Morte a Werther (oh, too late)
(seguido de
A Werther Waiting to Happen)
Bom, o argumento é óptimo, mas a baralhar argumentos durkheimianos sobre a causalidade do suicídio para arguir a publicitação artística da auto-obliteração (para o caso, sob a forma do Werther de Goethe) como empreendimento de contornos socialmente homicidas ou genocidas - a carecer de ironicamente salvífico matizar por intermediários culturais (isto se não forem dos que carecem mais da mitificação que da desconstrução para se legitimar) - acho que se impõe compensar apresentando o moço Johann Wolfgang, em penitência devida ao tempo que se perde (a vida é o menos) a ler o exasperante Werther (outros opus notwithstanding), como um verdadeiro arremedo cobardolas de Karadzic em segunda mão. Porque o tio Émile (estando entre amigos) Durkheim, pelo próprio contexto e intenção disciplinar com que se debruçou sobre o suicídio, estava muito longe de conceder ao mimetismo (logo pelo seu implícito psicologismo) um papel explicativo do suicídio enquanto fenómeno social, quando muito anexando-o a uma matriz de causalidade em que cumpriria papel muito dispiciendo, eventualmente facilitador, face às condições sociais estruturais (cimeiramente, de coesão e integração sociais) que explicariam a constância societal (e a variação intersocietal) das taxas de suicídio, deixando as explicações de cada acto individual de suicídio para a ciência(?) a que competissem. O que implica que, por muito que o estouvado Goethe pretendesse dizimar a população proto-metrossexual da Europa culta contemporânea (precursora cruzada?), Durkheim não lhe ratificaria a pretensão causal (precursora e profiláctica vacinação contra auto-comiseração blogosférica?), quando muito gatilho contingente em coutada da National Rifle Association. O que é pena, dado que, com o meu ritmo de leitura e masoquismo completista, só o entretenimento de um julgamento póstumo em Haia me ressarciria desse estou certo que meio ano passado em suplício literário (para mais, tendo-me wertherizado às avessas, como do meu whining agora se constata).
Adenda tardia: Chamar à razão? Moi? Now there's a blueprint para um texto irónico.
Não, agora menos a sério, permita-se-me só mais uma achega quase completamente off-the-subject sobre a questão de pormenor durkheimiano que me titilou (começo a pensar que tenho uma thing pelo Émile) dado que, para lá de não ter razão alguma para questionar os apetitosos procedimentos irónicos do texto (não sei porquê, estou a gostar de fantasiar o Johann travestido de Dr. Strangelove), por definição estaria sempre at a loss com essa trama subterrânea de siglas, referências e espoletas motivacionais, a ponto de não poder perceber que carecia de elucidação. A curiosa minudência que me motiva ao rerun do tédio em prosa que precede esta adenda, é que precisamente subsiste na elucidação em causa uma mescla conceptual non-durkheimiana, entre o sofrimento sublimado por via literária (doravante conhecido como "bicho wertheriano"), poder "eventualmente, precipitar" um acto suicida, e pressupôr esse "bicho wertheriano" como estando "à partida" na cabecinha dos suicidas (sendo o estar no fim e no princípio de um processo causal distinção temporal inoperativa, ou ubiquidade a mais para o bichinho). O tio Émile concederia a primeira causalidade, como acessória, na explicação de casos individuais de suicídio, mas rejeitá-la-ia (não só logicamente, mas disciplinarmente) enquanto causalidade de "partida" ou suficiente para explicar as dinâmicas sociais (não psicológicas) de suicídio. Na analítica durkheimiana, os factores psicológicos que espoletassem actos individuais de suicídio, fossem a leitura do Werther ou as flutuações dos stocks de cerveja, sendo relevantes para a explicação de cada caso, eram irrelevantes para a explicação das dinâmicas propriamente sociais do suicídio, cuja regularidade, traduzida pelo indicador das taxas de suicídio, indicava tratar-se de uma dimensão analítica com autonomia, não dependente da agregação de causas psicológicas para suicídio (algo que não cabe na óptica da (sua) sociologia), que logicamente deveriam dar azo a variações aleatórias dessas taxas, o que não era empiricamente o caso. A causalidade de "partida" para explicar socialmente o suicídio estaria sempre a montante, ao nível das condições sociais (largamente inconscientes), não ao nível das motivações psicológicas (onde entraria o bicho wertheriano), que sendo totalizantes para cada acto isolado (precipitando-o), seriam sempre acessórias, secundárias, na óptica sociológica de análise, que Durkheim pretendia instaurar, delimitando-lhe um campo analítico autónomo (particularmente, neste caso, face à psicologia, donde a escolha provocatória do objecto de análise suicídio).
Porque é que o esborratar desta distinção interpela tanto? Porque nessa distinção, translúcida para Durkheim, reside porventura o momento simbólico e epistémico mais emblemático desse processo crucial para o entretenimento intelectual ocidental antes da profusão das sitcoms, que foi a especialização das ciências sociais.
Para o caso Goethe, uma analítica sociológica durkheimiana sublinharia condições estruturais, como a individualização em certos estratos sociais e seu potencial anómico, quando muito associando-o ao plano das representações colectivas no romantismo, como as condições sociais propícias a um acréscimo social do suicídio, e nesse sentido, contra qualquer pretensão de omnipotência artística ou um j'accuse a Goethe, e particularmente contra a pretensão disciplinar de plasmar a dimensão social dos fenómenos a uma agregação de casos/estados psicológicos, todo este caso não passava largamente de um Werther waiting to happen.
Mas isto, contendo alguma austeridade (oh!, see the pun there?, ah ah), já vem cada vez mais a despropósito, e já não é muito irónico, portanto, deixa pra lá...