À Flor do Mar
Passei anos enredado no estribilho de precisar de rever a incandescência que o espelho devolve a Laura Morante, os azuis que a ilusão do horizonte marítimo funde, o lombo firme do robalo, a vida pausada no habitáculo exterior das noites cálidas de verão, as sombras desenvoltas no frescor subterrâneo das casas caiadas, a luz "inclemente" (I didn't know that then) "dos dias perfeitos".
(lembra-me agora o Agosto do Silva Melo próximo estritamente de uma radiância mediterrânica)
Passei anos inclusive com a obsessão recorrente da recorrente sonata de Bach, da qual escrevinhei às escuras no ingresso (ainda deverá estar a faíscar no segredo de alguma gaveta cerca, memória de exclusivíssima ocasião de um mortal ali mergulhar - no Ávila, se bem me lembro... em estreia dez anos após a produção, e uma passagem na RTP), a informação que apanhei da tela, mas à qual faltava a chave BWV para resgatar a identidade da partitura.
Lembrava-me de muitíssimos planos (coisa raríssima), quase todos fidelíssimos na memória. Mas logo a efígie de Laura no espelho não se esfumou como tanto a recordava, e agora, maldição inexpurgável do retorno, antecipava.
Lembrava-me de toda a jouissance dos gestos, dessa abertura fluida e ininterrupta às coisas vivas, à sensação táctil de cada plano, aos prodígios evocativos das mais terrenas evidências sensitivas (não me larga o som de uma bilha de água pousada no chão da açoteia). Inclusive aos corpos (não pudesse, sim, passar por aqui um mote de teorema pasoliniano mais comedido e empirista). Que não primeiramente a breve ninfeta de Teresa Villaverde, nem exclusivamente o bronze da oclusão solar de Laura Morante (dos escassos retratos de mulher a me raptar) e o esplendor macerado de Manuela de Freitas, mas a plenitude de existir no momento, como na justeza do júbilo e desarme infantil, como a ode aos olvidados no plano da criada Senhora Amélia suspensa, apesar da familiaridade, ainda em atavismo mudo e servil, da aprovação comensal da sua caldeirada.
Mas não me lembrava, ou não o vi, como todo este alento vitalista compassava um andamento sepulcral. O superavit mais ou menos subtil de citações (incluindo os cameos de si mesmo, a anunciar-se persona, do César Monteiro) de toda a filiação artística (de Piero Della Francesca a "How green was my valley", de (Robert) Browning (.38) a "Suddenly last summer", de Virgílio e Ulisses a Roberto Rossellini (lembremos as coisas), de de...) era de desconfiar: toda a memória puxa a montante, para o lastro escondido no porão do tempo, onde também se busca trancar a morte e o crime, como coisas que já passaram e nos vedam mais caminho. E nesse exumar de um passado conquanto irrevisitável, a fazer desse fora-de-campo temporal uma presença inescapável e tutelar do movimento que vemos e ainda nos concedemos, aí sem precisão de citação cinéfila, uma vaga reminiscência manietada dos fantasmas de um tal Ethan Edwards me assomou.
Contudo, no reverso, é precisamente também o signo de uma ars moriendi que torna sumamente vibrante a colheita experiencial que cada fotograma comporta (ritualidade constitutiva da obra futura), como a última frase de Manuela de Freitas (que não ouvi bem, como de qualquer forma seria de rigueur em filme meio falado em português projectado ao ar livre, mas de que estou seguro - qualquer coisa como, fruir a felicidade que resta*) sentencia. E na pequena morte sepultada em cada casa que se fecha, o último plano em que nela se extinguem as luzes de vigia da vida em fuga pelo mar, tem tanto de terminal e ressonante para o tempo, como o encerrar tumular de uma pirâmide em Land of the Pharaohs.
Foi um filme em que havia enterrado fundo um mistério, portanto um daqueles a que poderá não convir abrir a luz. Seja como fôr, revê-lo projectado numa noite de Verão na esplanada da Cinemateca num ciclo intitulado Filmes de Praia só pode ser a minha escolha de programação de eleição deste ano. Esta noite não serei mais feliz. Mas sou mais grato.
