalidade torna essas canções intrinsecamente datadas às circunstâncias sociais que as espoletam, o que leva a presumir que os proponentes de tal proposição, com o final de cada relação amorosa, tendem a carpir ao som de toda e qualquer heartbreak song, para logo as abjurar como espécie musical no momento em que descolam nova pita e assim ciclotimicamente sucessivamente. Na verdade, ao que a canção de intervenção é propícia é à dificuldade de destilar a datação derivada da incapacidade estética de algumas canções ecoar para lá da sua circunstancialidade, da datação histórica e social dos seus receptores, incapazes de se desimplicarem do enjeu daquela circunstancialidade, e facilmente revertendo para a valia estética da obra esses seus (legítimos) limites perceptivos - pode certamente compreender-se que à generalidade das almas latifundiárias uma certa porção da produção cançonetista do PREC não seja particularmente querida, independentemente do nosso afecto pela Lei Barreto. Contudo, isso revela precisamente a visão equivocada, nestas discussões, do que faz a instrumentalidade de uma canção; visão, aliás, partilhada pelos mais voluntaristas dos dois lados da barricada do que convencionam, para os respectivos bem e mal, ser canções de intervenção. Por mais que um artista de máquina de matar fascistas de seis cordas a tiracolo se invista programaticamente em fazer da cantiga uma arma (no que a figura da topical song pode ser descritivamente mais útil), a efectiva instrumentalidade do seu percussor é sempre uma figura da sua apropriação social. Isso implica que não só a datação circunstancial não é constitutiva de uma canção de intervenção, como a abstracção dos seus referentes as torna mais apropriáveis para diferentes mobilizações; que é como quem diz, canções de protesto, são as que o Homem quiser. Lição cuja manifestação mais fina foi inevitavelmente providenciada pelo Robert Wyatt, num álbum programático de canções de, pois, intervenção, emparelhando picos de circunstancialidade política como «Stalin wasn't stallin'», com o «At last I am free», das Chic (um dos factóides mais satisfatórios da História, a todos os níveis).
Mas mesmo que concedêssemos que a circunstancialidade pudesse carimbar o prazo de validade de qualquer canção investida no presente, e pô-la na prateleira dos bens estéticos mais perecíveis, a data de hoje, of all days, chega, ao final do cronómetro, como o contra-argumento mais feroz para uma visão da história que decreta uma crença na perecibilidade das circunstâncias que fazem, em dado momento, uma canção ser de protesto, alimentando a sobrevida discreta das circunstâncias, sobre a carcaça das canções. Que é como quem diz que, no reverso da rêverie desesperada de que lá não tivesse aterrado em 1977, o FMI nunca terá é descolado da Portela, e a reserva do José Mário Branco em continuar a interpretar o seu impossivelmente catártico (e (mesmo descontextualizadamente) genial) «FMI» para lá de uma certa distância temporal da sua circunstancialidade, constitui, para além de um acto pessoal da mais razoável preservação psicológica, um acto micro-histórico de uma ironia spengleriana lacerante. Que é como quem diz: