segunda-feira, 22 de outubro de 2018

Não é show da Xuxa



É difícil pensar num disco mais urgente em tempos de memória recente, que de discos urgentes, é de desconfiar, se verá cada vez mais amontoada, à medida que degrau a degrau o sentimento de um ocidental se vê cada vez mais alegremente a descer uma ilusória escala de evolução civilizacional e entrando num bizarro world onde o Fukuyama tivesse antes escrito O (Re)início da História. Mas assim como assim, como não haveríamos de crer panglossianamente ser já este o melhor dos mundos possíveis, quando até as juras de ódio figadal inscritas no equilíbrio natural dos ecossistemas se vêem melosamente esquecidas a cada vídeo de adorável cafuné entre chitas e gazelas de thomson, e demais animal frenemies, no tutubas.
Há já alguns apreciáveis anos que a turma da nova vanguarda paulista, dos imparáveis Metá Metá a múltiplos outros projectos individuais e colectivos de geometria variável (aquela dinâmica social esteticamente insaciável que faz uma cena musical), anda a fazer proliferar a (tanto quanto me consta) mais vital e admirável música do Brasil contemporâneo; mas a sua junção geracional com a veterana Elza Soares, sob os auspícios de Guilherme Kastrup, foi um achado tão improvável quanto genial.
Embora lastimavelmente pareça escapar à maioria dos que exercem o métier, a condição de intérprete, implicando a dependência autorística de terceiros para exprimir uma experiência particular do mundo, também alberga, na mesma medida, uma liberdade imensa para a descoberta e expansão subjectivas a partir de ópticas alheias. A mulher do fim do mundo, precisamente nada tendo a perder, compreendeu-o perfeita e quase inauditamente, a contrário de muitos e mais (relativamente...) novos compagnons de route, e ao entregar-se plenamente à excelência da agremiação em torno dela reunida, que não deixou os seus pergaminhos arrevesados em mão alheia, transportou-a para um novo patamar, culminar ímpar (tanto quanto a memória me assiste), de tão serôdio quanto absoluto, de uma longuíssima carreira.
"Dura na queda", como já o Chico Buarque, talvez tão premonitoria quanto retropectivamente, mesmo já em tardia idade, a tinha saudado, Elza foi-se lentamente convertendo, com a prolongada biografia, numa figura particular no panorama artístico brasileiro, tão sacrificial quanto resistente, assumindo as cicatrizes de uma existência socialmente desafiada e, correspondentemente, pessoalmente conturbada. O primeiro disco que deste improvável consórcio resultou incorporava, pois, ao primeiro debitar daquela voz castigada, um carácter simultaneamente elegíaco e feroz, fazendo justiça a esta figura tanto no seu debatido passado quanto na sua ousadia presente em persistentemente confrontar, na sua carne viva, o que desse passado subsiste, na reprodução de vivências socialmente violentadas. Na exacta medida do seu absolutamente surpreendente conseguimento e justeza, seria difícil antecipar que um tal projecto, quase uma espécie de cenotáfio em vida, pudesse borrifar-se para a rigidez do monumento e ter seguimento. Mas teve-o e, com quase já não surpreendente surpresa (fool me once...), com não menos justeza e inteligência para distribuir. Se A mulher do fim do mundo estabeleceu e cronicou perfeitamente o vulto no seu centro, Deus é mulher ocupa-se de tudo o que resta, que é lançá-lo novamente sobre o mundo e a sua regressível imperfeição. Se não fosse Elza, talvez este disco (cujo título, logo com toda a honestidade, não engana ninguém) fosse uma vítima mais fácil de menorizar ideologicamente como ingressando programaticamente no domínio da política identitária (possivelmente não por acaso, a voz por excelência desta vanguarda paulista, Juçara Marçal, nunca se atirou propriamente assim, de cabeça, para estes terrenos), sendo mais difícil relativizar musicalmente a sua burilada acutilância. Contudo, cantada por Elza, cada palavra ganha um peso ontológico particular (no espectro mais lúdico, por exemplo, faz toda a diferença ter uma octogenária a cantar "eu quero dar p'ra você, mas eu não quero dizer, você precisa saber ler", e explicar o bê-a-bá da sedução a toda uma juvenilia (se não mais a uma senioridade viagrada) com as hormonas aos pulos e os neurónios em falência), na assumpção combativa do que tem para dizer a partir de uma experiência viva, não de uma abstracção teórica. É precisamente na medida em que liberta as palavras da rigidez programada de uma lição, dando-lhes a perspectiva de uma vida própria - que reclamam, sim, mas tão legitimamente quanto qualquer outra - que este disco conjuga autoridade moral com autoridade estética, sem as confundir, pela mesmíssima razão, com autoritarismo retórico. É disso que democraticamente se trata ("de falar e de ouvir também"), para lá de qualquer sufrágio, a que nenhum Estado de Direito se resume, conviria cada vez mais lembrar.
Começa a ser quase demasiado desencorajante a perspectiva de acordar e constatar que discos deste calibre ainda ou já não têm o país que merecem. A única boa notícia é que, enquanto não regredirmos todos a hominídeos adoradores de monólitos que resolvem tudo à ossada, a melhor resposta para isso será continuar a fazerem-se mais, e mais, e mais. À falta de a Mónica se começar a dedicar ao agitprop, com a turma da Elza, pelo menos, parece que podemos ainda contar. Benza-a Exú.

Ghosts of Amazónia























ou o homem do fim do mundo (Serras da Desordem, Andrea Tonacci, in tão tardia quanto actual memoriam).

Uma canção com uma pica enorme


(e premonitória, o que a torna, em qualquer idade, quanto mais aos 74, ainda mais notável...)

We have no more beginnings: the douchebag

A pedra estilhaçou ambos os sobrolhos e o osso ficou lasso,
pois os olhos saltaram para fora e caíram no chão na poeira,
à frente dos pés do próprio. E semelhante a um mergulhador
tombou do carro bem trabalhado e a vida deixou-lhe os ossos.
Então falaste com palavras zombeteiras, ó Pátroclo cavaleiro:

"Mas que agilidade tem este homem! Que facilidade no mergulho!
Na verdade se isto fosse porventura o mar piscoso,
a muitos daria este homem satisfação na demanda de ostras,
mergulhando da nau, por muito encapelado que estivesse o mar!
A agilidade com que ele agora mergulhou do carro para a planície!
Parece que entre os Troianos não faltam bons mergulhadores."

Ilíada, Homero (trad. Frederico Lourenço)


terça-feira, 16 de outubro de 2018

Les beaux esprits...


We have no more beginnings: Torture porn

Para que hei-de eu contar agora as mortes
mais os terríveis feitos do Tirano?
E bom será que tudo ordenem deuses
para que venha o mal a ele, aos seus.
Costumava ligar vivos a mortos,
as mãos lhes ajuntando, como as bocas,
abraços de tortura que banhavam
em podridão e pus por quanto tempo.

Eneida, Virgílio (trad. Agostinho da Silva)

segunda-feira, 8 de outubro de 2018

Les beaux esprits...


We have no more beginnings: Dupond e Dupont

Como vai começar? Rápido espírito
o leva a uma ou outra decisão,
em posições opostas, lhe dá voltas
entre as escolhas várias e possíveis.
Nesta incerteza faz o que melhor
lhe parece no caso. Menesteu chama,
com ele vão Sergesto e Seresto,
lhes ordena que equipem os navios,
sem palavra a ninguém, e que reúnam
os companheiros todos pela praia,
que tenham pronto tudo o necessário,
sem explicar razão de tais medidas.

Eneida, Virgílio (trad. Agostinho da Silva)