*segundo a Folha da Cinemateca, «"aprender a gastar a infelicidade que nos resta" (ou a felicidade)», acrescenta o Bénard. Não é grave portanto, mas é no que dá não ser sequer um copista sério.
(lembra-me agora o Agosto do Silva Melo próximo estritamente de uma radiância mediterrânica)
Passei anos inclusive com a obsessão recorrente da recorrente sonata de Bach, da qual escrevinhei às escuras no ingresso (ainda deverá estar a faíscar no segredo de alguma gaveta cerca, memória de exclusivíssima ocasião de um mortal ali mergulhar - no Ávila, se bem me lembro... em estreia dez anos após a produção, e uma passagem na RTP), a informação que apanhei da tela, mas à qual faltava a chave BWV para resgatar a identidade da partitura.
Lembrava-me de toda a jouissance dos gestos, dessa abertura fluida e ininterrupta às coisas vivas, à sensação táctil de cada plano, aos prodígios evocativos das mais terrenas evidências sensitivas (não me larga o som de uma bilha de água pousada no chão da açoteia). Inclusive aos corpos (não pudesse, sim, passar por aqui um mote de teorema pasoliniano mais comedido e empirista). Que não primeiramente a breve ninfeta de Teresa Villaverde, nem exclusivamente o bronze da oclusão solar de Laura Morante (dos escassos retratos de mulher a me raptar) e o esplendor macerado de Manuela de Freitas, mas a plenitude de existir no momento, como na justeza do júbilo e desarme infantil, como a ode aos olvidados no plano da criada Senhora Amélia suspensa, apesar da familiaridade, ainda em atavismo mudo e servil, da aprovação comensal da sua caldeirada.
Mas não me lembrava, ou não o vi, como todo este alento vitalista compassava um andamento sepulcral. O superavit mais ou menos subtil de citações (incluindo os cameos de si mesmo, a anunciar-se persona, do César Monteiro) de toda a filiação artística (de Piero Della Francesca a "How green was my valley", de (Robert) Browning (.38) a "Suddenly last summer", de Virgílio e Ulisses a Roberto Rossellini (lembremos as coisas), de de...) era de desconfiar: toda a memória puxa a montante, para o lastro escondido no porão do tempo, onde também se busca trancar a morte e o crime, como coisas que já passaram e nos vedam mais caminho. E nesse exumar de um passado conquanto irrevisitável, a fazer desse fora-de-campo temporal uma presença inescapável e tutelar do movimento que vemos e ainda nos concedemos, aí sem precisão de citação cinéfila, uma vaga reminiscência manietada dos fantasmas de um tal Ethan Edwards me assomou.
Contudo, no reverso, é precisamente também o signo de uma ars moriendi que torna sumamente vibrante a colheita experiencial que cada fotograma comporta (ritualidade constitutiva da obra futura), como a última frase de Manuela de Freitas (que não ouvi bem, como de qualquer forma seria de rigueur em filme meio falado em português projectado ao ar livre, mas de que estou seguro - qualquer coisa como, fruir a felicidade que resta*) sentencia. E na pequena morte sepultada em cada casa que se fecha, o último plano em que nela se extinguem as luzes de vigia da vida em fuga pelo mar, tem tanto de terminal e ressonante para o tempo, como o encerrar tumular de uma pirâmide em Land of the Pharaohs.
Foi um filme em que havia enterrado fundo um mistério, portanto um daqueles a que poderá não convir abrir a luz. Seja como fôr, revê-lo projectado numa noite de Verão na esplanada da Cinemateca num ciclo intitulado Filmes de Praia só pode ser a minha escolha de programação de eleição deste ano. Esta noite não serei mais feliz. Mas sou mais grato.
*segundo a Folha da Cinemateca, «"aprender a gastar a infelicidade que nos resta" (ou a felicidade)», acrescenta o Bénard. Não é grave portanto, mas é no que dá não ser sequer um copista sério.